Mark Fisher. O fim do mundo precisa de banda sonora • João Oliveira Duarte



Não sigas o velho e bom, segue antes o novo e mau

- Brecht

 

A época, como aparentemente se crê, é pouco dada a qualquer tentativa de definição – com diferentes velocidades, com diferentes tempos, descentrada, é com dificuldade que se pode continuar a utilizar certos termos (“época” um deles), é com dificuldade que se pode tentar captar o pequeno ruído de fundo, quase inaudível, que vai surgindo aqui e ali – não tanto uma melodia, talvez, mas um som inumano para o qual não temos ainda as ferramentas. Mark Fisher, no entanto, toma para si uma tarefa que, se não é, efectivamente, uma tentativa de captar o “grão” do tempo – para usar um termo dele –, se não é uma forma de juízo epocal, anda nas suas imediações. Não é o único: como diversos outros autores – Hartog, por exemplo, em Régimes d’Historicité – há nele uma sintomatologia para uma doença desconhecida que seria a nossa, menos um diagnóstico (que traria sempre consigo a possibilidade da cura) que uma tentativa de relatório preciso, o mais próximo possível de um ou outro sintoma que seria cartografado, encarado de diversas perspectivas, medido e sopesado segundo diversos métodos. É um médico paradoxal, que vai medindo aos poucos os sintomas, mais preocupado com estes do que com qualquer doença ou cura.

O seu objecto em Fantasmas da Minha Vida, é a música pop em contexto britânico, lugar onde vai medindo com paciência a temperatura a um sentimento generalizado de uma catástrofe que se declarou permanente, de um vazio impreenchível que pode bem constituir o suicídio da espécie ou uma mutação antropológica cujo centro está em toda a parte, mas cuja circunferência é para nós ainda dificilmente imaginável, para usar uma imagem conhecida retomada por Borges. É preciso levar a sério esta mutação antropológica e, em certa medida, é isto que Fisher faz, tentando pensar um espaço ao mesmo tempo real e irreal – uma utopia concreta, um lugar localizável onde podemos ver jogar-se certos movimentos, certos desejos da época –, tentando pensar uma paisagem que estivesse, por fim, à altura desta mutação, que a segregasse ao mesmo tempo que é segregado por ela.

O objecto, no entanto, todo este conjunto de músicas e filmes de que fala em Fantasmas da Minha Vida, não é nada evidente, mas Fisher consegue conferir a este conjunto dimensões inesperadas, mostrando-os como aquilo que na realidade são, pequenos observatórios para o fim do mundo, laboratórios onde se entrelaçam desejos, angústias, movimentos tectónicos aos quais é preciso dar atenção. Esta tendência epocal, chamemos-lhe assim, já se encontrava presente em Realismo Capitalista. Mas enquanto este, apesar de todo o interesse que tem – nem que seja porque toma por objecto os produtos da cultura de massas, gesto particularmente ausente dentro do ensaísmo português – mantinha ainda dívidas demasiado explícitas, como se todo aquilo que estivéssemos a ler fosse eco de outras coisas – Zizek, Badiou, entre outros – Fantasmas da minha Vida consegue tornar prático o pensamento, isto é, excede e descola  da armadura teórica que o primeiro livro tinha, que lhe conferia ao mesmo tempo o seu interesse mas também a sua limitação.

Nada contra, evidentemente, o uso das armas que a teoria crítica contemporânea fornece para interrogar objectos, sejam ele da cultura de massas ou de outro âmbito; a academia é pródiga nesse género de aplicação, com resultados mais ou menos interessantes e é pena que ela não se tente medir mais vezes com estes objectos ditos “menores”, é pena não encontrarmos mais vezes essa dimensão crítica que seria um dos aspectos da sua tarefa actual (enviar sondas aos nossos lugares mais desolados e desoladores). Mas quando o pensamento se faz rente as coisas, por assim dizer, não recuando constantemente, quando se limita, de forma sóbria, a seguir, por vezes cegamente – como uma traça que não consegue deixar de caminhar em direcção à luz, selando assim o seu destino –, os movimentos do seu objecto, é aí que o pensamento se faz carne e consegue descolar de toda e qualquer dívida – é aí, tantas vezes, que o pensamento se faz órfão. É isto que parece acontecer, de facto, em Fantasmas da minha Vida e é isto que marca a sua diferença relativamente a Realismo Capitalista.

