Não sigas o
velho e bom, segue antes o novo e mau
- Brecht
A época, como
aparentemente se crê, é pouco dada a qualquer tentativa de definição – com
diferentes velocidades, com diferentes tempos, descentrada, é com dificuldade
que se pode continuar a utilizar certos termos (“época” um deles), é com
dificuldade que se pode tentar captar o pequeno ruído de fundo, quase
inaudível, que vai surgindo aqui e ali – não tanto uma melodia, talvez, mas um
som inumano para o qual não temos ainda as ferramentas. Mark Fisher, no
entanto, toma para si uma tarefa que, se não é, efectivamente, uma tentativa de
captar o “grão” do tempo – para usar um termo dele –, se não é uma forma de
juízo epocal, anda nas suas imediações. Não é o único: como diversos outros
autores – Hartog, por exemplo, em Régimes d’Historicité – há nele uma
sintomatologia para uma doença desconhecida que seria a nossa, menos um
diagnóstico (que traria sempre consigo a possibilidade da cura) que uma
tentativa de relatório preciso, o mais próximo possível de um ou outro sintoma
que seria cartografado, encarado de diversas perspectivas, medido e sopesado
segundo diversos métodos. É um médico paradoxal, que vai medindo aos poucos os
sintomas, mais preocupado com estes do que com qualquer doença ou cura.
O seu objecto em
Fantasmas da Minha Vida, é a música pop em contexto britânico, lugar
onde vai medindo com paciência a temperatura a um sentimento generalizado de
uma catástrofe que se declarou permanente, de um vazio impreenchível que pode
bem constituir o suicídio da espécie ou uma mutação antropológica cujo centro
está em toda a parte, mas cuja circunferência é para nós ainda dificilmente
imaginável, para usar uma imagem conhecida retomada por Borges. É preciso levar
a sério esta mutação antropológica e, em certa medida, é isto que Fisher faz,
tentando pensar um espaço ao mesmo tempo real e irreal – uma utopia concreta,
um lugar localizável onde podemos ver jogar-se certos movimentos, certos
desejos da época –, tentando pensar uma paisagem que estivesse, por fim, à
altura desta mutação, que a segregasse ao mesmo tempo que é segregado por ela.
O objecto, no
entanto, todo este conjunto de músicas e filmes de que fala em Fantasmas da
Minha Vida, não é nada evidente, mas Fisher consegue conferir a este
conjunto dimensões inesperadas, mostrando-os como aquilo que na realidade são,
pequenos observatórios para o fim do mundo, laboratórios onde se entrelaçam
desejos, angústias, movimentos tectónicos aos quais é preciso dar atenção. Esta
tendência epocal, chamemos-lhe assim, já se encontrava presente em Realismo
Capitalista. Mas enquanto este, apesar de todo o interesse que tem – nem
que seja porque toma por objecto os produtos da cultura de massas, gesto
particularmente ausente dentro do ensaísmo português – mantinha ainda dívidas
demasiado explícitas, como se todo aquilo que estivéssemos a ler fosse eco de
outras coisas – Zizek, Badiou, entre outros – Fantasmas da minha Vida consegue
tornar prático o pensamento, isto é, excede e descola da armadura teórica que o primeiro livro
tinha, que lhe conferia ao mesmo tempo o seu interesse mas também a sua
limitação.
Nada contra,
evidentemente, o uso das armas que a teoria crítica contemporânea fornece para
interrogar objectos, sejam ele da cultura de massas ou de outro âmbito; a
academia é pródiga nesse género de aplicação, com resultados mais ou menos
interessantes e é pena que ela não se tente medir mais vezes com estes objectos
ditos “menores”, é pena não encontrarmos mais vezes essa dimensão crítica que
seria um dos aspectos da sua tarefa actual (enviar sondas aos nossos lugares
mais desolados e desoladores). Mas quando o pensamento se faz rente as coisas,
por assim dizer, não recuando constantemente, quando se limita, de forma
sóbria, a seguir, por vezes cegamente – como uma traça que não consegue deixar
de caminhar em direcção à luz, selando assim o seu destino –, os movimentos do
seu objecto, é aí que o pensamento se faz carne e consegue descolar de toda e
qualquer dívida – é aí, tantas vezes, que o pensamento se faz órfão. É isto que
parece acontecer, de facto, em Fantasmas da minha Vida e é isto que
marca a sua diferença relativamente a Realismo Capitalista.
