A luta feminista portuguesa pelo aborto seguro e legal – a revolução está cada vez mais próxima! • Joana Teixeira

 



Apontada como uma das mais importantes lutas feministas atuais, o acesso ao aborto seguro e legal é, ainda, alvo de aceso e violento de debate em todas as regiões mundiais. Embora permaneça uma questão bastante complexa e polémica, o acesso ao aborto seguro e legal é efetivamente um dos direitos humanos mais negligenciados do mundo – convictamente, a luta feminista afirma a ilegalização e a criminalização do aborto como uma grave violação dos direitos humanos.

Marcada pelas crenças ideológicas e religiosas, a história da interrupção da gravidez destaca-se essencialmente pela sua permanência temporal e espacial. Da Antiguidade à Idade Média, o aborto era uma preocupação exclusiva das mulheres e das parteiras que, encarado como uma prática não-livre, evidenciava a importância dos problemas sociais, como a pobreza e a prostituição; e dos problemas criminais, como o concubinato, o adultério, a violação e a privação de descendência. Da Idade Média à Idade Contemporânea, o aborto era uma preocupação inclusive do Estado que, encarado como uma prática proibida, evidenciava a importância da maximização do lucro na preservação do papel doméstico e materno feminino, na transformação do aborto num conflito de interesses e na visualização do feto numa potencial fonte de riqueza e de poder.

Atravessando épocas históricas distintas, a alteração da visão política, ideológica, económica, social, moral e religiosa do aborto deve-se à inicial construção do patriarcado, definindo as suas estruturas opressoras ao serviço da família patriarcal na transformação da mulher como instrumento exclusivo de desejo e de procriação; e à posterior apropriação do patriarcado pelo capitalismo, definindo as suas estruturas opressoras ao serviço da relação de domínio e de submissão na exploração não-remunerada e remunerada da mulher.

Mutáveis no tempo e no espaço, a alteração das justificações económicas e sociais distinguem o aborto de luxo, praticado por mulheres ricas à custa da ocultação da gravidez adúltera e da preservação da fortuna e da herança, justificando a boa condição de vida da classe burguesa; do aborto de necessidade, praticado por mulheres pobres à custa da violenta jornada laboral e da falta de proteção materno-infantil, justificando a miserável condição de vida da classe trabalhadora. Ainda, a alteração das justificações políticas, ideológicas e religiosas distinguem o aborto seguro e legal que, maioritariamente praticado em países ditos desenvolvidos, é realizado por profissionais especializados com meios técnicos e higiénicos adequados num ambiente clínico e pacífico, apresentando poucas possibilidades de complicações; do aborto inseguro e ilegal que, maioritariamente praticado em países ditos em desenvolvimento, é realizado por pessoas não-qualificadas com meios técnicos e higiénicos precários, como venenos, intoxicantes, perfurações e descolamentos, num ambiente furtivo e precipitado, apresentando imensas possibilidades de complicações graves, como hemorragia, septicemia, infertilidade, dor crónica e morte.

Sujeita à facilitada variação política, ideológica, económica, social, moral e religiosa dos decisores políticos, a simplificada flutuação da acessibilidade e da restritividade do aborto é um crime cometido contra pessoas inseridas em contextos económicos, étnicos, sexuais e sociais especialmente vulneráveis. Condenadas a uma vivência marcada pela violência, a perpetuação do aborto inseguro e ilegal é a perpetuação da condenação das pessoas grávidas à morte ou à prisão.

À sombra da criminalização do aborto, da proibição da divulgação e da venda de métodos contracetivos, o flagelo do aborto clandestino estava intimamente relacionado com o alto patrocínio estatal das dificuldades económicas, do obscurantismo e do preconceito moral e religioso. Numa população de maioria analfabeta, a imposição da violência e da opressão não excluiu as mulheres que, sob a forte influência dos costumes patriarcais, estavam obrigadas à obediência aos maridos e condicionadas no acesso à educação e à saúde – esta era a grave situação portuguesa antes de 1974, estimando-se a realização de cem mil a duzentos mil abortos ilegais por ano, dos quais dois porcento resultavam na morte da pessoa grávida.

A proibição do aborto permanece intata no início do período democrático português, estando ademais relacionada com o preconceito político e ideológico. Destaca-se a primeira reivindicação pelo direito ao aborto seguro e legal, de iniciativa do Movimento de Libertação de Mulheres, logo em 1974; o primeiro projeto-lei pela legalização do aborto até às doze semanas de gestação de iniciativa do Partido Comunista Português em 1982; e a aprovação do projeto-lei pela despenalização do aborto em caso de violação, de malformação fetal e de perigo físico e psicológico da pessoa grávida de iniciativa do Partido Socialista em 1984.

