La philosophie dans le bidet. Notas sobre capitalismo, território e crise climática • Pedro Levi Bismarck




1.

Segundo uma certa postura filosófica é nos pequenos detalhes do quotidiano que devemos encontrar a resposta para as grandes questões que se colocam diante de nós. É precisamente isso que acontece relativamente às inundações que afectaram a área metropolitana de Lisboa. A resposta — ou, pelo menos, parte dela — está, precisamente, aí, onde menos se poderia esperar: no bidé. Mas não se trata do objecto em si, mas antes, do bidé enquanto objecto de discurso. Neste caso, trata-se do discurso que a Iniciativa Liberal resolveu lançar na Assembleia da República sobre este distinto aparato sanitário que, segundo estes perspicazes políticos, revela todo o abominável poder opressivo e totalitário de um Estado que até a lavagem das partes íntimas não se cansa de legislar. Mas a discussão em causa diz mais do autor do discurso do que do objecto em si mesmo. Isto é, diz mais da postura do capital relativamente ao Estado, da postura do capital português relativamente à figura do Estado como instrumento de planeamento, neste caso específico, como instrumento de planeamento da habitação e, obviamente, também, do próprio do território. É precisamente neste ponto que estes dois temas — bidé e cheias — aparentemente tão díspares se acabam por cruzar.

2.

Ora, o modelo de expansão urbana seguido por Portugal, desde os anos 80, abdicou em grande medida de qualquer papel mediador do Estado: isto é, a intervenção do Estado no planeamento e no ordenamento territorial da expansão urbana e suburbana reduziu-se ao mínimo, legislando só em questões fundamentais, nomeadamente as de higiene: como é, de resto, o caso dos bidés — que procuravam assegurar condições de habitabilidade e higiene mínimas para os padrões de um país europeu. Mas como o crescimento económico português dos anos 80 e 90 assentava fundamentalmente na construção civil e na transformação de solo rural em solo urbano edificável, era preciso construir um quadro legislativo o mais possível elástico e ambíguo capaz de provocar o mínimo de obstáculos à dinâmica de um negócio tão necessário para revitalizar a economia nacional na sua relação entre bancos, créditos bonificados, fundos europeus e construção civil.

A dificuldade em impor regras, regulamentos e modelos, de ordenamento urbano e territorial — ao nível de cérceas dos edifícios, ao nível da densificação urbana, mas também ao nível do espaço público e das suas acessibilidades e redes de transporte — não resulta de um déficit estrutural ou de um atraso crónico português, mas das relações históricas específicas que se estabeleceram entre o Capital e o Estado e da importância que o sector da construção civil adquiriu como força motriz dessa débil economia nacional — que em todo o caso foi desabando ao longo da primeira década deste século, quando esse modelo baseado na procura interna do imobiliário se esgotou, entretanto substituído por um modelo baseado na procura externa do imobiliário, que eventualmente se irá igualmente esgotar, é só uma questão de saber quando.

A densificação da construção, a impermeabilização dos solos, a construção desregulada em zonas precárias e de risco ou em leitos de rio, bem como a inexistência de meios por parte do Estado em avançar com políticas de infra-estrutura correspondentes à expansão urbana em curso — nomeadamente, essas infra-estruturas referentes à gestão e ao escoamento de água, mas tantas outras de necessidade colectiva e social que marcam a periferia das cidades de Lisboa e Porto — são a consequências de um modelo de crescimento urbano regulado ao mínimo que foi sobretudo um modelo de negócio regulado ao mínimo. É por isso, mas não só, que o planeamento urbano nunca foi propriamente uma prioridade em Portugal nos últimos 40 anos: porque nunca foi uma prioridade nem uma necessidade para o próprio Capital na sua evolução e desenvolvimento.

Neste sentido, o modelo de território suburbano que foi construído em Portugal é o modelo da própria Iniciativa Liberal: intervenção estatal mínima, investimento na iniciativa privada — através dos créditos bonificados na compra da habitação própria—, regras de mercado e, por fim, desastre colectivo. Ainda que este modelo tenha criado essa singular figura do capitalismo português que foi (e é!) o «pato-bravo», ele deixou um modelo de  território e um modelo habitação reduzidos à sua pobreza social, estética e energética, com tantas dificuldades em construir uma qualidade de vida aceitável e na capacidade de se adaptar a todo um conjunto de exigências trazidas pela crise climática —  incluindo a redução drástica do uso do automóvel, que foi, na verdade, a unidade mínima de expansão territorial e urbana ao longos dos últimos anos em detrimento de outros meios de transporte, como o comboio ou eléctricos.

Ainda que as alterações climáticas provavelmente expliquem os níveis recordes de precipitação, não explicam tudo, nem podem servir de explicação para tudo, como parece ter-se tornado a regra. Ainda que nem todas as ocorrências de cheias sejam fruto destas políticas urbanas, há todo um modelo que é preciso repensar e que construiu um território urbano e suburbano que hoje apresenta mais defeitos que virtudes e que é uma peça-chave de injustiças climáticas, mas também e, sobretudo, de injustiças sociais e económicas, com áreas de enorme valorização e áreas que permanecem abandonadas e consignadas ao esquecimento, sem infra-estruturas básicas, onde o bidé é ainda um luxo a que nem todos têm direito; zonas essas que têm sido, além disso, as mais afectadas pelas cheias e onde vive uma população já de si fortemente carenciada.

3.

