«Vivemos como crianças perdidas, as nossas aventuras incompletas». «Frágil» de Pedro Henrique • Luhuna Carvalho

 




“Frágil”, de Pedro Henrique, é uma proposta arriscada e aparentemente um objecto de extrema indulgência e capricho. É-o quer a nível formal e narrativo, não deixando margem a qualquer chão seguro cinematográfico ou literário, mas também a nível metafilmico - politizando o filme em si contra os circuitos de reconhecimento formal e informal do cinema e da cultura.

Ambos os gestos são de ruptura, mas essa ruptura ou é hoje feita de modo singular ou então, ironicamente, revela-se apenas outra forma de declinar esse “espectáculo” reinante. O que salva “Frágil”, e o que o distingue enquanto objecto político, é o cuidado (no sentido de “cuidar”) que emerge nos interstícios da trama. Na essência do filme está uma reflexão perigosamente franca, social e política sobre a amizade, sobre a sua intensidade e impossibilidade no momento histórico onde vivemos, sobre o carácter ao mesmo tempo inexequível e insurrecional da comunicação entre singularidades e entre sujeitos.

Consegue a proeza de ser um filme sobre o niilismo que não espelha em si próprio esse niilismo, evitando a tentação narcísica de se auto-parabenizar pela sua esperteza. Pelo contrário, esse niilismo é entendido enquanto território inimigo, um território em expansão tentacular, ao qual sobra apenas um espaço interior, dentro da amizade. “Frágil” ensaia a antropologia fugaz de uma comunidade boémia em secessão existential com o mundo à sua volta. Não existindo família, não existindo escola, não existindo “cultura”, não existindo trabalho senão enquanto exploração e alienação, sobra apenas um hedonismo que é simultaneamente resistência e submissão. As casas, a droga, os corpos, os afters e as ruas são a única exterioridade possível sendo ao mesmo tempo assombradas pelo modo como essa exterioridade se funda, desde logo, num hedonismo interno à reprodução do capitalismo.

O capital não organiza apenas o trabalho, organiza também o lazer e o escapismo ao trabalho, organiza a recusa do trabalho na medida em que o próprio capital odeia também o trabalho. Os patrões odeiam os trabalhadores porque dependem deles para valorizar o seu capital e os trabalhadores odeiam os patrões porque precisam deles para receber o seu salário. Parte substancial daquilo a que hoje chamamos “cultura popular” não é senão sobre esse ódio transversal ao trabalho onde ele surge como simultânea essência e maldição da humanidade, onde a obrigação de fazer algo para sobreviver surge associada à obrigação de fazer algo inútil.

Mas para lá dessa dialética maldita entre trabalho e lazer, entre submissão e resistência, sobra a ideia de comunidade. “Frágil” celebra-a sem pudor: o encontro comunal é um enamoramento colectivo, onde o narcisismo individualista é destituido pelo brotar hic et nunc de um “nós” que é sempre novo, sempre inédito, sempre livre, sempre veloz, sempre prenho de possibilidades e sentidos inéditos. A comuna acredita sempre - e tem razão - ter reinventado a vida, mesmo que essa vida esteja à partida condenada, mesmo que essa possibilidade de vida resida na sua auto-destruição. “Auto-destruição” é um outro nome (infeliz) para a recuperação possível da paixão, da paixão estética, sensual ou política que de facto transforma o sujeito, que de facto altera a sua relação com os objectos, que de facto constrói e destrói mundos. Ora, o limite dessa paixão surge quando o mundo “lá fora” - o mundo exterior à comuna - se revela incapaz de providenciar formas de experiência e de mediação, e a secessão em curso devem autofágica.

O que distingue “Frágil” da maioria dos objectos culturais contemporâneos - que procuram a sua auto-legitimação ético-política numa ideia de justiça social, de reconhecimento universal, de denúncia moralista de privilégios ou dos males do capitalismo - é que aqui nada disso surge enquanto possibilidade. O capitalismo está desde logo inscrito na disciplina social imposta aos corpos, corpos que urge libertar - não há então nenhuma “sociedade” a reconstruir ou a salvar. Se essa comuna promete ser sempre nova, ela revela-se sempre incapaz de cumprir essa promessa. E é por “Frágil” resolver essa questão de um modo extremamente íntimo que reside a sua importância. Ocorre na intensidade do encontro com o outro um momento onde o juramento que sustenta a intensidade dessa aproximação se revela, afinal, impossível. O tema central do filme é esse - a amizade, a sua promessa, a sua impossibilidade, a sua perseverança - mesmo que não o seja de forma explícita, e, talvez ainda mais importante, mesmo que não o seja de forma “trágica”. A punição divina pela hubris psicadélica não ocorre na catástrofe episódica, mas em algo mais insidioso: que tudo continue como era, que todas as fugas ocorram apenas em loop. O cerne da questão secessional e comunal é então a descoberta dessa ferida íntima interna à própria amizade - é desse momento que surge a possibilidade de algo diferente. O panorama corrente de arte “politizada” vai exactamente no sentido contrário. Foi, até agora, incapaz se expressar sem ser na linguagem da soberania e do estado (direitos, leis, representação, mediação, etc). O corolário desse processo é que quem usa a linguagem do poder acaba por conseguir apenas pensar através das categorias do poder.

Enquanto objecto fílmico, “Frágil” procura explicitamente transcender a sua forma, quer na ruptura da quarta parede, quer nos múltiplos modos em que vinca o modo como é um processo colectivo e, presume-se então, apenas um momento e apenas a expressão de algo mais vasto, de uma luta maior, de um processo em curso do qual é mero testemunho. A sua apresentação no circuito de festivais (em Lisboa e em Turim) foi acompanhada pelo gesto de impedir a sua projeção, transformando o evento num protesto contra a bolha palaciana do “mundo das artes”. Esse gesto espelha o do filme, arriscando cair em caricatura e num moralismo que visa apenas sublinhar a própria rectidão. Mas não. Como no filme, é o espirito “que sa foda” que salva a situação. Como todo o gesto de ruptura ele é simultaneamente ingénuo e sagrado, excedendo por todos os lados o niilismo simultaneamente cínico e sonso do que hoje é considerado “político”.

 

 

Luhuna Carvalho

Lisboa (1980). Estudou Cinema em Barcelona. Fez um estágio em Nova Iorque. Metrado na FCSH . Universidade Nova de Lisboa. Doutoramento no Centre for Research on Modern European Philosophy, Kingston University, Londres. Autor de Depois da Lei, Língua Morta, 2022.

 

Imagem

«Frágil», Pedro Henrique, 2022

 

Ficha técnica

«Vivemos como crianças perdidas, as nossas aventuras incompletas». “Frágil” de Pedro Henrique •  Luhuna Carvalho

Data de publicação • 07.03.2023

Edição #37 • Inverno 2023