Agravaram-se,
nos últimos meses, os métodos da «sofística contemporânea»: já não se trata
somente da destruição do êthos ou da forma de ser do artista, como
procuro dizer, afinal cautelosamente, no livro Vida a Crédito (IV, §
10). Não: estamos também perante a destruição física da própria arte, dos seus
objectos, das suas materialidades — destruição que se reveste tanto de um
elemento moderno quanto de um elemento arcaico: de um aparato mediático com um
semblante sacrificial. Pesando todas as minhas palavras, na verdade não
encontro outro termo senão «sacrifício» para designar a gravidade, sem qualquer
paralelo na história da arte, do que está a ocorrer. E face a este sacrifício
material da arte, o «depois» (espiritual) da obra, enunciado por Hegel —
que jamais escreveu «morte» ou, sequer, «fim» da arte —, parece uma subtileza
de filósofo a meditar, seriamente, sobre o destino moderno da arte.
Antes
de abordar brevemente este sacrifício, eis alguns actos que ilustram os novos
métodos sofísticos; limito-me a evocar dois (ambos posteriores à publicação de Vida
a Crédito).
O
primeiro ocorreu em Miami, a 30 de Julho de 2022. Um milionário mexicano,
Martin Mobarak (apresentado, num vídeo autopromocional, como «Mexican American
Philanthropist & Entrepreneur») fomentou uma luxuosa festa onde, entre
outros eventos, e para gáudio dos seus convivas, queimou — ou terá queimado —
uma obra da qual era proprietário: o original de um desenho de Frida Khalo (conhecido
pelo título Fantasmas Sinistros). A destruição foi precedida da conversão
dessa obra em 10 mil reproduções digitais, sob a forma de NFT (non-fungible
token: certificado digital não fungível). No momento em que escrevo estas
linhas, a valorização de tais NFT’s já quadruplicou o valor atribuído ao
desenho incendiado (a saber, 10 milhões de euros).
O
segundo acto iniciou-se em Julho de 2021 e culminou em Outubro de 2022. Damien
Hirst deixou ao critério dos seus coleccionadores adquirirem originais ou NFT’s
de uma série de 10 mil pinturas sobre papel, realizada pelo próprio e
intitulada The Currency (flagrante confirmação, refira-se de passagem,
da redução da «obra» a marca comercial: cada folha de papel é simplesmente
colorida por umas quantas pintas de esmalte, contendo no verso um carimbo, um
holograma com a efígie de Hirst, e a sua assinatura autografada). Uma vez que
quase metade dos coleccionadores optou pela versão digital (exactamente 4851
compradores), e conforme o acordo de venda estabelecido entre as partes, Hirst
começou a queimar publicamente esse mesmo número de originais a 11 de Outubro
de 2022 na Newport Street Gallery, em Londres, incinerando a última pintura no
dia 30 do mesmo mês (data do encerramento da exposição). Desta vez, acompanhado
de vários dos seus assistentes, num local que se autolegitima como «artístico»,
o oficiante deste ritual é bem mais sofisticado: os visitantes são convidados a
ver uma exposição de pinturas na parede e, simultaneamente, a testemunhar uma
queima diária de outras tantas pinturas: aquelas que foram preteridas pelos
NFT’s respectivos; o próprio oficiante, com luvas e indumentária a preceito,
retira estas últimas de uma longa mesa (que evoca, irresistivelmente, um
primitivo altar) antes de as lançar às chamas; para esse efeito, vários
incineradores encontram-se instalados na galeria londrina, havendo
posteriormente ampla divulgação fotográfica e videográfica do evento.
*
Num certo sentido, este duplo
sacrifício (ou este mesmo sacrifício em dois actos) não anuncia nada de novo:
antes leva à letra, e até às últimas consequências, a fórmula do
capital financeiro: D — D’ (fórmula que sustenta, a meu ver, a insidiosa
perversão da figura do «artista» em êthos especulativo). Na verdade, se
tal fórmula assenta na supressão das mercadorias, e portanto, aplicando-a à
arte, se ela assenta, no limite e para lá do limite, na eliminação
da obra, então é porque, em primeiríssima instância, essa mesma fórmula se
radica na necessidade (trágica) de erradicar o elemento mortal que diviniza o
humano: ou seja, na necessidade (histórica) de sacrificar Cristo. Cristo é o
divino humanizado, como sabemos, mas é também a tragédia enfim historicizada. O
sacrifício real da obra obedece à lógica do sacrifício do Filho — que é obra do
Deus Pai. Com uma diferença substancial, que podemos agora repensar a partir
dos termos com que Marx aprofundou Hegel: «Hegel observa numa das suas obras
que todos os factos e personagens de grande importância na história do mundo
ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira
vez como tragédia, a segunda como farsa» (O 18 de Brumário de Luís Bonaparte,
I).
