A recusa
do processo de vacinação por um segmento considerável da população na Europa (mas também nos EUA) e
as manifestações que cruzaram vários países europeus no passado fim-de-semana
contra as medidas de confinamento e, particularmente, contra as medidas de
confinamento dirigidas aos não-vacinados, merecem uma reflexão, porque parecem
traduzir a forma de um conflito ou, pelo menos, a expressão de uma “resistência”
que não é apenas de natureza sanitária, mas é, antes de mais, de natureza
política (não apenas no sentido em que as opções sanitárias são políticas, mas
porque nessa recusa são apresentados argumentos que envolvem uma condição
política do corpo – do corpo individual
e do corpo comum).
Numa
análise bastante empírica, atrever-me-ia a dizer que, no campo geral da recusa da
vacinação e das medidas de confinamento, existem dois tipos de argumentos: por
um lado, argumentos que se constituem a partir de uma ideia de defesa da liberdade
individual contra medidas de restrição implementadas pelo Estado; por outro
lado, argumentos que se constituem no campo da autonomia individual do corpo
contra a obrigatoriedade da vacina e do direito à escolha. Quanto aos primeiros,
que mobilizam a retórica geral contra o confinamento interessa assinalar,
apenas brevemente, um aspecto fundamental: estes argumentos nada têm que ver
com a expressão de uma singularidade, mas são simplesmente a
expressão daqueles que perderam qualquer relação com essa singularidade;
são menos a defesa de uma qualquer liberdade individual do que a expressão de
uma atomização absoluta do indivíduo face à possibilidade de um comum, neste
sentido, eles, críticos intrépidos do Estado, não são mais que os filhos pródigos
do próprio Estado (e do Capital), que o recusam apenas para poderem ser a sua
imagem: filhos, portanto, da máquina estatal neoliberal, filhos do mercado,
para quem a ideia de liberdade designa apenas o direito ao seu «espaço vital»
(«lebensraum», convocando aqui o termo que os nazis utilizaram para designar
esse espaço necessário de sobrevivência da comunidade ariana e que serviu para
legitimar as suas aspirações territoriais na Segunda Guerra Mundial).
O
segundo tipo de argumentos, que se prende sobretudo com a resistência à
obrigatoriedade da vacina, merece um pouco mais de atenção. Não será sem dúvida
uma coincidência que os números mais expressivos de recusa de vacinação se
encontrem em países do Norte e Centro da Europa, como a Áustria e a Alemanha, e
em países do Leste. Também aqui podemos identificar dois factores: primeiro,
uma clara desconfiança relativamente ao Estado, no caso sobretudo dos países do
Leste Europeu, que se deve menos (ao contrário do que alguns gostariam de
pensar) à experiência dos regimes socialistas e mais ao “estado” em que as
últimas décadas de neoliberalismo fulgurante deixaram o Estado e a sociedade
civil destes países; segundo, uma desconfiança, que aparece em alguns segmentos
de população (com um nível de escolaridade e de conhecimento consideravelmente
alto) não relativamente ao Estado propriamente dito, mas às instituições da
sociedade e do Capital no seu todo: uma desconfiança absoluta relativamente aos
seus processos de produção material, mas também aos seus processos de
legitimação, de comunicação, enfim, de produção de saber.
Neste
campo específico, as ambiguidades históricas da indústria farmacêutica no seu
todo, vista como uma máquina de negócio sem fim à custa da saúde de todos, pesaram
tanto quanto a incerteza e a informação contraditória que foi circulando
relativamente à eficácia da(s) vacina(s). Mas não só: a ambiguidade actual dos
processos de fabricação da produção alimentar, a incapacidade do Estado em
regulamentar essa produção e de impor regras claras e limites a um modo de
produção de alimentos que nos envenena todos os dias e envenena os ecossistemas
naturais, é decisivo na procura cada vez maior de modelos de consumo e formas
de vida “alternativas” capazes de se subtraírem a esse sistema geral da
produção – o que obviamente só está acessível àqueles que podem aprofundar um
nível de saber e que têm um rendimento capaz de suportar esse conjunto de
escolhas. Enfim, em pano de fundo, está uma desconfiança absoluta e crescente,
quer relativamente ao sistema económico da produção capitalista, quer às
instituições políticas que o gerem. Mas também, diga-se, uma desconfiança
generalizada relativamente aos meios de comunicação social que fizeram do
terreno da pandemia o guião de um filme interminável em nome das capacidades de
sedução e sedação do princípio da catástrofe iminente.
Por
outro lado, essa malaise, esse sentimento de mal-estar e incerteza, é
também um factor decisivo na construção de uma hiperconsciência paranóica em
torno da integridade física e moral do corpo e da própria vida, e, por isso, na
afirmação de um espaço de sobrevivência, de um lebensraum, cada vez
mais individual e individualizado, fundado na crença de uma absoluta
inviolabilidade do corpo privado.