Neste sentido, a IL ilustra bem a ideologia do capital português, não pelas suas ideias, mas por aquilo que se esquece ou simplesmente prefere esquecer. A emergência do Estado social ao longo do século XX prende-se com muitas razões, nomeadamente com as lutas entre o capital e o trabalho, entre a burguesia e a classe operária, tanto como instrumento de mediação e planeamento do capital, como instrumento de controlo integrado do proletariado. Se a sua implementação se torna óbvia a partir da crise de 1929 — até nos próprios Estados Unidos — é porque se tinha tornado evidente que o capital entregue aos capitalistas só podia ter um fim, isto é, a sua autodestruição. O liberalismo das últimas décadas do século XIX trouxe níveis de acumulação de capital nunca vistos, mas apenas porque isso foi feito à custa de uma proletarização generalizada e desenfreada da classe trabalhadora e da exploração colonial intensiva do resto do mundo. O resultado desse processo nas grandes cidades europeias — leia-se por exemplo Engels, ainda em meados do século XIX, e o seu retrato implacável da Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra — foram níveis de miséria e de falta de higiene extremos que desencadearam surtos e epidemias, tornando as próprias cidades inabitáveis ao ponto de obrigar a burguesia a fugir para os seus refúgios campestres, onde se dedicava a lançar os seus elogios à mão invisível do mercado e ao progresso das nações e da civilização.

Se podemos hoje olhar para o bidé como quem olha para o urinol de Duchamp, é porque a sua função em certa medida foi cumprida. Os níveis de salubridade — e em Portugal não é preciso recuar muito anos — conheceram um avanço assinalável, mas apenas porque a burguesia teve de reconhecer — sempre muito lentamente, como é seu apanágio — que era obrigada a actuar para se salvar a si própria, não apenas perante o risco de epidemia, mas também perante o outro risco fundamental que atravessou todo século XX: o risco da revolução. Esta é a história, por exemplo, de uma cidade como Porto, que chegou a 1974, com um problema de salubridade urbana considerável, com uma parte considerável da população a viver em «ilhas» com poucas condições de habitabilidade. Neste sentido, podemos dizer que, de facto, o bidé é o dispositivo técnico por excelência da social-democracia e do seu programa político: na regulação das condições de higiene e da vida da população. Mas sem ele, paradoxalmente, nem a própria IL existiria hoje.

4.

A ironia e a catástrofe do nosso tempo são estas: é no momento que mais cresce o discurso neoliberal contra o Estado (social), que reaparece no horizonte da história futura a necessidade de uma figura de planeamento do capital: já não apenas ao nível da resolução dos conflitos sociais e das condições da classe trabalhadora, mas como instrumento de controlo e planeamento das suas forças num regime de emergência climática e de transição energética. Esta é a ironia. A catástrofe é que, neste processo, ao contrário do que aconteceu no século XX, não há uma Luta de Classes, isto é, não há um Outro político  como o foi o proletariado  capaz de se constituir como uma força política contra o capital. Ora, como bem explicaram os Operaistas italianos, foi de resto a classe operária que salvou o Capital: por um lado, ao tomar em mãos a sua gestão reformista, por outro lado, porque a sua integração resolveu os limites históricos do próprio Capital, ao fazer desta uma classe consumidora. Perante a catástrofe histórica que foi a construção da classe trabalhadora, o capitalismo encontrou através do Estado social, a forma, a figura, o instrumento, capaz de a integrar, enquanto resolvia as suas próprias contradições internas.

No entanto, perante a crise climática estamos sós perante o Capital. Isto significa que, ao contrário daquilo que foi a experiência histórica da social-democracia e do Estado social na segunda metade do século XX, o Capital tenderá a encontrar os mecanismos de controlo-de-si internamente, isto é, serão, em certa medida, essencialmente fascistas na sua composição, formação e nos seus objectivos  como de resto foram o fascismo e o nazismo dos anos 20 e 30 do século passado, e como de resto já há indícios suficientes: no regresso da corrida espacial, na procura por bunkers e abrigos de luxo, em legislação segregacionista e proteccionista de blocos estatais.

É esta a grande questão política do nosso tempo e que marca em pano de fundo uma parte das experiências dos actuais movimentos climáticos: por um lado, a ausência desse Outro político, por outro lado, a tentativa, o desejo, a dificuldade, de lhe dar uma forma — daí todas as dificuldades e ambiguidades, daí o excesso de espontaneidade e a composição marcadamente jovem desses movimentos.  Mas também aqui os avisos históricos dos operaistas mantêm toda a sua lucidez: mais do que recriar a figura capaz de organizar e planear o Capital na era da crise climática, trata-se de recriar o modelo político capaz de o pôr em questão. Não se trata simplesmente de reivindicar a gestão do Capital, mas de abolir o próprio Capital e a sua lógica interna, a sua necessidade infinita e auto-destrutiva de auto-valorização e expansão num mundo finito: em suma, de interromper o ciclo sem fim de desterritorialização e reterritorialização que funda a lógica do capital e que atinge agora a totalidade da escala planetária.

 

 

 

Pedro Levi Bismarck

Co-editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

La Toilette intime ou la Rose effeuillée, Louis Léopold Boilly (1761–1845)

 

Ficha Técnica

«La philosophie dans le bidet. Notas sobre capitalismo, território e crise climática» • Pedro Levi Bismarck

Data de publicação: 15.12. 2022

Edição #36 • Outono 2022 •