Para lá da guerra e da paz • Luhuna Carvalho


 

Nos últimos dias, uma chuva torrencial de “posições” foram tomadas por todos que assistimos em pânico ao desenrolar de uma possível catástrofe. As redes sociais transformaram-se, pela enésima vez, num sucedâneo de praça pública onde algo parecido com uma “voz” pessoal ensaia o seu alcance. Independentemente do que assumiu cada um, independentemente do lado para que tenda a sensibilidade que se professa, há um par de coisas relativamente transversais ao espectro das opiniões assumidas.

A primeira é que nenhuma destas posições tem, aparentemente, a mínima relevância para o desenrolar dos acontecimentos. Todos senão os mais ingénuos sabem isto, e mesmo assim não conseguimos não as expressar. A tomada de posição “pública” isolada consiste hoje numa espécie de auto-congratulação cívica, onde a consciência plena da impotência é compensada pelo som e pela fúria com que conseguimos expressar uma indignação fantasma. Essa indignação fantasma, por ser partilhada por milhões de pessoas, acaba efectivamente por adquirir contornos reais, mas essa materialidade é em si um perigo. Irei regressar a este problema. 

O segundo elemento transversal é que nenhuma destas posições encontra espaço para se afirmar sem reservas ou ambiguidades. Todas elas passam por “sim, mas...” ou “eu não gosto de X, mas Y é pior”. Mesmo no que contêm de antagónico, as posições espelham-se. Quem não apoia Putin tem de jurar o seu não apoio à NATO, quem não apoia a NATO tem de jurar o seu não apoio a Putin. De ambos os lados os argumentos facilmente resvalam para uma espiral de demagogia difícil de tragar.

Para lá desta falsa dicotomia surge uma outra posição, aparentemente sã e contida, que se expressa de vários modos. Há a versão ingénua que afirma simplesmente ser “pela paz” ou que afirma que todas as guerras são apenas a expressão da testosterona dos ricos e dos poderosos, ou que suspira apenas “como é possível que em 2022 ainda aconteçam esta coisas”, como se tivessem progressivamente acontecido menos guerras em vez de mais.

Mas há também a versão mais complexa desta ideia – que é na verdade a única posição ética correcta – onde se assume ser contra Putin e contra a NATO, contra as guerras entre os povos, os proletários, pelos pobres, pelo povo de todo o mundo. O problema desta posição não é a sua justeza. Ela é de facto justa. O problema é que ela é uma posição fantasma. Em termos concretos, ela pouco quer dizer. Se ante a materialidade de um conflito que realmente existe o único que há a dizer é que o conflito é “mau”, então isso não é uma posição, é apenas procurar com que a nossa consistência ética mascare ou colmate a nossa impotência concreta.

É isto que se torna óbvio nesta guerra: a inexistência, no terreno politico, para lá de qualquer ilusão, de qualquer poder “emancipatório”, de qualquer potencialidade politica a afirmar contra a guerra, de qualquer posição concreta a assumir. O que a guerra – esta guerra – nos obriga a confrontar eticamente não é a justeza e a beleza dos nossos ideais, mas sim a brutal inexistência e incapacidade de os aplicar materialmente. Todos conhecemos guerras onde seria absolutamente claro de que lado estar. Hoje elas rareiam. Não é a menor das tragédias desse eclipse que hoje o único que sobre seja publicitar uns aos outros as nossas melhores intenções.

Que hoje (a manhã de 1 de Março) a resposta do bloco “ocidental” à invasão da Ucrânia seja uma espécie de “cancelamento” soberano da Rússia augura o pior. Antes de mais nada, é extremamente interessante que inúmeras empresas venham tingir os seus perfis nas redes sociais de bandeiras da Ucrânia do mesmo modo que há um par de anos postaram quadrados negros em solidariedade com o Black Lives Matter, ou que venham então declarar publicamente que deixarão de distribuir os seus produtos na Rússia, em linha com a tendência contemporânea onde as empresas nos enfiam os seus compromissos éticos goela abaixo. A pressão social e política, o célebre “activismo” que nos últimos anos emergiu enquanto uma subjectividade política de pessoas que primeiramente se identificam enquanto “consumidores”, e que portanto agem a partir dos seus hábitos de consumo, materializa-se agora enquanto arma de guerra, enquanto instrumento soberano. A arma do “ocidente” contra a Rússia parece ser querer negar-lhe existência social, como se Putin fosse um comediante caído em desgraça que é retirado de um serviço de streaming e desmonetarizado no Youtube.

Ora, a negação da existência do outro é uma forma politica contemporânea vulgar, o próprio Putin nega a existência real da Ucrânia. O problema aqui é que a existência da Rússia, ao contrario da existência eminentemente espectacular do comediante ou do produtor, é substanciada pelo seu poderio militar.