Não é nada
evidente que a época tenha uma qualquer tonalidade; Agamben, antes de se ter
transformado num profeta louco, um Kraus ou um Pasolini cheio de raiva, de “cabelos
eriçados, agitando na mão uma folha – uma folha cheia de guerra e pestilência,
de crimes e dores, de desastres provocados pelo fogo e pelas águas”, defendia
exactamente isto, esta ausência de tonalidade que seria necessário assumir –
mas como fazê-lo e onde encontrar, em todo o seu esplendor, esse autêntico
vazio insuplantável?
“A nossa sensibilidade, os nossos
sentimentos, já não nos prometem nada: sobrevivem ao nosso lado, faustosos e
inúteis como animais domésticos de apartamento. E a coragem – perante a qual o niilismo
imperfeito do nosso tempo não cessa de bater em retirada – consistiria
precisamente em reconhecer que já não temos estados de alma, que somos os
primeiros seres humanos não afinados por uma Stimmung, os primeiros
seres humanos, por assim dizer, absolutamente não musicais: somos sem Stimmung,
sem vocação. Não é uma condição alegre, como alguns desgraçados no-lo querem
fazer crer, nem sequer é uma condição, se por condição entendermos
necessariamente, e ainda, um destino e uma certa disposição; mas é a nossa
situação, o sítio desolado onde nos encontramos, absolutamente
abandonados por toda a vocação e por todo o destino, expostos como nunca
antes.”
As primeiras
décadas do século XX conheceram um experimentalismo radical ao nível da
literatura, mas não só, onde aquilo que tantas vezes esteve em causa foi
exactamente conseguir captar o som imperceptível que se libertava da
movimentação das placas tectónicas. Musil e o seu Homem sem Qualidades, o
universo ao mesmo tempo próximo e distante de Kafka, Proust, as figuras
esboçadas por Robert Walser, em todos eles encontramos esboçado a passagem ao
limite de certas características que delimitam essa musicalidade que nos
acompanhou durante algum tempo. Sintomaticamente, não é a literatura que hoje
recorremos para tentar afinar a máquina de captação desses sons inaudíveis – Fisher
elege como laboratório a música pop, Hartog, por sua vez, o campo histórico e
Huyssen, num texto sobre Berlim, o entrelaçamento de diversos tempos na
topografia da cidade –, como se esta tivesse deixado de ser o sismógrafo que
durante tanto tempo foi.
Em todo o caso,
o que se liberta do laboratório erigido por Fisher, que cartografa minuciosamente
todas as ínfimas modalidades, toda a escala de tons na sua estação
meteorológica no Ártico, não é apenas essa ausência de musicalidade que estaria
inscrita no tempo, mas também o ar frio e desolado que se esconde atrás de toda
a novidade que, semana após semana, surgem em todos os lugares – como se atrás
dessa profusão de acontecimentos se escondesse, na realidade, um imobilismo
gélido, uma paisagem petrificada.
“O que torna «Valerie» e os Artic
Monkeys num caso típico de retro pós-moderno é a forma como representam o
anacronismo. Embora sejam suficientemente «históricos» - com uma sonoridade que
à primeira audição passará como pertencendo ao período que imitam – há algo
neles que não bate certo. As discrepâncias na textura – fruto do estúdio e das
técnicas de gravação modernos – significam que não pertencem ao presente nem ao
passado, mas a uma insinuada época «intemporal»”
Ouçamos bem essa sonoridade que se
liberta da música e que não se confunde com ela – ouçamos, acima de tudo, isso
que neles “não bate certo”, esse desfasamento que nestes dois exemplos se deixa
ler, a “insinuada época «intemporal» que alcançam – porque essa sonoridade diz
respeito a uma eternidade de plástico (o plástico é o que de mais eterno
conhecemos) que se consegue moldar a qualquer tempo e a qualquer lugar, que não
conhece exterior ou interior, próximo ou distante. Nada há nelas que nos seja
distante e, no entanto, nada há nelas que nos diga respeito – porque elas se
libertaram, enfim, da lei da morte, um arqueólogo no futuro não as conseguirá
situar em lugar algum e elas ser-lhe-ão estranhamente contemporâneas. São a
paródia da apocatástase, de tal forma plásticas que podem ser integralmente
citáveis em qualquer momento sem que nada, nelas, se perca para a história –
sem que nada nelas crie qualquer atrito, que é uma outra forma de dizer a
dívida face ao tempo.