Tudo
o que tentei descrever no quarto capítulo de Vida a Crédito, acerca dos métodos
da sofística contemporânea, encontra-se iluminado por esta intuição de Marx: a
arte, como simulação (mimesis ou fictio) da morte, é, na sua
essência, trágica; mas se houver uma «arte contemporânea» que se distingue
historicamente como simulação da simulação, simulação sofisticada em
segundo grau, então as suas manifestações constituem, essencialmente, uma
farsa. Com efeito, tal sofística caracteriza-se precisamente pelo facto de ter
consciência de que a história (da arte) está a ser encenada pela segunda vez:
o sofista contemporâneo é o farsante que exibe a sua farsa. Em poucas décadas,
só para evocar um caso evidente, transitámos de uma certa tragicidade da Body
Art para a teatralização kitsch e lucrativa do sacrifício. Tudo —
por exemplo: a pira, onde o desenho de Kahlo se consome, é na verdade uma taça
de cocktail —, tudo nas mais recentes encenações sacrificiais ostenta o seu
carácter farsante, sem que já ninguém aí pretenda esconder que o único objecto
de culto a que estes oficiantes e neófitos se devotam é o dinheiro. E no
entanto o fogo — o apelo imemorial do fogo — não deixa de reavivar e alimentar
o imaginário religioso (e, particularmente, cristão) da transubstanciação.
Não foi levianamente que o milionário mexicano, após a combustão da obra, se tenha
autointitulado «alquimista de arte»: aquele que transforma «arte física em ouro
digital» (entrevista citada pelo jornal Público, 27/09/2022); nem foi inocentemente
que Hirst explicitou: «Muitas pessoas pensam que estou a queimar milhões de
dólares em arte, mas não estou: estou a completar a transformação destas obras
físicas em NFT’s» (segundo a legenda que acompanha o vídeo que o próprio
publicou na sua conta de instagram). Educaram-nos para uma vida de sacrifício
(porque a própria vida humana resultaria de um sacrifício divino); e esta
«alquimia» e esta «transformação» completa (ou consumada) da «obra» inserem-se
nesse mesmo programa civilizacional, incentivando uma «arte» do sacrifício da
arte. Nada de novo, pois, num certo sentido.
Num
outro sentido, porém, este duplo sacrifício (e outros que, seguramente, virão)
traz algo de novo — e de aterradoramente novo: ficámos a saber que, para a
meta-física do capital financeiro, não há mesmo limites físicos na destruição
da arte, pois está aberto o precedente da eliminação da obra (mesmo que a tal
destruição se dê, hipocritamente, o qualificativo de acto ou de happening artístico).
Com tal (im)postura, não se contribui apenas para uma espécie de amnésia
histórica e para uma rasura total do juízo crítico, com particular incidência
no genuíno questionamento sobre os limites da obra de arte, questionamento que
atravessou todo o século XX numa incessante e formidável experimentação (não
apenas «vanguardista»); com esta (im)postura, legitima-se também que toda —
literalmente toda — a obra de arte, sob a lei imperial da propriedade
privada, pode doravante ser destruída, desde que tal destruição seja
transubstanciada em lucro financeiro.
O
NFT, que surgiu na ausência do conceito de original, eis que é valorizado agora,
e sobremaneira, porque a obra original de onde ele provém acaba num espectáculo
sacrificial sem, aparentemente, qualquer impedimento legal. Há algo de
aterradoramente novo porque se faz «arte» da destruição da arte, sacrificando-a
para obter outra coisa que não arte, «ouro digital», transubstanciando-a
portanto em ouro fictício, como se um Midas farsante pudesse condensar
doravante todos os actos do sofista contemporâneo. De resto, na história das
religiões, o sacrifício (sacrum-facere) foi sempre o fazer mais violento
da dialéctica do ganho e da perda: a cerimónia mais cruel da perda para se
ganhar (mais). A encenação da morte (do outro) para se atingir a imortalidade
(do mesmo).
*
Enquanto não
compreendermos que a guerra que o capitalismo nos declarou, além de ser
política e económico-financeira, é essencialmente religiosa, nunca obteremos os
meios eficazes para combatê-lo e, ainda menos, para poder derrotá-lo. Falta
saber, de resto, se toda e qualquer guerra não será, estruturalmente, religiosa
(é uma proposição de Jean-Joseph Goux — que mantenho, aqui, em reserva). Seja
como for, se deixarmos a arte sacrificar-se realmente, materialmente, então é a
própria ideia de humano que estará a consumir-se nos altares da finança
capitalista — essa religião final do Ocidente que, ou terminará, ou nos
exterminará de vez.
•
Tomás Maia
Licenciado em Artes Plásticas – Pintura pela Escola Superior de
Belas-Artes de Lisboa (1991) e doutorado em Filosofia de Arte pela Université
Marc Bloch (2004). Lecciona na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. Publicou,
entre outros, pela Sistema Solar os livros Incandescência. Cézanne e a
Pintura (2015), Persistência da obra I. Arte e Política (2020) e Persistência
da obra II. Arte e Religião (2020).
Nota de edição
Este texto corresponde a um Post-scriptum que Tomás Maia
escreveu, em Novembro de 2022, ao livro Vida
a Crédito. Arte Contemporânea e Capitalismo Financeiro, publicado pela Sistema
Solar em Abril deste ano e que gentilmente cedeu para publicação ao Jornal
Punkto.
Imagem
Fotograma de «Empire» (1964), Andy Warhol
Ficha Técnica
«O
Sacrifício da Arte. Post-scriptum a Vida a
Crédito. Arte Contemporânea e Capitalismo Financeiro» • Tomás Maia
Data de
publicação: 13.12.2022
Edição #36 • Outono 2022 •