Não se pode “cancelar” um poder nuclear.

O resultado é potencialmente catastrófico: se me é negado reconhecimento, então tenho as mãos livres para fazer o que bem entender, já que o único limite passa a ser o da materialidade das forças opostas.

O reverso da medalha, que também já era explícito antes, é que quando se exclui alguém da esfera social o que se faz é reforçar o encerramento sobre si próprio dessa mesma esfera social. Quando um grupo cria um inimigo interno e o expulsa, ele concretiza apenas uma ideia mais fechada de si próprio. O que surgirá do cancelamento da Rússia será uma União Europeia militarizada em processo de se tentar reconstituir enquanto bloco hegemónico. O pior desse processo é que a identidade da União Europeia se baseia em reconhecer a si própria enquanto o baluarte da liberdade e da democracia. E como toda a gente sabe, não há violência mais cega e abjecta do que aquela que é feita por gente que se crê impoluta. O que resta do século XXI será marcado por uma inaudita violência sobre todo o tipo de excluídos que se apresentará a si própria enquanto inclusiva, representativa e cidadanista. Não faltará muito para o momento em que os digital influencers mais woke sejam chamados pelos estados a justificar publicamente os piores massacres.

Ironicamente, é essa mesma impossibilidade de tomar uma posição que indica um caminho para lá da ambiguidade, para lá do nostalgismo impotente, para lá do autoritarismo liberal que vem. E fá-lo de dois modos.

Primeiro, que a geopolítica se tenha vindo a constituir por blocos capitalistas rivais não é um sinal de triunfo do capitalismo, é um sinal do seu colapso. O capitalismo triunfou politica e tecnicamente onde não se conseguiu afirmar eticamente. A expansão global do capital não criou uma paz universal, criou uma guerra permanente.

Esse colapso não significa, de nenhum modo, a emergência de um socialismo por vir ou de qualquer outra forma emancipatória latente. A implosão do capitalismo significará apenas a explosão de micro-tiranias. A “multipolaridade” que tantos advogam sem perceber que é um conceito de extrema-direita será apenas uma guerra sem fim, na medida em que será a multiplicação, e não uma negação, da violência do poder soberano.

Mas esse colapso desenha também, de modo cada vez mais claro, os contornos das formas que são específicas ao capitalismo, e revela, também, que esse colapso será transversal às suas formas imperiais e soberanas. Trocado por miúdos: o poder a conquistar, o “nosso” poder, surgirá dos interstícios da crise interna aos blocos hegemónicos e não da escolha de um deles contra o outro. Não há aparatos produtivos ou soberanos a conquistar, há apenas um mundo a desertar, desenvolvendo os instrumentos sociais, políticos e técnicos que permitam criar um outro.

Segundo, é possível defender “o povo” quando “o povo” não tem expressão política? Quando esse “povo” não tem, materialmente, os meios formais ou informais, espontâneos ou organizados, de se expressar? Quando “o povo” não se reconhece enquanto povo, enquanto plebe, enquanto proletariado, mas enquanto português, ucraniano, russo, enquanto classe criativa, enquanto empreendedor, enquanto cidadão? Não.

O colapso da esquerda ocorreu quando ela se deixou enfeitiçar pela noção de que os sujeitos políticos que ela quer criar existem simplesmente na natureza. A esquerda assenta hoje nos pés de barro que são as categorias políticas que ela crê existir, mas que lhe escapam entre os dedos. O “povo”, a “classe”, os “excluídos”, etc., só existem politicamente quando agem contra as suas definições sociológicas e identitárias. É absolutamente vão afirmar que se é contra a guerra pelos povos quando estes não têm uma existência politica capaz de agir por si própria.

Mas é possível então assumir que a função da organização politica é precisamente a construção de uma potência comum e não a defesa de uma posição moral ou de uma ideia abstracta. A constituição de “um povo” ocorre através de encontros e rupturas. A organização desses encontros e dessas rupturas em termos concretos – e necessariamente imperfeitos – é a única posição politica que sobra ao colapso em curso.

Dito de outro modo, ser contra a sua guerra, a guerra dos poderosos, significa ser também contra a sua paz, a paz dos poderosos. E se somos contra a sua paz, então somos pela nossa força. O único gesto politico que sobra é então a invenção de uma força nossa, que se expresse nas formas de cuidado e de radicalidade que formos capaz de colectivamente criar.

 

 

Luhuna Carvalho

Luhuna Carvalho nasceu em 1980, em Lisboa.

 

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1. Mekong River Delta

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 02.03.2022

Edição #34 • Inverno 2022 •