O diagnóstico, já o sabemos, é antigo:
Roland Barthes, por exemplo, dizia que “não vivemos a aceleração da História,
mas a aceleração da pequena história”, também ele sublinhando esse particular
imobilismo de uma época onde tudo é já história e objecto de museu. Mas aquilo
que torna interessante Fantasmas da Minha Vida, além dessa
sintomatologia que consegue erigir a partir de um campo que parece avesso a
este tipo de gesto, é a presença do espaço, ou melhor a presença de
determinados espaços – como se a música tivesse, a dada altura, de se medir com
estas utopias concretas que encontramos um pouco por toda a parte.
No entanto, a música não surge neste
conjunto de ensaios apenas como laboratório para medir esse vazio e essa
ausência de musicalidade – esse homem novo cujos contornos ainda não conseguimos
vislumbrar de forma clara. Além disso, desta função, a música foi, para uma ou
outra geração, uma forma de resistência – numa sociologia meio selvagem, foi
usada como uma forma de negar o tempo, de o contornar e de o acusar. As
guitarras, os baixos, as baterias, os géneros e subgéneros da pop, o metal, o
punk, o rock serviram, para um universo sem unidade de jovens suburbanos para
os quais o futuro sempre foi um vazio, como fuga (“a pop era o portal para
escapar ao prosaico”), como formas de pertença tantas vezes fugazes com os seus
“extraterrestres”, a raiva tantas vezes medida em decibéis e em solos sem fim.
Era a forma de não-pertença, por mais que a derrota fosse sempre, também,
antecipada, como se a raiva fosse sempre desesperada, sem saída.
Mas não é apenas isto, porque é na
música pop que Fisher vai encontrar o espaço. Porque, de facto, Fantasmas da
minha Vida parece ser em última análise, um livro que orbita sobre um
conjunto de espaços determinados que fazem hoje parte da nossa paisagem. Há,
sem dúvida, os espaços devolutos das cidades, que também nele comparecem, com
os subgéneros musicais que aderem a estes como se fossem suas emanações – com a
sua colecção de seres fantasmagóricos, seres deixados para trás no movimento
imparável do progresso. Mas estes espaços arruinados facilmente ganham uma aura
romântica – que é o mesmo que dizer que se tornam fotografáveis,
instagramizáveis, cheios de uma autocomiseração de tons nostálgicos.
Mas depois há outros, e é a partir
desses que Fisher vai conseguir interrogar esta ausência de tonalidade – e são
esses que interessam, são neles que se desenham certos movimentos que é
necessário interrogar. São espaços insituáveis, apesar de os encontrarmos com
frequência, não são daqui nem dali (para usar as categorias do antropólogo Marc
Augé), não têm passado nem futuro, podendo, portanto, ser tudo, convocar todos
os tempos e espaços. São os “não-lugares”, parques de estacionamento,
aeroportos, zonas de trânsito, centros comerciais, estações de serviço de bombas
de gasolina, parques de diversões. Não são lugares onde o tempo e a história
parou, são lugares pós-apocalípticos de onde qualquer tempo se retirou – são
lugares insones, de pesadelo, onde as coisas olham a partir de uma facies
hippocratica. Mas são também espaços de uma paz imensa, onde a fronteira
entre desespero e serenidade se torna porosa.
