Certamente que
daqui a uns anos a Faixa de Gaza terá o seu memorial, venderá os seus souvenirs
e aprenderemos nos livros de história aquele que foi o destino trágico dos palestinianos.
Alguém chegará a perguntar mesmo: «Como foi possível?» E será dito que aquele
que esquece a sua história, está condenado a repeti-la. Haverá filmes,
colóquios, documentários.
Em 2023, no
entanto, a cegueira ideológica e política dos governos ocidentais está bem
patente na proposta da Comissão Europeia em acabar imediatamente com todo o
financiamento aos programas de apoio à Palestina - note-se: apoios
alimentares, de infra-estruturas, de salários. Nenhuma proposta de paz, de
negociação, de suspensão da escalada do conflito. Bem pelo contrário, os
Estados Unidos não só enviaram mais armamento para Israel, como enviaram,
inclusivamente, o seu maior navio de guerra. Por outro lado, a dualidade de
critérios na comunicação social é despudorada: num boletim informativo da rádio
podíamos ouvir, logo na sua abertura, uma psicóloga que notava com desânimo o
estado de trauma dos israelitas perante a surpresa do ataque do Hamas e dos
seus «assassinatos», tratando na notícia seguinte a morte de palestinianos — crianças,
incluindo — como simples baixas, inevitabilidades do ataque que estes
«terroristas» tinham lançando contra Israel, quando tudo estava bem e estes
viviam em paz o sonho da Terra Prometida.
Não. Não vale a
pena referir quantos palestinianos foram mortos pelas forças israelitas desde o
início do ano até ao dia 7 de Outubro — mais de 250, 47 eram crianças. Não, não
vale a pena detalhar as condições de vida e o regime de apartheid em que
vive a população da Faixa de Gaza: agora com bloqueio total a todos aqueles
elementos básicos da sobrevivência e da dignidade humana — água, comida, gás e luz.
Não, não vale a pena continuar a enumerar a lista de tácticas militares
dissimuladas que Israel utiliza para minar as condições de vida dos
palestinianos, como no caso do herbicida lançado na fronteira com Gaza para
destruir as colheitas palestinianas, como demonstrou explicitamente o Forensic Architecture, que desde há
muito se dedica a denunciar as estratégias e crimes de Israel. E não,
certamente que não vale a pena voltar a olhar para a história para compreender
que, desde 1948, desde a Nakba [Catástrofe], que o Estado de
Israel assenta num programa contínuo e violento de expropriação e expulsão dos
Palestinianos, reduzindo-os à condição de prisioneiros de Estado.
A Faixa de Gaza
não é apenas o território mais densamente povoado do mundo — para onde têm sido
empurrados e confinados os palestinianos nas últimas décadas — é a maior prisão
a céu aberto do mundo: o lugar onde todos os valores básicos da dignidade
humana e da existência política são diariamente postos em causa por um regime
policial e segregacionista. No entanto, todos esses valores, que foram, aliás,
elevados à condição de epítetos morais do Ocidente, com o início da Guerra na
Ucrânia, parecem ter deixado de fazer parte da retórica do comentariado
nacional e internacional na sua «análise» da situação em Israel.
Nunca como agora
se elevou tão alto o cinismo ideológico do Ocidente: como se o
Hamas tivesse agora e de repente iniciado um ciclo de violência, como se essa
violência já não existisse, como se as Forças Israelitas não fossem, elas
próprias, responsáveis por todo um ciclo de violência interminável, violência
que constitui, aliás, crimes de guerra — como os próprios israelitas chegam a admitir.
A análise terrorismo versus Estado não é apenas uma simplificação
demagógica, o que ela pretende é absolver e continuar a absolver Israel dos
crimes que cometeu e que continuará a cometer contra os palestinianos que estão
hoje efectivamente mais isolados do que nunca.
