Não existe aspiração mais universal e mais universalmente interdita do que habitar o próprio corpo. Esta deveria ser a escolha mais natural do mundo, se não estivéssemos captivos de um sistema que, abandonando a natureza à pilhagem e às devastações da rentabilidade, desnatura por toda a parte a terra, assim como todas aquelas e aqueles que a povoam. Com o passar do tempo, as mulheres, os homens e as crianças são confrontados com um corpo onde a necessidade de trabalhar e de ganhar dinheiro colide contra uma pulsão vital que os convida a seguir os seus desejos e a dedicar-se aos prazeres da existência.
A tentativa de habitar o próprio corpo experimenta a alienação, confronta-se com uma presença estrangeira que nos empurra para o exílio, que nos separa e que nos expulsa de nós próprios. A exuberância das pulsões vitais encontra-se compartimentalizada. A redução do mundo a uma geometria do benefício militarizou-nos; basta observar o regime a que estão submetidas as crianças e os adolescentes nesses campos de concentração infantil a que chamamos “escola”.
À excepção de alguns raros criadores do habitat poético –cujo génio, a loucura e a originalidade estética nos precipitamos a celebrar para não ter de questionar mais profundamente o “sentido humano” que os inspira–, os arquitectos foram e continuam a ser, mais do que nunca, os burocratas do poder e da estrutura hierárquica, os agentes recrutadores do espírito militar, os empreendedores servis da redução geométrica do mundo, da vida, dos costumes, da reificação generalizada.
Não me limito aqui a evocar os fabricantes de gaiolas para coelhos, os construtores de jaulas onde o tédio incita à malfeitoria, à violência cega, ao crime. Os asfaltadores de paisagens, à semelhança dos urbanistas que têm a soldo, mais não são do que uma versão deste “arquitecto” que no dialecto de Bruxelas (devastada, como a maior parte das cidades, pela máfia imobiliária) é um insulto passível de despoletar reacções agressivas.
Não é por acaso que as religiões atribuem a um Grande Arquitecto o funcionamento, a organização, o planeamento, o conforto e a climatização deste vale de lágrimas onde a vida sacrificada é o preço a pagar pelos paraísos fictícios que existem do outro lado.
A militarização do corpo e do seu habitat teve origem na edificação das primeiras Cidades-Estado, com as suas sociedades hierarquizadas, as suas muralhas e os seus recintos submetidos ao controlo de padres e de príncipes. Em nome da civilização, decretamos por todo o lado que milhares de árvores sejam abatidas, desenraizando em simultâneo a relação privilegiada que a mulher estabelece com o vegetal. Esta poderia ser uma decisão tomada hoje, por uma multinacional. No entanto, o decreto ao qual aqui me refiro é extraído da epopeia de Gilgamesh, que data do III milénio anterior à nossa época. (Note-se, de passagem, que do mesmo modo que o espaço é reticulado pelo Grande Arquitecto, o nosso calendário obedece a uma numeração prescrita pelo seu homólogo, o grande Relojoeiro.)
Nunca habitámos em nós próprios. Fomos sempre habitados por uma maquinaria que nos fazia ir onde não tínhamos nenhuma vontade de chegar, em virtude de um carreirismo que, incutido desde a infância, toma de assalto a juventude e fá-la envelhecer precocemente.
Toda a arquitectura tresanda a caserna, a prisão ou a hospital e, no entanto, o que subsiste em nós de humano nunca renunciou a perpetuar até nos mais miseráveis casebres uma poesia cravada na existência, uma faísca de vida, susceptível de incendiar o velho mundo ressequido pelo tédio.
Enquanto o capitalismo continua a sobreviver às suas sucessivas falências, o corpo dos desejos aspira, geração após geração, a libertar-se do corpo do trabalho que o amarra. É uma reivindicação de longa data, mas que se encontra doravante em plena luz do dia. Emerge das ruínas das vastas construções religiosas e ideológicas que governaram durante longos períodos a humanidade, desumanizando-a. No século XVIII, Saint-Just constatava: “A felicidade é uma ideia nova.” Hoje, a felicidade é mais do que uma ideia, tornou-se uma realidade nova, uma realidade que luta contra as suas falsificações para se encarnar numa realidade social, para participar numa subversão que a faz identificar-se com o verdadeiro progresso.
Às nossas custas, aprendemos que o progresso técnico dissimula as suas caixas registadoras sob a mentira do estado social para o qual contribui. Nós já sabemos o que se deve pensar desse famoso welfare state, cujo advento profetizava já o consumismo. Já não queremos fazer parte da maquinaria do lucro, que faz de nós meras rodas dentadas. Queremos habitar o país dos nossos desejos, uma terra livre onde a vida seja garantia da nossa vontade de ser já não um homem abstracto, mas um ser humano. Pois, da mesma forma que a sobrevivência usurpa a denominação de “vida”, o homem abstracto mais não é do que um simulacro do homem carnal.
Como ilhas ensoleiradas num mar glaciar, vemos emergir zonas onde os habitantes, como forma de resistência face aos prejuízos impostos pelas empresas multinacionais, lançam as bases de uma sociedade nova, construindo lugares para viver. Algumas destas terras libertadas procuram escapar ao domínio do Estado e da mercadoria, redescobrindo a riqueza da criatividade individual e colectiva.
Aqui e acolá, uma arquitectura autónoma, improvisada, engenhosa e estranha, experimenta uma reconciliação entre o habitat e o corpo restituído à fantasia dos seus desejos. Da cabana em madeira à autoconstrução em terra, palha e ramos, um mesmo canto se eleva, que é o da verdadeira liberdade.
Até agora, não temos conhecido senão uma arquitectura à imagem da reificação do homem. Num mundo onde será necessário que a perspectiva da vida suceda à perspectiva da morte, que nos é imposta há milhares de anos pelo sistema dominante, isto significa que é possível criar as condições para realizações experimentais sempre que a vontade de viver reivindique a sua soberania e rompa as suas amarras. Precisamos de uma reabilitação do corpo e do habitat poético que este exige. Precisamos de uma arquitectura que cante e que dance. E esta não existirá sem uma vontade individual e colectiva de desconstruir o homem máquina para, no seu lugar, construir o ser humano.
•
Raoul Vaneigem
Escritor, filósofo, ensaísta e antigo membro da Internacional Situacionista.
Nota de edição
Este texto foi originalmente escrito em Fevereiro de 2018 e publicado em espanhol no livro Máquinas de vivir. Flamenco y arquitectura em la ocupación y desocupación (Puente Editores, 2019) de Pedro G. Romero e María García Ruiz, que recolhe material da exposição homónima realizada no CentroCentro Cibeles de Cultura e Cidadania de Madrid (entre Outubro de 2017 e Fevereiro de 2018) e no Centro da Imagem de Barcelona La Virreina (entre Fevereiro e Maio de 2018). A sua versão em português é publicada pela primeira vez no Punkto, com a autorização dos autores, no âmbito da exposição Os Novos Babilónios. Atravessar a Fronteira de Pedro G. Romero, patente na Galeria Municipal do Porto, até ao dia 21 de Novembro de 2021.
Nota de tradução
A tradução que aqui se apresenta foi realizada por João Paupério para o Jornal Punkto, a partir da versão original do texto, em francês, gentilmente cedida por Raoul Vaneigem.
Imagem
1. Implosão de um edifício da Cité des 4000 em La Courneuve, ©Patrick Aventurier/Gamma-Rapho, 1986.
Ficha Técnica
Data de publicação: 11.11.2021
Edição #33 • Outono 2021 •