O Sacrifício da Arte. Post-scriptum a «Vida a Crédito. Arte Contemporânea e Capitalismo Financeiro» • Tomás Maia

 


Agravaram-se, nos últimos meses, os métodos da «sofística contemporânea»: já não se trata somente da destruição do êthos ou da forma de ser do artista, como procuro dizer, afinal cautelosamente, no livro Vida a Crédito (IV, § 10). Não: estamos também perante a destruição física da própria arte, dos seus objectos, das suas materialidades — destruição que se reveste tanto de um elemento moderno quanto de um elemento arcaico: de um aparato mediático com um semblante sacrificial. Pesando todas as minhas palavras, na verdade não encontro outro termo senão «sacrifício» para designar a gravidade, sem qualquer paralelo na história da arte, do que está a ocorrer. E face a este sacrifício material da arte, o «depois» (espiritual) da obra, enunciado por Hegel — que jamais escreveu «morte» ou, sequer, «fim» da arte —, parece uma subtileza de filósofo a meditar, seriamente, sobre o destino moderno da arte.

Antes de abordar brevemente este sacrifício, eis alguns actos que ilustram os novos métodos sofísticos; limito-me a evocar dois (ambos posteriores à publicação de Vida a Crédito).

O primeiro ocorreu em Miami, a 30 de Julho de 2022. Um milionário mexicano, Martin Mobarak (apresentado, num vídeo autopromocional, como «Mexican American Philanthropist & Entrepreneur») fomentou uma luxuosa festa onde, entre outros eventos, e para gáudio dos seus convivas, queimou — ou terá queimado — uma obra da qual era proprietário: o original de um desenho de Frida Khalo (conhecido pelo título Fantasmas Sinistros). A destruição foi precedida da conversão dessa obra em 10 mil reproduções digitais, sob a forma de NFT (non-fungible token: certificado digital não fungível). No momento em que escrevo estas linhas, a valorização de tais NFT’s já quadruplicou o valor atribuído ao desenho incendiado (a saber, 10 milhões de euros).

O segundo acto iniciou-se em Julho de 2021 e culminou em Outubro de 2022. Damien Hirst deixou ao critério dos seus coleccionadores adquirirem originais ou NFT’s de uma série de 10 mil pinturas sobre papel, realizada pelo próprio e intitulada The Currency (flagrante confirmação, refira-se de passagem, da redução da «obra» a marca comercial: cada folha de papel é simplesmente colorida por umas quantas pintas de esmalte, contendo no verso um carimbo, um holograma com a efígie de Hirst, e a sua assinatura autografada). Uma vez que quase metade dos coleccionadores optou pela versão digital (exactamente 4851 compradores), e conforme o acordo de venda estabelecido entre as partes, Hirst começou a queimar publicamente esse mesmo número de originais a 11 de Outubro de 2022 na Newport Street Gallery, em Londres, incinerando a última pintura no dia 30 do mesmo mês (data do encerramento da exposição). Desta vez, acompanhado de vários dos seus assistentes, num local que se autolegitima como «artístico», o oficiante deste ritual é bem mais sofisticado: os visitantes são convidados a ver uma exposição de pinturas na parede e, simultaneamente, a testemunhar uma queima diária de outras tantas pinturas: aquelas que foram preteridas pelos NFT’s respectivos; o próprio oficiante, com luvas e indumentária a preceito, retira estas últimas de uma longa mesa (que evoca, irresistivelmente, um primitivo altar) antes de as lançar às chamas; para esse efeito, vários incineradores encontram-se instalados na galeria londrina, havendo posteriormente ampla divulgação fotográfica e videográfica do evento.

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Num certo sentido, este duplo sacrifício (ou este mesmo sacrifício em dois actos) não anuncia nada de novo: antes leva à letra, e até às últimas consequências, a fórmula do capital financeiro: D — D’ (fórmula que sustenta, a meu ver, a insidiosa perversão da figura do «artista» em êthos especulativo). Na verdade, se tal fórmula assenta na supressão das mercadorias, e portanto, aplicando-a à arte, se ela assenta, no limite e para lá do limite, na eliminação da obra, então é porque, em primeiríssima instância, essa mesma fórmula se radica na necessidade (trágica) de erradicar o elemento mortal que diviniza o humano: ou seja, na necessidade (histórica) de sacrificar Cristo. Cristo é o divino humanizado, como sabemos, mas é também a tragédia enfim historicizada. O sacrifício real da obra obedece à lógica do sacrifício do Filho — que é obra do Deus Pai. Com uma diferença substancial, que podemos agora repensar a partir dos termos com que Marx aprofundou Hegel: «Hegel observa numa das suas obras que todos os factos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa» (O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, I).