Excessivamente condicionada pelo obscurantismo dogmático católico dos decisores políticos, a luta feminista portuguesa pela legalização da interrupção da gravidez estava profundamente amordaçada, estimando-se a realização de dezoito mil abortos ilegais por ano. Justificando justamente este condicionalismo moral e religioso, a apresentação do projeto-lei pela legalização do aborto até às dez semanas de gestação foi submetida a referendo nacional pelo Presidente Jorge Sampaio, após um acordo realizado entre o líder socialista António Guterres e o líder social-democrata Marcelo Rebelo de Sousa. Constituindo o primeiro referendo nacional, em 1998, a sua campanha política bastante polarizada é considerada um dos mais intensos momentos de debate público da democracia portuguesa, destacando-se pela mobilização política da Igreja Católica e das suas organizações associadas e pela ausência política do Partido Socialista e do Partido Social-Democrata. Apresentando uma grande capacidade de influência social, a Igreja Católica realizou uma campanha agressiva e emocional, utilizando a retórica e imagética violenta e culpabilizadora, na defesa convicta da vida desde a conceção até à morte; e na crítica grosseira da tentativa de despenalização do assassinato fetal, comparando as clínicas abortivas às câmaras de gás da solução final nazi.

Condicionada pela continuação da proibição do aborto, a luta feminista conquistava apenas pequenas e residuais vitórias – como consequência da denúncia contínua de processos, de julgamentos e de condenações de pessoas com útero pela prática de aborto ilegal e clandestino, permitiu-se a aprovação da criação do subsídio social de parentalidade; da distribuição gratuita de métodos contracetivos; e da venda livre de pílula do dia seguinte. Neste sentido, a proposta de referendo nacional pela legalização do aborto até às dez semanas de gestação foi novamente submetida pelo Presidente Cavaco Silva – constituindo o segundo referendo nacional sobre a interrupção da gravidez, em 2007. A sua campanha, bastante polarizada, destacou-se pela mobilização política de dezanove organizações civis e partidárias e pela ausência política do Partido Social-Democrata. Apresentando uma grande capacidade mobilizadora, o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista Português e o Partido Socialista realizaram uma campanha diversificada e confiante, utilizando a retórica tranquila e respeitadora, na crítica convicta da ineficácia legislativa para o impedimento do aborto clandestino e das suas consequências; e na defesa determinada da melhoria das condições de vida das mulheres e das famílias portuguesas.

Publicada no Diário da República a 17 de abril de 2007, a lei consagra finalmente a legalidade da interrupção voluntária da gravidez nas primeiras dez semanas de gestação, mediante o cumprimento obrigatório do período de reflexão de três dias, após ser dado o conhecimento das consequências do aborto; das condições do apoio estatal na gravidez e na parentalidade; e da disponibilidade do acompanhamento psicológico.

Em consequência de muitos sofrimentos, de muitas condenações e de muitas mortes, o feminismo português conquistou o direito fundamental ao aborto seguro e legal – um passo importante para a libertação de quem passa por uma gravidez indesejada dos preconceitos políticos, morais, religiosos e patriarcais, de caráter exclusivamente conservador e opressor. No entanto, o presente diploma é considerado extraordinariamente insuficiente para o acesso facilitado à interrupção da gravidez. Destaca-se o caráter restritivo da legalidade das dez semanas de gestação, considerando a importância da sua obrigatoriedade na sujeição da deslocação anual de quinhentas pessoas grávidas ao território espanhol, para a realização do procedimento médico; o peso da obrigatoriedade das dez semanas implica dificuldade de acesso aos meios e aos serviços adequados por pessoas grávidas em contexto político, económico, étnico, sexual e social de especial vulnerabilidade. Ainda, este presente diploma é considerado extremamente conservador e preconceituoso para o acesso facilitado à interrupção da gravidez. É de salientar o seu caráter moralista e paternalista na exigência do cumprimento do período de reflexão de três dias, considerando a importância da sua obrigatoriedade na sujeição das pessoas grávidas a um ambiente incômodo, de maior estigma e preconceito para o efetivo controlo autónomo dos seus corpos.

