Falta a arquitectura • Pedro Levi Bismarck






A arquitectura não interessa a ninguém (…). A arquitectura moderna singrou, teve êxito e prestígio, porque um dos seus propósitos era a qualidade para todos. Hoje é tida como uma velharia e um capricho inútil para alguma gente com dinheiro.

Álvaro Siza

 

O povo já não existe, ou ainda não…‘falta o povo’.

Gilles Deleuze

 

Álvaro Siza, o último arquitecto

Álvaro Siza não é apenas um arquitecto excepcional é, talvez, o último arquitecto. Digo, obviamente, arquitecto no sentido que lhe foi dado pelo termo projecto e pela arquitectura moderna enquanto «propósito», como refere o próprio Siza, de realizar uma arquitectura de «qualidade para todos» [1]. Palavras proferidas numa conferência onde este constatava ainda que «em Portugal e na Europa, excepto na Suíça, a arquitectura está em agonia» [2]. Dificilmente poderemos ver aqui palavras de circunstância ou um qualquer gesto de autocomiseração. Álvaro Siza, mesmo com todas as suas contradições, representa bem uma experiência de arquitectura em que obra e saber, prática e teoria, se mobilizaram sempre por um sentido de mundo colectivo e partilhável: um sentido de projecto. E, por isso, Siza, ao contrário de tantos outros, pode ainda reconhecer que esse projecto-de-arquitectura do qual é devedor, do qual é herdeiro, está, hoje, em «agonia».

1. Conferência de Álvaro Siza no Festival Correntes d’Escrita: «“A arquitectura em Portugal está em agonia”, diz Álvaro Siza», Jornal Público, 20 de Fevereiro de 2020. Uma nota para dizer que o uso ao longo deste texto de referências jornalísticas (situadas num quadro temporal próximo) não é um acaso, mas um modo propositado de cruzar todo um conjunto heterogéneo de linhas de leitura que atravessam o nosso quotidiano nos seus diversos níveis.

2. Id., ibid.. Um diagnóstico duro, mas nem por isso isolado se recordarmos as declarações recentes de Gonçalo Byrne: «Gonçalo Byrne: “O termo qualidade em arquitectura foi posto no lixo pelo Estado”», Jornal Público, 7 de Fevereiro de 2020.

Mas, ao contrário do que refere Álvaro Siza, a questão não está tanto nos critérios penalizadores dos «concursos», na «burocracia» dos organismos estatais, e muito menos a questão poderia ser solucionável com uma espécie de «brexit arquitectónico» que nos libertasse do quadro regulatório em vigor. Sendo, além disso, óbvio que as condições que permitem fazer uma arquitectura suíça devem-se, sobretudo, ao estatuto económico e político excepcional desse país. Longe de ser um problema que possa ser imputado a um qualquer quadro regulatório, eu diria que esta «agonia» diz respeito à própria função que a arquitectura desempenha nas actuais estruturas políticas e económicas do neoliberalismo. Neste sentido, mais do que uma simples tendência do capitalismo, devemos ver o neoliberalismo como uma verdadeira «utopia da exploração ilimitada» [3] que impõe tiranicamente o modelo do mercado à sociedade no seu todo. Trata-se de um quadro político-institucional que coloca em causa o modelo de Estado e, particularmente, de Estado Social que, ao longo do século XX, definiu não só todo um modo de co-existência social e urbana, como toda uma ideia de arquitectura como projecto. [4]

3. Pierre Bourdieu, Acts of Resistance: Against the Tyranny of the Market, Nova Iorque, Free Press, 1998.

4. Neste modelo, o Estado detinha a função de assegurar (ainda que de forma contraditória) uma justiça territorial e económica mínima, através de um conjunto articulado de políticas de redistribuição e instrumentos de planificação.