Numa
reportagem realizada na Áustria, uma italiana, casada e com dois filhos, dizia
que recusava a vacinação porque acreditava que um corpo saudável será sempre
capaz de combater a doença: a doença surge e alimenta-se das condições
ambientais em que o corpo existe e, portanto, são essas condições óptimas que é
preciso assegurar. O argumento é interessante, sobretudo porque encontramos
nele uma racionalidade própria (isto é, não é a simples expressão vazia de um
qualquer conceito vago e vazio de liberdade individual), reconhecendo uma
co-pertença e uma co-relação entre meio físico e social e corpo biológico. Mas
o facto curioso aqui não é tanto o argumento, mas a conclusão que é extraída a
partir dele: ora, não é precisamente o facto do corpo ser uma entidade em
co-pertença com o mundo que torna inválido todo e qualquer mecanismo baseado na
pura protecção individual? Não é precisamente a afirmação da relação corpo-meio
que repõe uma relação inevitável de continuidade entre todos os corpos? E, no
entanto, o argumento é usado para legitimar a subtracção do corpo relativamente
ao meio, para o isolar relativamente a esse meio, em nome de um direito à sua gestão
privada.
Não
se trata aqui simplesmente do dever à «protecção do outro», o que seria já por
si suficientemente válido, isto é, a vacina protege-nos não apenas a nós, mas aos
outros, àqueles que por várias razões, não têm condições para exercer esse tal
modelo de vida capaz de resistir à doença (falo obviamente dos mais velhos,
daqueles que têm quadros clínicos difíceis, mas sobretudo, de grande parte da
população que vive em situações financeiras miseráveis um pouco por todo o
mundo). É óbvio que poderíamos encontrar ainda, e devemos encontrar, medidas
capazes de defender a vida dos mais susceptíveis, em vez de encontrarmos na
figura do confinamento o remédio para todos os males. Mas a vacina de uma
maneira ou de outra permite isso (ainda que de forma imperfeita), protegendo
não apenas os mais frágeis, mas também assegurando condições de acesso
universal ao serviço nacional de saúde; e sobretudo, permite encontrar modos de
controlo da pandemia a nível nacional e mundial de forma a evitar a
multiplicação de variantes.
Colocado
nestes termos, a recusa da vacina ocupa, literalmente, uma ecologia política
própria, mas aquilo que esta exprime não é uma resistência política ao Capital,
nem a possibilidade de um conflito face ao Estado e muito menos um direito de
autonomia política. Voltando à formulação inicial, ela é a expressão de uma
singularidade que também aqui perdeu todo e qualquer corpo individual e comum,
uma singularidade sem corpo que aceitou já à partida aquilo que diz não
poder tolerar: a politização da vida. Politização absoluta da vida,
politização absoluta do corpo, justamente, porque faz dos limites do corpo os limites
desse lebensraum, privatizando, individualizando ao extremo, no
próprio corpo, esse espaço da sobrevivência vital da comunidade. Mas se podemos
falar de uma singularidade sem corpo não é apenas porque essa
santificação do corpo implica a identificação do outro enquanto ameaça
exterior, mas porque essa singularização funda-se sobre uma dupla ilusão: porque a crença numa administração puramente privada do corpo funda-se no desejo de repossuir
integralmente o próprio corpo até ao momento em que este se transforma num
fantasma. E só assim esse corpo consegue entrar no espaço da política: enquanto
fantasma.
A condição
política de uma resistência não pode estar na internalização do Lebensraum,
mas na anulação do Lebensraum como princípio de organização da vida
em comum. O direito à gestão privada do corpo não é a forma que permite escapar
da biopolítica, mas é apenas a forma biopolítica da gestão do corpo na era do
neoliberalismo: a privatização do corpo, my own private lebensraum.
A
recusa da vacina em nome de uma autonomia individual do corpo é um direito, mas
não é um direito político, no sentido em que político diz respeito ao comum.
Não quer dizer com isto que não se possa questionar a eficácia das próprias vacinas
ou os limites e as ambiguidades da gestão da pandemia por parte dos Estados e
do Capital: por exemplo, os perigos de uma vigilância digitalizada e
omnipresente do próprio corpo são bem reais, assim como os perigos inerentes a
uma privatização generalizada do serviço nacional de saúde. Muito menos está em
causa uma aceitação tácita dos princípios da economia-mundo sobre as
necessidades e os direitos colectivos de todos aqueles cujas vidas foram
colocadas à frente da pandemia.
Aqueles
para quem o corpo individual se transformou no último véu antes do terrível,
parafraseando Rilke, são também eles filhos do Capital, filhos do liberalismo, e
são-no porque fazem do princípio da atomização absoluta do corpo e da sua posse
fantasmagórica o lugar central de uma política sem comum e de um comum sem
política.
•
Pedro Levi Bismarck
Co-editor do Jornal Punkto, arquitecto,
crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagem
Imagem do filme “My own private
Idaho”, de Gus van Sant, 1991.
Ficha Técnica
Data de publicação: 25.11. 2021
Edição #33 • Outono 2021 •