1.
Segundo
uma certa postura filosófica é nos pequenos detalhes do quotidiano que devemos encontrar
a resposta para as grandes questões que se colocam diante de nós. É
precisamente isso que acontece relativamente às inundações que afectaram a área
metropolitana de Lisboa. A resposta — ou, pelo menos, parte dela — está,
precisamente, aí, onde menos se poderia esperar: no bidé. Mas não se
trata do objecto em si, mas antes, do bidé enquanto objecto de discurso. Neste
caso, trata-se do discurso que a Iniciativa Liberal resolveu lançar na
Assembleia da República sobre este distinto aparato sanitário que, segundo
estes perspicazes políticos, revela todo o abominável poder opressivo e
totalitário de um Estado que até a lavagem das partes íntimas não se cansa de
legislar. Mas a discussão em causa diz mais do autor do discurso do que do
objecto em si mesmo. Isto é, diz mais da postura do capital relativamente ao
Estado, da postura do capital português relativamente à figura do Estado como
instrumento de planeamento, neste caso específico, como instrumento de planeamento
da habitação e, obviamente, também, do próprio do território. É precisamente
neste ponto que estes dois temas — bidé e cheias — aparentemente tão díspares se
acabam por cruzar.
2.
Ora,
o modelo de expansão urbana seguido por Portugal, desde os anos 80, abdicou em
grande medida de qualquer papel mediador do Estado: isto é, a intervenção do
Estado no planeamento e no ordenamento territorial da expansão urbana e
suburbana reduziu-se ao mínimo, legislando só em questões fundamentais,
nomeadamente as de higiene: como é, de resto, o caso dos bidés — que procuravam
assegurar condições de habitabilidade e higiene mínimas para os padrões de um país
europeu. Mas como o crescimento económico português dos anos 80 e 90 assentava fundamentalmente
na construção civil e na transformação de solo rural em solo urbano edificável,
era preciso construir um quadro legislativo o mais possível elástico e ambíguo
capaz de provocar o mínimo de obstáculos à dinâmica de um negócio tão necessário
para revitalizar a economia nacional na sua relação entre bancos, créditos
bonificados, fundos europeus e construção civil.
A
dificuldade em impor regras, regulamentos e modelos, de ordenamento urbano e
territorial — ao nível de cérceas dos edifícios, ao nível da densificação
urbana, mas também ao nível do espaço público e das suas acessibilidades e
redes de transporte — não resulta de um déficit estrutural ou de um atraso crónico
português, mas das relações históricas específicas que se estabeleceram entre o
Capital e o Estado e da importância que o sector da construção civil adquiriu
como força motriz dessa débil economia nacional — que
em todo o caso foi desabando ao longo da primeira década deste século, quando esse
modelo baseado na procura interna do imobiliário se esgotou, entretanto
substituído por um modelo baseado na procura externa do imobiliário, que
eventualmente se irá igualmente esgotar, é só uma questão de saber quando.
A
densificação da construção, a impermeabilização dos solos, a construção desregulada
em zonas precárias e de risco ou em leitos de rio, bem como a inexistência de
meios por parte do Estado em avançar com políticas de infra-estrutura
correspondentes à expansão urbana em curso — nomeadamente, essas infra-estruturas referentes
à gestão e ao escoamento de água, mas tantas outras de necessidade colectiva e social
que marcam a periferia das cidades de Lisboa e Porto — são a consequências de
um modelo de crescimento urbano regulado ao mínimo que foi sobretudo um modelo
de negócio regulado ao mínimo. É por isso, mas não só, que o planeamento
urbano nunca foi propriamente uma prioridade em Portugal nos últimos 40 anos:
porque nunca foi uma prioridade nem uma necessidade para o próprio Capital na
sua evolução e desenvolvimento.
Neste
sentido, o modelo de território suburbano que foi construído em Portugal é o
modelo da própria Iniciativa Liberal: intervenção estatal mínima, investimento
na iniciativa privada — através dos créditos bonificados na compra da habitação
própria—, regras de mercado e, por fim, desastre colectivo. Ainda que este
modelo tenha criado essa singular figura do capitalismo português que foi (e é!)
o «pato-bravo», ele deixou um modelo de território e um modelo habitação reduzidos à sua pobreza social, estética e energética, com tantas dificuldades em construir
uma qualidade de vida aceitável e na capacidade de se adaptar a todo um
conjunto de exigências trazidas pela crise climática — incluindo a redução drástica do uso do
automóvel, que foi, na verdade, a unidade mínima de expansão territorial e
urbana ao longos dos últimos anos em detrimento de outros meios de transporte,
como o comboio ou eléctricos.
Ainda
que as alterações climáticas provavelmente expliquem os níveis recordes de
precipitação, não explicam tudo, nem podem servir de explicação para tudo, como
parece ter-se tornado a regra. Ainda que nem todas as ocorrências de cheias
sejam fruto destas políticas urbanas, há todo um modelo que é preciso repensar
e que construiu um território urbano e suburbano que hoje apresenta mais
defeitos que virtudes e que é uma peça-chave de injustiças climáticas, mas
também e, sobretudo, de injustiças sociais e económicas, com áreas de enorme
valorização e áreas que permanecem abandonadas e consignadas ao esquecimento,
sem infra-estruturas básicas, onde o bidé é ainda um luxo a que nem todos têm
direito; zonas essas que têm sido, além disso, as mais afectadas pelas cheias e
onde vive uma população já de si fortemente carenciada.
3.