Não é nada evidente que a época tenha uma qualquer tonalidade; Agamben, antes de se ter transformado num profeta louco, um Kraus ou um Pasolini cheio de raiva, de “cabelos eriçados, agitando na mão uma folha – uma folha cheia de guerra e pestilência, de crimes e dores, de desastres provocados pelo fogo e pelas águas”, defendia exactamente isto, esta ausência de tonalidade que seria necessário assumir – mas como fazê-lo e onde encontrar, em todo o seu esplendor, esse autêntico vazio insuplantável?

“A nossa sensibilidade, os nossos sentimentos, já não nos prometem nada: sobrevivem ao nosso lado, faustosos e inúteis como animais domésticos de apartamento. E a coragem – perante a qual o niilismo imperfeito do nosso tempo não cessa de bater em retirada – consistiria precisamente em reconhecer que já não temos estados de alma, que somos os primeiros seres humanos não afinados por uma Stimmung, os primeiros seres humanos, por assim dizer, absolutamente não musicais: somos sem Stimmung, sem vocação. Não é uma condição alegre, como alguns desgraçados no-lo querem fazer crer, nem sequer é uma condição, se por condição entendermos necessariamente, e ainda, um destino e uma certa disposição; mas é a nossa situação, o sítio desolado onde nos encontramos, absolutamente abandonados por toda a vocação e por todo o destino, expostos como nunca antes.”

As primeiras décadas do século XX conheceram um experimentalismo radical ao nível da literatura, mas não só, onde aquilo que tantas vezes esteve em causa foi exactamente conseguir captar o som imperceptível que se libertava da movimentação das placas tectónicas. Musil e o seu Homem sem Qualidades, o universo ao mesmo tempo próximo e distante de Kafka, Proust, as figuras esboçadas por Robert Walser, em todos eles encontramos esboçado a passagem ao limite de certas características que delimitam essa musicalidade que nos acompanhou durante algum tempo. Sintomaticamente, não é a literatura que hoje recorremos para tentar afinar a máquina de captação desses sons inaudíveis – Fisher elege como laboratório a música pop, Hartog, por sua vez, o campo histórico e Huyssen, num texto sobre Berlim, o entrelaçamento de diversos tempos na topografia da cidade –, como se esta tivesse deixado de ser o sismógrafo que durante tanto tempo foi.

Em todo o caso, o que se liberta do laboratório erigido por Fisher, que cartografa minuciosamente todas as ínfimas modalidades, toda a escala de tons na sua estação meteorológica no Ártico, não é apenas essa ausência de musicalidade que estaria inscrita no tempo, mas também o ar frio e desolado que se esconde atrás de toda a novidade que, semana após semana, surgem em todos os lugares – como se atrás dessa profusão de acontecimentos se escondesse, na realidade, um imobilismo gélido, uma paisagem petrificada.

“O que torna «Valerie» e os Artic Monkeys num caso típico de retro pós-moderno é a forma como representam o anacronismo. Embora sejam suficientemente «históricos» - com uma sonoridade que à primeira audição passará como pertencendo ao período que imitam – há algo neles que não bate certo. As discrepâncias na textura – fruto do estúdio e das técnicas de gravação modernos – significam que não pertencem ao presente nem ao passado, mas a uma insinuada época «intemporal»”

Ouçamos bem essa sonoridade que se liberta da música e que não se confunde com ela – ouçamos, acima de tudo, isso que neles “não bate certo”, esse desfasamento que nestes dois exemplos se deixa ler, a “insinuada época «intemporal» que alcançam – porque essa sonoridade diz respeito a uma eternidade de plástico (o plástico é o que de mais eterno conhecemos) que se consegue moldar a qualquer tempo e a qualquer lugar, que não conhece exterior ou interior, próximo ou distante. Nada há nelas que nos seja distante e, no entanto, nada há nelas que nos diga respeito – porque elas se libertaram, enfim, da lei da morte, um arqueólogo no futuro não as conseguirá situar em lugar algum e elas ser-lhe-ão estranhamente contemporâneas. São a paródia da apocatástase, de tal forma plásticas que podem ser integralmente citáveis em qualquer momento sem que nada, nelas, se perca para a história – sem que nada nelas crie qualquer atrito, que é uma outra forma de dizer a dívida face ao tempo.