Israel é um
Estado colonial que assenta num racismo de Estado, um racismo que incorporou na
figura do palestiniano o seu inimigo único e total. A fundação do Estado de
Israel assenta numa profunda lógica de sobrevivência cujo destino não poderá
ser outro que o aniquilamento do seu inimigo. Uma das mais terríveis ironias da
história: aquele povo que foi nas mãos dos Nazis sujeito às piores atrocidades
imagináveis, objecto de um genocídio calculado e implacável, em nome de uma
superioridade moral e racial, em nome de um lebensraum, de um espaço
vital de sobrevivência, tomou para si a figura, os métodos e a lógica, do
seu próprio executor. Israel fez da Faixa de Gaza um «campo de concentração»,
tratando os palestinianos com o mesmo vocabulário que os Nazis usavam para
descrever os judeus nos anos trinta e quarenta. E se dúvidas há, basta ver as
declarações de Yoav Gallant, Ministro da Defesa de Israel, que ainda há poucos
dias não se coibia de dizer: «Estamos a combater contra animais». Essa sub-humanização
do palestiniano não é apenas fruto da retórica, é a operação discursiva que
legitima o emprego de toda a violência e que confirma todo o racismo de Estado.
O Estado de
Israel realiza assim aquela que era uma das utopias do nazismo: a unidade plena
de um Estado soberano e de um Estado racial. Mas ele é, em si mesmo, a figura
extrema da realização do Estado Moderno e da própria política moderna no seu
destino acelerado em direcção à biopolítica e à tanatopolítica: a gestão da
vida que é, e pode ser em qualquer momento, a gestão da própria morte; a consumação
extrema de uma forma política onde os fins acabam sempre por justificar os
meios.
É por isso que
os acontecimentos do dia 7 de Outubro devem ser lidos à luz de um outro factor.
Se Israel é um Estado colonial não é apenas porque este vive e sobrevive a
partir da existência de uma ameaça, mas porque este já só pode viver e
sobreviver com essa ameaça, com esse inimigo, com o espectro da sua presença.
Aquilo que define a essência do Estado soberano israelita é o seu Outro
absoluto: o palestiniano. Toda a política israelita revolve em torno da
afirmação e da negação dessa figura, dessa mesma entidade que só pode existir
não existindo, mas de cuja existência depende a própria identidade lógica
do Estado de Israel, enquanto máquina de guerra infinita e perpétua.
A confirmação da
extrema-direita na política israelita é apenas a afirmação dessa lógica levada
ao seu mais alto nível: nunca como antes a limpeza étnica dos palestinianos foi
afirmada de forma tão categórica e, no entanto, é a própria existência dos
palestinianos que se apresenta instrumentalmente necessária para a
sobrevivência do Estado de Israel na época da sua extrema-direita.
Por tudo isto, um
dos mais interessantes testemunhos que percorrem a vertigem das redes sociais é
aquele de um rabi para quem é essencial distinguir entre judeus e sionistas, porque
não se trata apenas da Torah proibir qualquer apropriação de terra, de
matar e roubar em nome dessa apropriação, mas porque é a própria ideia de uma
soberania política que é contrária aos seus princípios, é a própria ideia de
Estado que é contrária aos princípios do judaísmo.
E, no entanto,
como dizia antes, é o próprio Estado de Israel que se realiza enquanto
consumação plena do destino histórico dos pesadelos forjados pelo pensamento político
Ocidental: a unidade total entre Estado, Religião e Raça, onde toda a violência
é legitimada enquanto violência única e total sobre um território, sobre um
sujeito, sobre um povo.
Talvez seja essa
a maior e a mais difícil de todas as ironias. Se, para Edmund Burke, «um povo
que não conhece a sua História está condenado a repeti-la», o que se passa
neste caso é precisamente o contrário: é porque conhece a sua História que
Israel está condenado a repeti-la.
Pedro
Levi Bismarck
Editor
do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro
de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto).
Imagem
Imagem mostrando a concentração de herbicida na fronteira Israel-Gaza. A
imagem pertence ao Forensic Architecture, coordenado por Eyal Weissman, que
denuncia através da produção de prova concreta e através de uma investigação
cuidada e recorrendo a múltiplas tecnologias e softwares as tácticas de
guerra usadas de forma dissimulada pelo exército de Israel. Neste caso
específico, herbicida é utilizado para destruir as colheitas dos
palestinianos.
Ficha
técnica
«O
Estado colonial» • Pedro Levi Bismarck
Data de
publicação • 12.10.2023
Edição #40 • Outono 2023