Uma arquitectura sem público

Foi sobre esse processo de integração da arquitectura nas estruturas do neoliberalismo (evidente entre nós durante os anos da «austeridade») que eu procurei reflectir num pequeno ensaio chamado «Arquitectura e “pessimismo”». [5] A consequência imediata desse processo foi aquilo que se poderia designar como uma privatização da arquitectura. Não só porque no contexto da crise económica isto significou uma escassez abrupta de encomenda pública, mas porque esta privatização significou a expropriação da dimensão propriamente pública da arquitectura e, em certo sentido, a expropriação da sua dimensão disciplinar: por um lado, porque desaparece todo um campo de reflexão que dizia respeito a essa relação fundamental entre a cidade, a arquitectura e o seu «público» (para invocar Giancarlo de Carlo) [6], no quadro dos intensos programas de habitação e de planeamento urbano levados a cabo pelo Estado; por outro lado, porque a precariedade obrigou a que os antigos ateliers de vão de escada se transformassem em empresas (ou mesmo em marcas) e, sobretudo, que os arquitectos dirigissem a sua atenção exclusivamente para a aquisição de ferramentas (know how) aptas a posicioná-los de forma estratégica perante as oportunidades de um mercado altamente competitivo.

5. Pedro Levi Bismarck, Arquitectura e “pessimismo”. Sobre uma condição política em arquitectura, Porto, Stones against diamonds, 2020 (2ªedição).

6. Giancarlo de Carlo, Architecture’s Public (1970). Versão portuguesa: “O público da arquitectura”, in O Processo SAAL: Arquitectura e participação 1974-1976, coord. Maria Burmester, Porto, Fundação de Serralves, 2014.

Se podemos falar de uma privatização da arquitectura é porque a sua empresarialização implica um modo de relação com a sociedade específico, mediado em absoluto pelas regras do mercado. O arquitecto fica reduzido à condição de prestador de serviços, de técnico de soluções «pragmáticas» para problemas que não lhe cabe questionar, mas apenas responder de forma eficaz, sem que reste tempo, oportunidade ou interesse para grandes debates etéreos sobre a condição pública da arquitectura. Mas, sobretudo, isto significa a condução progressiva da arquitectura no sentido do interesse privado (ou do interesse do investidor, para ser mais exacto) e cada vez menos no sentido do interesse público: isto é, enquanto produção de um espaço urbano e de um território qualificado, comum, partilhável, em que o «direito à habitação» e o «direito à cidade» não são apenas valores abstractos, mas termos concretos e verificáveis de uma acção contínua de prática e de reflexão disciplinar.

E embora cultivemos ainda uma imagem do arquitecto como humanista, artista, homme de lettres (como se chamava a si mesmo Corbusier), o que é certo é que tanto as escolas como as estruturas profissionais estão, hoje, profundamente inscritas num quadro institucional onde a prática do projecto (público) já não é senão a prática do objecto (privado) – basta ver a relevância que o termo objecto ganhou no discurso arquitectónico dos últimos anos. Trata-se de um modelo pedagógico em que a aprendizagem se articula a partir de uma obsessão compulsiva pela solução, pela resposta, dentro de quadros formais e compositivos normalizados e automatizados, onde já não há lugar nem para o risco da experiência do gesto artístico, nem para o tempo da reflexão crítica sobre a arquitectura enquanto disciplina (algo inclusivamente considerado como perturbador do processo de aprendizagem).

Se, por um lado, as escolas têm vindo a dissimular a sua própria tecnocratização exaltando toda uma dimensão poética, essencialista e fenomenológica da arquitectura (algo que explica o sucesso de Peter Zumthor, Valerio Olgiati ou Juhani Pallasmaa), por outro lado, o discurso institucional tem colmatado a progressiva irrelevância social do arquitecto exaltando a arquitectura portuguesa como um produto cultural de excepção, «pritzker» e «universalista», vendido e exportado enquanto marca, pleno de valores abstractos que servem apenas para mitificar a arquitectura portuguesa face à realidade concreta, física e material do território pouco qualificado em que vivemos e das condições precárias da própria profissão.

Ainda que algumas iniciativas pedagógicas aparentem oferecer aos alunos a oportunidade de «desenhar a cidade» (procurando reafirmar um estatuto de intervenção pública do arquitecto), o que é certo é que o horizonte destas iniciativas aparece, desde logo, delimitado pela curvatura celestial das «soluções inovadoras», mas também por um discurso que em vez de tomar como objecto de reflexão as consequências dos actuais processos de transformação urbana do Porto, opta por um jargão semântico ambíguo em torno da «diversidade de leituras e representações» que fazem a cidade contemporânea. [7] Do outro lado da abstracção idílica do discurso disciplinar está a realidade dos processos de especulação imobiliária, de despejo e expulsão de moradores que, com a violência da lei e da polícia, dissolvem o tecido social e histórico de toda uma comunidade. [8] O facto de, numa edição anterior do workshop, os trabalhos terem sido apresentados no Porto Innovation Hub [9] desvela como este «desenhar a cidade» aparece esvaziado de qualquer interpelação crítica, afirmando o arquitecto como empreendedor hub de soluções criativas e inovadoras para uma cidade cosmopolita e gentrificada, legitimando e dissimulando simultaneamente toda uma desigualdade social e urbana crescente. E, no entanto, a inescapável ironia está no facto de se colocar os estudantes a desenvolver soluções urbanas que, em última instância, acentuam a sua própria proletarização: no seu acesso à habitação e à cidade, mas também, à própria arquitectura.