Neste
sentido, a IL ilustra bem a ideologia do capital português, não pelas suas
ideias, mas por aquilo que se esquece ou simplesmente prefere esquecer. A
emergência do Estado social ao longo do século XX prende-se com muitas razões,
nomeadamente com as lutas entre o capital e o trabalho, entre a burguesia e a classe
operária, tanto como instrumento de mediação e planeamento do capital, como
instrumento de controlo integrado do proletariado. Se a sua implementação se
torna óbvia a partir da crise de 1929 — até nos próprios Estados Unidos — é
porque se tinha tornado evidente que o capital entregue aos capitalistas só
podia ter um fim, isto é, a sua autodestruição. O liberalismo das últimas
décadas do século XIX trouxe níveis de acumulação de capital nunca vistos, mas apenas
porque isso foi feito à custa de uma proletarização generalizada e desenfreada
da classe trabalhadora e da exploração colonial intensiva do resto do mundo. O
resultado desse processo nas grandes cidades europeias — leia-se por exemplo
Engels, ainda em meados do século XIX, e o seu retrato implacável da Situação
da Classe Trabalhadora em Inglaterra — foram níveis de miséria e de falta
de higiene extremos que desencadearam surtos e epidemias, tornando as próprias
cidades inabitáveis ao ponto de obrigar a burguesia a fugir para os seus
refúgios campestres, onde se dedicava a lançar os seus elogios à mão
invisível do mercado e ao progresso das nações e da civilização.
Se podemos
hoje olhar para o bidé como quem olha para o urinol de Duchamp, é porque
a sua função em certa medida foi cumprida. Os níveis de salubridade — e em
Portugal não é preciso recuar muito anos — conheceram um avanço assinalável, mas
apenas porque a burguesia teve de reconhecer — sempre muito lentamente, como é
seu apanágio — que era obrigada a actuar para se salvar a si própria, não
apenas perante o risco de epidemia, mas também perante o outro risco
fundamental que atravessou todo século XX: o risco da revolução. Esta é a
história, por exemplo, de uma cidade como Porto, que chegou a 1974, com um
problema de salubridade urbana considerável, com uma parte considerável da
população a viver em «ilhas» com poucas condições de habitabilidade. Neste
sentido, podemos dizer que, de facto, o bidé é o dispositivo técnico por excelência
da social-democracia e do seu programa político: na regulação das condições de higiene
e da vida da população. Mas sem ele, paradoxalmente, nem a própria IL existiria
hoje.
4.
A
ironia e a catástrofe do nosso tempo são estas: é no momento que mais cresce o
discurso neoliberal contra o Estado (social), que reaparece no horizonte da história
futura a necessidade de uma figura de planeamento do capital: já não apenas ao
nível da resolução dos conflitos sociais e das condições da classe
trabalhadora, mas como instrumento de controlo e planeamento das suas forças
num regime de emergência climática e de transição energética. Esta é a ironia.
A catástrofe é que, neste processo, ao contrário do que aconteceu no
século XX, não há uma Luta de Classes, isto é, não há um Outro político — como o foi o proletariado — capaz de se constituir como uma força política contra
o capital. Ora, como bem explicaram os Operaistas italianos, foi de
resto a classe operária que salvou o Capital: por um lado, ao tomar em mãos a
sua gestão reformista, por outro lado, porque a sua integração resolveu
os limites históricos do próprio Capital, ao fazer desta uma classe consumidora.
Perante a catástrofe histórica que foi a construção da classe trabalhadora, o
capitalismo encontrou através do Estado social, a forma, a figura, o
instrumento, capaz de a integrar, enquanto resolvia as suas próprias contradições
internas.
No
entanto, perante a crise climática estamos sós perante o Capital. Isto
significa que, ao contrário daquilo que foi a experiência histórica da
social-democracia e do Estado social na segunda metade do século XX, o Capital tenderá
a encontrar os mecanismos de controlo-de-si internamente, isto é, serão,
em certa medida, essencialmente fascistas na sua composição, formação e
nos seus objectivos — como de resto foram o fascismo e o nazismo
dos anos 20 e 30 do século passado, e como de resto já há indícios suficientes:
no regresso da corrida espacial, na procura por bunkers e abrigos de
luxo, em legislação segregacionista e proteccionista de blocos estatais.
É
esta a grande questão política do nosso tempo e que marca em pano de fundo uma
parte das experiências dos actuais movimentos climáticos: por um lado, a
ausência desse Outro político, por outro lado, a tentativa, o desejo, a
dificuldade, de lhe dar uma forma — daí todas as dificuldades e ambiguidades,
daí o excesso de espontaneidade e a composição marcadamente jovem desses movimentos.
Mas também aqui os avisos históricos dos
operaistas mantêm toda a sua lucidez: mais do que recriar a figura capaz
de organizar e planear o Capital na era da crise climática, trata-se de recriar
o modelo político capaz de o pôr em questão. Não se trata simplesmente de reivindicar
a gestão do Capital, mas de abolir o próprio Capital e a sua lógica interna, a sua
necessidade infinita e auto-destrutiva de auto-valorização e expansão num mundo
finito: em suma, de interromper o ciclo sem fim de desterritorialização e
reterritorialização que funda a lógica do capital e que atinge agora a
totalidade da escala planetária.
•
Pedro Levi Bismarck
Co-editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta,
investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da
Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagem
La Toilette intime ou la Rose effeuillée, Louis Léopold Boilly (1761–1845)
Ficha Técnica
«La philosophie dans le bidet. Notas sobre
capitalismo, território e crise climática» • Pedro Levi Bismarck
Data de publicação: 15.12. 2022
Edição #36 • Outono 2022 •