Deste modo, exige-se a legalidade da interrupção voluntária da gravidez até às vinte e quatro semanas de gestação, considerando a importância do alargamento do atual prazo legal, que constitui um dos períodos mais curtos e restritivos a nível mundial, nos países onde o aborto é legal. Este alargamento legal permite uma maior tranquilidade na deteção da gravidez e na utilização dos meios e dos serviços médicos necessários e adequados. Exige-se a retirada da obrigatoriedade do cumprimento do período de reflexão, considerando a importância de uma decisão tranquila e ponderada apenas de acordo com a consciência pessoal. Condena-se a infantilização nefasta e lamentável das mulheres e das pessoas grávidas, particularmente das pessoas grávidas em condições de especial vulnerabilidade, na sujeição ao cumprimento ridículo da reflexão para o efetivo controlo autónomo dos seus corpos e destinos, permitindo o atraso artificial dos procedimentos burocráticos e médicos. Condena-se a objeção de consciência dos profissionais médicos, particularmente dos profissionais especializados em ginecologia e em obstetrícia, nos estabelecimentos de saúde públicos – a utilização da objeção de consciência promove a dificuldade ao acesso à interrupção voluntária da gravidez, permitindo o atraso dos procedimentos burocráticos e médicos, condenando as pessoas grávidas à deslocação geográfica, à utilização de estabelecimentos de saúde privados ou à gravidez indesejada. Ainda, exige-se o alargamento da implementação do ensino adequado da educação sexual ao grau básico, secundário e superior de aprendizagem em todos os estabelecimentos de ensino públicos ou privados; e exige-se o alargamento da implementação do planeamento familiar adequado a todos os indivíduos em todos os estabelecimentos de saúde públicos ou privados, contando com a informação sobre a sexualidade, as doenças sexualmente transmissíveis e os métodos contracetivos e com a consequente distribuição gratuita de todos os métodos contracetivos e de todos os produtos de higiene íntima e menstrual.

A luta feminista pelo acesso ao aborto seguro e legal não é uma luta isolada, pautando-se pelo acesso facilitado aos restantes direitos fundamentais, nomeadamente o direito à educação e à educação sexual; o direito à saúde e ao planeamento familiar; o direito à habitação digna; e o direito ao trabalho justo e remunerado.

O aborto seguro e legal é uma luta constantemente desvalorizada e violada em todas as regiões mundiais, bastando uma ligeira variação política, ideológica, económica, social, moral e religiosa dos decisores políticos para condenar e questionar os direitos conquistados das camadas económicas, étnicas, sexuais e sociais mais vulneráveis. Provando justamente esta variação, a Administração Central do Sistema de Saúde enviou uma proposta ao Ministério da Saúde para a adoção de novos critérios de avaliação das equipas médicas nas Unidades de Saúde Familiar Modelo B, prevendo o corte do bónus salarial mediante a realização de interrupções voluntárias da gravidez e a existência de doenças sexualmente transmissíveis nas mulheres pacientes. Sob a responsabilização pelas fragilidades do planeamento familiar, os nossos direitos são imediatamente atacados – o controlo dos nossos corpos e dos nossos destinos pertence-nos!

Embora o movimento feminista português tenha sido momentaneamente esvaziado e despolitizado após a conquista do aborto seguro e legal, este voltou à carga com a realização de reivindicações, de manifestações e de greves. A luta política e revolucionária feminista precisa reivindicar novamente as nossas vozes e as nossas ruas, arriscando o ataque personalizado e dirigido aos nossos ativistas e aos nossos direitos como resultado do crescimento acelerado das forças conservadoras e reacionárias – um dia a menos na luta pode significar um retrocesso de décadas. Agradecemos particularmente o feminismo inclusivo das mulheres brancas e racializadas; das mulheres queer e lésbicas; dos homens trans; das mulheres com condicionalidades neuropsicomotoras; das pessoas não-binárias e intersexo – o feminismo está nas ruas em força para reivindicar a luta de todos.

Conscientes das nossas diferenças de classe, de raça e de género, precisamos de uma violenta e revolucionária transformação política, económica, social, cultural e moral – a luta feminista continua, e o nosso lugar é na frente da revolução!

 

 

Joana Teixeira

Nasceu em Matosinhos, no ano 2000. Realizou o ensino secundário na Escola Básica e Secundária Rodrigues de Freitas e é atualmente estudante de Estudos Europeus, Estudos Lusófonos e Relações Internacionais na Universidade Lusófona do Porto.

 

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Manifestação pró-aborto em frente à Assembleia da República, 1998 ©Diário de Notícias

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 18.05.2022

Edição #35 • Primavera 2022 •