7. Veja-se, por exemplo, o caso do Workshop – Maratona de Projeto “Desenhar a Cidade II – 2ª edição de uma iniciativa conjunta da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto e da Câmara Municipal do Porto, 17 a 21 de Fevereiro de 2020.

8. «“Há cada vez mais desigualdade no Porto. Não se pode viver aqui”», Jornal Público, 26 de Fevereiro de 2020; «Despejo de moradora exalta ânimos na Ribeira», Jornal de Notícias, 28 de Fevereiro de 2020.

9. Esta é uma instituição municipal cujo objectivo é o «fortalecimento do ecossistema de inovação e empreendedorismo da cidade».

 

Projecto em conflito

Ora, se é claro que a experiência do projecto, ao longo do século XX, foi tudo menos homogénea e, sobretudo, bastante contraditória, não deixa de ser relevante que alguém como Giulio Carlo Argan chegue a escrever, num texto seminal chamado Progetto e destino, que «não se projecta nunca para mas sempre contra alguém ou alguma coisa» [10]. Se esta formulação nos parece tão estranha quanto absurda é porque aquilo a que chamamos projecto está, hoje, reduzido à sua dimensão puramente tecno-logística, enquanto solução para um problema privado (ainda que na sua forma mais bela). E, no entanto, aquilo que Argan faz é, precisamente, inverter essa lógica. Ao dizer que se projecta sempre «contra» – «contra a especulação imobiliária e as leis ou as autoridades que a protegem, contra a exploração do homem pelo homem, contra a mecanização da existência, contra a inércia do hábito e do costume, contra os tabus e a superstição, contra a agressão dos violentos, contra a adversidade das forças naturais» [11]  –, Argan desinveste o projecto da sua carga puramente positivista enquanto gesto condenado à fatal reprodução das condições existentes e investe-o de um potencial de conflito e resistência: «projecta-se contra algo que é, para que mude». [12]

10. Giulio Carlo Argan, Progetto e destino (1964). Versão brasileira: «Projeto e destino» in Projeto e destino, São Paulo, Editora Ática, 2001, p. 53.

11. Id., ibid., p. 53.

12. Id., ibid., p. 53.

Ora, é precisamente esse potencial de conflito – que o projecto abre no seu próprio movimento – que interessa guardar como hipótese para pensar a condição da arquitectura num quadro social e político em convulsão, atravessado pelos efeitos devastadores do capitalismo neoliberal: efeitos que dizem respeito não apenas ao aprofundar imenso das desigualdades sociais ou à catástrofe ecológica iminente, mas ao conjunto das instituições públicas e democráticas, fragilizadas por uma política capturada pela economia. [13] Qualquer reflexão sobre a condição actual do exercício da arquitectura terá de passar necessariamente por enfrentar o empobrecimento («agonia») desta palavra: projecto. Mas, mais do que um qualquer retorno nostálgico a uma idade de ouro da arquitectura (moderna), o que está em causa é pensar esse «contra» que a ideia de projecto transporta em si. Trata-se de pensar a arquitectura enquanto exercício de conflito: uma arquitectura capaz de colocar em crítica e em crise as instituições «contra» quem trabalha, em vez de ser apenas um mecanismo «para» a reprodução acrítica das suas lógicas internas e dos seus programas privatizadores e exclusionários da cidade e do comum.

13. «Em vez de uma economia que controla a política, temos de ter uma política que controle a economia», Entrevista a Viriato Soromenho Marques, Jornal Público, 9 de Fevereiro de 2020.

 

Falta a arquitectura

Voltando ao início, aquilo que está em causa, quando Álvaro Siza refere que a «arquitectura não interessa a ninguém», não é apenas a constatação de um desinteresse generalizado pela arquitectura, mas o facto de esta estar perante a situação histórica de ter perdido esse alguém, esse «público» (para invocar de novo Giancarlo de Carlo), onde o sentido da sua acção estava radicado. E, por isso, a privatização da arquitectura significa não apenas a dissolução da sua condição pública, mas a dissolução desse «público» como condição da arquitectura.