Tudo o que tentei descrever no quarto capítulo de Vida a Crédito, acerca dos métodos da sofística contemporânea, encontra-se iluminado por esta intuição de Marx: a arte, como simulação (mimesis ou fictio) da morte, é, na sua essência, trágica; mas se houver uma «arte contemporânea» que se distingue historicamente como simulação da simulação, simulação sofisticada em segundo grau, então as suas manifestações constituem, essencialmente, uma farsa. Com efeito, tal sofística caracteriza-se precisamente pelo facto de ter consciência de que a história (da arte) está a ser encenada pela segunda vez: o sofista contemporâneo é o farsante que exibe a sua farsa. Em poucas décadas, só para evocar um caso evidente, transitámos de uma certa tragicidade da Body Art para a teatralização kitsch e lucrativa do sacrifício. Tudo — por exemplo: a pira, onde o desenho de Kahlo se consome, é na verdade uma taça de cocktail —, tudo nas mais recentes encenações sacrificiais ostenta o seu carácter farsante, sem que já ninguém aí pretenda esconder que o único objecto de culto a que estes oficiantes e neófitos se devotam é o dinheiro. E no entanto o fogo — o apelo imemorial do fogo — não deixa de reavivar e alimentar o imaginário religioso (e, particularmente, cristão) da transubstanciação. Não foi levianamente que o milionário mexicano, após a combustão da obra, se tenha autointitulado «alquimista de arte»: aquele que transforma «arte física em ouro digital» (entrevista citada pelo jornal Público, 27/09/2022); nem foi inocentemente que Hirst explicitou: «Muitas pessoas pensam que estou a queimar milhões de dólares em arte, mas não estou: estou a completar a transformação destas obras físicas em NFT’s» (segundo a legenda que acompanha o vídeo que o próprio publicou na sua conta de instagram). Educaram-nos para uma vida de sacrifício (porque a própria vida humana resultaria de um sacrifício divino); e esta «alquimia» e esta «transformação» completa (ou consumada) da «obra» inserem-se nesse mesmo programa civilizacional, incentivando uma «arte» do sacrifício da arte. Nada de novo, pois, num certo sentido.

Num outro sentido, porém, este duplo sacrifício (e outros que, seguramente, virão) traz algo de novo — e de aterradoramente novo: ficámos a saber que, para a meta-física do capital financeiro, não há mesmo limites físicos na destruição da arte, pois está aberto o precedente da eliminação da obra (mesmo que a tal destruição se dê, hipocritamente, o qualificativo de acto ou de happening artístico). Com tal (im)postura, não se contribui apenas para uma espécie de amnésia histórica e para uma rasura total do juízo crítico, com particular incidência no genuíno questionamento sobre os limites da obra de arte, questionamento que atravessou todo o século XX numa incessante e formidável experimentação (não apenas «vanguardista»); com esta (im)postura, legitima-se também que toda — literalmente toda — a obra de arte, sob a lei imperial da propriedade privada, pode doravante ser destruída, desde que tal destruição seja transubstanciada em lucro financeiro.

O NFT, que surgiu na ausência do conceito de original, eis que é valorizado agora, e sobremaneira, porque a obra original de onde ele provém acaba num espectáculo sacrificial sem, aparentemente, qualquer impedimento legal. Há algo de aterradoramente novo porque se faz «arte» da destruição da arte, sacrificando-a para obter outra coisa que não arte, «ouro digital», transubstanciando-a portanto em ouro fictício, como se um Midas farsante pudesse condensar doravante todos os actos do sofista contemporâneo. De resto, na história das religiões, o sacrifício (sacrum-facere) foi sempre o fazer mais violento da dialéctica do ganho e da perda: a cerimónia mais cruel da perda para se ganhar (mais). A encenação da morte (do outro) para se atingir a imortalidade (do mesmo).

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Enquanto não compreendermos que a guerra que o capitalismo nos declarou, além de ser política e económico-financeira, é essencialmente religiosa, nunca obteremos os meios eficazes para combatê-lo e, ainda menos, para poder derrotá-lo. Falta saber, de resto, se toda e qualquer guerra não será, estruturalmente, religiosa (é uma proposição de Jean-Joseph Goux — que mantenho, aqui, em reserva). Seja como for, se deixarmos a arte sacrificar-se realmente, materialmente, então é a própria ideia de humano que estará a consumir-se nos altares da finança capitalista — essa religião final do Ocidente que, ou terminará, ou nos exterminará de vez.

 

 

Tomás Maia

Licenciado em Artes Plásticas – Pintura pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (1991) e doutorado em Filosofia de Arte pela Université Marc Bloch (2004). Lecciona na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. Publicou, entre outros, pela Sistema Solar os livros Incandescência. Cézanne e a Pintura (2015), Persistência da obra I. Arte e Política (2020) e Persistência da obra II. Arte e Religião (2020).

 

Nota de edição

Este texto corresponde a um Post-scriptum que Tomás Maia escreveu, em Novembro de 2022, ao livro Vida a Crédito. Arte Contemporânea e Capitalismo Financeiro, publicado pela Sistema Solar em Abril deste ano e que gentilmente cedeu para publicação ao Jornal Punkto.

 

Imagem

Fotograma de «Empire» (1964), Andy Warhol

 

Ficha Técnica

«O Sacrifício da Arte. Post-scriptum a Vida a Crédito. Arte Contemporânea e Capitalismo Financeiro» • Tomás Maia

Data de publicação: 13.12.2022

Edição #36 • Outono 2022 •