O diagnóstico, já o sabemos, é antigo: Roland Barthes, por exemplo, dizia que “não vivemos a aceleração da História, mas a aceleração da pequena história”, também ele sublinhando esse particular imobilismo de uma época onde tudo é já história e objecto de museu. Mas aquilo que torna interessante Fantasmas da Minha Vida, além dessa sintomatologia que consegue erigir a partir de um campo que parece avesso a este tipo de gesto, é a presença do espaço, ou melhor a presença de determinados espaços – como se a música tivesse, a dada altura, de se medir com estas utopias concretas que encontramos um pouco por toda a parte.

No entanto, a música não surge neste conjunto de ensaios apenas como laboratório para medir esse vazio e essa ausência de musicalidade – esse homem novo cujos contornos ainda não conseguimos vislumbrar de forma clara. Além disso, desta função, a música foi, para uma ou outra geração, uma forma de resistência – numa sociologia meio selvagem, foi usada como uma forma de negar o tempo, de o contornar e de o acusar. As guitarras, os baixos, as baterias, os géneros e subgéneros da pop, o metal, o punk, o rock serviram, para um universo sem unidade de jovens suburbanos para os quais o futuro sempre foi um vazio, como fuga (“a pop era o portal para escapar ao prosaico”), como formas de pertença tantas vezes fugazes com os seus “extraterrestres”, a raiva tantas vezes medida em decibéis e em solos sem fim. Era a forma de não-pertença, por mais que a derrota fosse sempre, também, antecipada, como se a raiva fosse sempre desesperada, sem saída.

Mas não é apenas isto, porque é na música pop que Fisher vai encontrar o espaço. Porque, de facto, Fantasmas da minha Vida parece ser em última análise, um livro que orbita sobre um conjunto de espaços determinados que fazem hoje parte da nossa paisagem. Há, sem dúvida, os espaços devolutos das cidades, que também nele comparecem, com os subgéneros musicais que aderem a estes como se fossem suas emanações – com a sua colecção de seres fantasmagóricos, seres deixados para trás no movimento imparável do progresso. Mas estes espaços arruinados facilmente ganham uma aura romântica – que é o mesmo que dizer que se tornam fotografáveis, instagramizáveis, cheios de uma autocomiseração de tons nostálgicos.

Mas depois há outros, e é a partir desses que Fisher vai conseguir interrogar esta ausência de tonalidade – e são esses que interessam, são neles que se desenham certos movimentos que é necessário interrogar. São espaços insituáveis, apesar de os encontrarmos com frequência, não são daqui nem dali (para usar as categorias do antropólogo Marc Augé), não têm passado nem futuro, podendo, portanto, ser tudo, convocar todos os tempos e espaços. São os “não-lugares”, parques de estacionamento, aeroportos, zonas de trânsito, centros comerciais, estações de serviço de bombas de gasolina, parques de diversões. Não são lugares onde o tempo e a história parou, são lugares pós-apocalípticos de onde qualquer tempo se retirou – são lugares insones, de pesadelo, onde as coisas olham a partir de uma facies hippocratica. Mas são também espaços de uma paz imensa, onde a fronteira entre desespero e serenidade se torna porosa.

“A dado momento no novo e inquietante filme de Chris Petit, Content, atravessamos de carro o porto de contentores de Felixstowe. Foi para mim um momento perturbador, pois Felixstowe fica a poucos quilómetros do local onde vivo actualmente – o que Petit filmou poderia ter sido captado a partir da janela do nosso carro. (...) os hangares e as gruas ameaçadoras são tão genéricos que me pus a pensar se aquele porto de contentores não seria um sósia situado noutra parte qualquer do mundo. Tudo isto veio de certa forma sublinhar a descrição que o texto de Petit faz daqueles «edifícios cegos» à medida que a sua câmara os vai percorrendo: «não-lugares», «barracões prosaicos», «os primeiros edifícios de uma nova era», que tornaram «a arquitectura redundante»”