“A dado momento no novo e inquietante
filme de Chris Petit, Content, atravessamos de carro o porto de
contentores de Felixstowe. Foi para mim um momento perturbador, pois Felixstowe
fica a poucos quilómetros do local onde vivo actualmente – o que Petit filmou
poderia ter sido captado a partir da janela do nosso carro. (...) os hangares e
as gruas ameaçadoras são tão genéricos que me pus a pensar se aquele porto de
contentores não seria um sósia situado noutra parte qualquer do mundo. Tudo
isto veio de certa forma sublinhar a descrição que o texto de Petit faz
daqueles «edifícios cegos» à medida que a sua câmara os vai percorrendo:
«não-lugares», «barracões prosaicos», «os primeiros edifícios de uma nova era»,
que tornaram «a arquitectura redundante»”
Conhecemos bem demais esta paisagem –
são cada vez mais as nossas cidades, o nosso horizonte inultrapassável. Encontramos
neles o nosso espaço, a nossa tranquilidade, a nossa familiaridade e a nossa
estranheza. Quem neles entra passa um limiar e penetra num tempo de todos os
tempos e espaços. Um dos maiores exemplos desse género sem género de espaço talvez
seja o complexo da Disney em Paris – talvez não fosse má ideia alguém se
concentrar neste tipo de objectos, proceder a uma fenomenologia que talvez nos
devolvesse um olhar familiar e estranho ao mesmo tempo. É um complexo, isto é,
um espaço sem qualquer forma de exterioridade, completamente fechado sobre si
mesmo (talvez seja necessário uma ritualística ainda por descobrir para se
poder franquear este tipo de lugares). Mas concentra em si, também, todo o
espaço e toda a história, toda a imaginação do mundo. O oeste americano (a poucos
quilómetros de Paris), Alice e o seu país das maravilhas, até o espaço sideral,
tudo é arregimentado para a apoteose final que consiste no fim do mundo ao
final de todos os dias, preenchido de cores, sons e fogo de artifício.
Seria possível fazer uma crítica de teor
ideológico a este tipo de espaço (e necessário, também). Mas, antes disso,
talvez não fosse má ideia tentar perceber o tipo de dispositivo com que se é
deparado dia após dia. E, quanto a isso, há uma pequena atracção que, como um
cristal, parece conjugar em si todos os desejos que este tipo de lugar
transporta: um breve passeio de barco (10 minutos, nem tanto) vai-nos
apresentando o mundo todo tornado cliché, de África à Ásia, passando pela
América do Sul, por todas as culturas, actuais ou já desaparecidas. É uma
humanidade redimida, enfim liberta de qualquer guerra e dor, que se vê
desfilar, o Juízo Final que cita, em todos os seus momentos, toda a história,
toda a memória, toda a imaginação, e onde, por fim, todos os seres cantam alegremente.
Uma humanidade apoteótica que surge como o instante final da evolução.
É este género sem género de espaços
(Fisher não fala, infelizmente, sobre a Disney) que encontramos como objecto
principal de Fantasmas da Minha vida. E a imagem mais impressiva, que dá o tom a
este conjunto de ensaios onde a música funciona como uma sonda envidada a este
tipo de lugares, surge logo nas primeiras páginas a partir de uma série de
televisão dos anos 70 e 80.
“A derradeira imagem da série televisiva
britânica Sapphire and Steel parecia destinada a assombrar a mente
adolescente. As duas personagens principais, interpretadas por Joanna Lumley e
David McCullum, vêem-se no que parece ser um café de berma de estrada da década
de 1940. Está a passar na rádio um simulacro de uma agradável Big Band de jazz
ao estilo Glenn Miller. Um outro casal, um homem e uma mulher com roupas da
década de 1940, está sentado numa mesa vizinha. A mulher, ao levantar-se, diz:
«A armadilha é isto. Isto é nenhures, e é para sempre»”
É uma “derradeira imagem” – não apenas
da série – porque diz respeito a uma imagem do fim (“isto é nenhures, e é para
sempre”, ouve-se, num lugar rodeado de vazio). Lá fora, só há uma noite gelada,
vazia, sem vivalma. O cenário, a imagem derradeira, é pós-apocalíptico. Este
espaço não tem tempo – mas, para ele, todos os tempos são citáveis –, não tem
lugar – é “nenhures”, isto é, está em todo o sítio –, é o espaço de uma
humanidade finalmente redimida. Nas suas superfícies lisas e coloridas, na sua
luz artificial que nunca morre nem se altera, na sua capacidade de citar todo o
passado, vemos desenhar-se no horizonte essa mutação antropológica de que
falava Pasolini. Conseguir habitar este espaço inabitável seria, por fim,
conseguir decifrar o estranho hieróglifo em que se tornou.
João Oliveira Duarte
Imagem
Via Gary Riley
Nota de edição
O texto de João Oliveira Duarte sobre o livro de Mark Fisher “Fantasmas
da minha vida: escritos sobre depressão, hantologia e futuros perdidos”, uma edição
da VS (Outubro 2021 com tradução de Vasco Gato), foi também publicado numa outra
versão no Jornal I.
Ficha Técnica
Data de
publicação: 17.11.2021
Edição #33 • Outono 2021 •