Ora, conflito não significa violência. A violência está aí, um pouco por todo o lado, em grande parte dissimulada pela própria arquitectura. Pelo contrário, conflito significa expor a violência das instituições, mas apenas na medida em que torne possível voltar a encontrar esse alguém, esse público que é hoje o sujeito colectivo ausente em torno do qual gravita a arquitectura.

Se é possível dizer «falta a arquitectura» é, precisamente, porque «falta o povo» [14] (seguindo os termos de Deleuze), falta esse «público da arquitectura»: tanto como realidade histórica como promessa futura. Porque aquilo que a machine infernale do neoliberalismo não cessa de nos expropriar é a possibilidade de existirmos enquanto sujeito político colectivo, de nos podermos inventar enquanto povo, e, por isso mesmo, de poder inventar um povo, de apelar a um outro povo, a uma outra forma-de-vida, a um outro ser-em-comum, a um povo ainda não-aí: futuro, ausente, inesperado. E, no entanto, esta constatação – «falta o povo», «falta a arquitectura» – é a base a partir da qual se pode pensar a possibilidade, ou antes, a necessidade imperativa, de uma outra arquitectura, de um outro projecto-de-arquitectura: futuro, ausente, inesperado.

«É necessário que a arte (…) participe nesta tarefa: não dirigir-se a um povo suposto, já aí, mas contribuir para a invenção de um povo. No momento em que o amo ou o colonizador proclamam “nunca houve um povo aqui”, o povo que falta é um devir, inventa-se, nos bairros de lata e nos acampamentos, ou então, nos guetos, em novas condições de luta para as quais uma arte necessariamente política deve contribuir». [15]

14. Embora Gilles Deleuze esteja, neste caso particular, a escrever sobre o cinema, o problema que se coloca é, na verdade, o da arte: na relação entre a potência do seu gesto e o seu público. Não é por acaso que a expressão «falta o povo» seja formulada a partir de Paul Klee, num texto que este escreve sobre a experiência da Bauhaus. Para Deleuze, trata-se fundamentalmente de afirmar que uma arte ou um cinema político já não se podem fazer enquanto representação de um povo (pressuposto), mas na «tomada de consciência» de que aquilo que está em falta é precisamente o povo. Gilles Deleuze, A imagem-tempo. Cinema 2, Lisboa, Sistema Solar (Documenta), 2015, p. 340.

15. Id., ibid., p. 341.


Atlas

«Arquitectura como Projecto». Robin Hood Gardens, Alison and Peter Smithson (1972).


«A privatização da arquitectura». A demolição do Robin Hood Gardens, com a sede do Banco HSBC em pano de fundo (2017-2019).


«O arquitecto público». Álvaro Siza em visita ao Bairro de Schilderswijk, Haia, quase trinta anos depois da sua inauguração (1988).


«O arquitecto como empreendedor». Work-shop Architecture International Challenges ARQ 3.0, Fundação de Serralves (2018). 


«O público da arquitectura». Quinta da Malagueira, Álvaro Siza (1977). 


«O público da arquitectura». Bienal de Arquitectura de Veneza (2018). Duas fotografias da Herdade de São Lourenço do Barrocal, Souto de Moura [fotografia: Francesco Galli].


«o povo já não existe, ou ainda não...falta o povo». Bloco da Senhora das Dores, São Vítor, Álvaro Siza (1974-77) [fotografia: André Cepeda].


«Falta a arquitectura». Restos e ruínas do Bairro de São João de Deus, demolido entre 2003-2009 [fotografia: André Cepeda].

 

 

Nota da edição

Este texto foi publicado originalmente na Revista MA, da Associação de Estudantes da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, em Setembro de 2020. Foi escrito em Fevereiro e Março 2020, ainda antes do primeiro confinamento provocado pela Covid-19.

 

Pedro Levi Bismarck

Co-editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

Aldo Rossi, Il Teatro del Mondo, Bienal de Veneza (1979).

 

Ficha Técnica

«Falta a arquitectura» • Pedro Levi Bismarck

Data de publicação: 12.03.2023

Edição #37 • Inverno 2023 •