Conhecemos bem demais esta paisagem – são cada vez mais as nossas cidades, o nosso horizonte inultrapassável. Encontramos neles o nosso espaço, a nossa tranquilidade, a nossa familiaridade e a nossa estranheza. Quem neles entra passa um limiar e penetra num tempo de todos os tempos e espaços. Um dos maiores exemplos desse género sem género de espaço talvez seja o complexo da Disney em Paris – talvez não fosse má ideia alguém se concentrar neste tipo de objectos, proceder a uma fenomenologia que talvez nos devolvesse um olhar familiar e estranho ao mesmo tempo. É um complexo, isto é, um espaço sem qualquer forma de exterioridade, completamente fechado sobre si mesmo (talvez seja necessário uma ritualística ainda por descobrir para se poder franquear este tipo de lugares). Mas concentra em si, também, todo o espaço e toda a história, toda a imaginação do mundo. O oeste americano (a poucos quilómetros de Paris), Alice e o seu país das maravilhas, até o espaço sideral, tudo é arregimentado para a apoteose final que consiste no fim do mundo ao final de todos os dias, preenchido de cores, sons e fogo de artifício.

Seria possível fazer uma crítica de teor ideológico a este tipo de espaço (e necessário, também). Mas, antes disso, talvez não fosse má ideia tentar perceber o tipo de dispositivo com que se é deparado dia após dia. E, quanto a isso, há uma pequena atracção que, como um cristal, parece conjugar em si todos os desejos que este tipo de lugar transporta: um breve passeio de barco (10 minutos, nem tanto) vai-nos apresentando o mundo todo tornado cliché, de África à Ásia, passando pela América do Sul, por todas as culturas, actuais ou já desaparecidas. É uma humanidade redimida, enfim liberta de qualquer guerra e dor, que se vê desfilar, o Juízo Final que cita, em todos os seus momentos, toda a história, toda a memória, toda a imaginação, e onde, por fim, todos os seres cantam alegremente. Uma humanidade apoteótica que surge como o instante final da evolução.

É este género sem género de espaços (Fisher não fala, infelizmente, sobre a Disney) que encontramos como objecto principal de Fantasmas da Minha vida.  E a imagem mais impressiva, que dá o tom a este conjunto de ensaios onde a música funciona como uma sonda envidada a este tipo de lugares, surge logo nas primeiras páginas a partir de uma série de televisão dos anos 70 e 80.

“A derradeira imagem da série televisiva britânica Sapphire and Steel parecia destinada a assombrar a mente adolescente. As duas personagens principais, interpretadas por Joanna Lumley e David McCullum, vêem-se no que parece ser um café de berma de estrada da década de 1940. Está a passar na rádio um simulacro de uma agradável Big Band de jazz ao estilo Glenn Miller. Um outro casal, um homem e uma mulher com roupas da década de 1940, está sentado numa mesa vizinha. A mulher, ao levantar-se, diz: «A armadilha é isto. Isto é nenhures, e é para sempre»”

É uma “derradeira imagem” – não apenas da série – porque diz respeito a uma imagem do fim (“isto é nenhures, e é para sempre”, ouve-se, num lugar rodeado de vazio). Lá fora, só há uma noite gelada, vazia, sem vivalma. O cenário, a imagem derradeira, é pós-apocalíptico. Este espaço não tem tempo – mas, para ele, todos os tempos são citáveis –, não tem lugar – é “nenhures”, isto é, está em todo o sítio –, é o espaço de uma humanidade finalmente redimida. Nas suas superfícies lisas e coloridas, na sua luz artificial que nunca morre nem se altera, na sua capacidade de citar todo o passado, vemos desenhar-se no horizonte essa mutação antropológica de que falava Pasolini. Conseguir habitar este espaço inabitável seria, por fim, conseguir decifrar o estranho hieróglifo em que se tornou.

 

 

João Oliveira Duarte

Crítico literário no Jornal I

 

Imagem

Via Gary Riley

 

Nota de edição

O texto de João Oliveira Duarte sobre o livro de Mark Fisher “Fantasmas da minha vida: escritos sobre depressão, hantologia e futuros perdidos”, uma edição da VS (Outubro 2021 com tradução de Vasco Gato), foi também publicado numa outra versão no Jornal I.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 17.11.2021

Edição #33 • Outono 2021 •