Quando julgávamos que tínhamos ultrapassado o auge da investida neoliberal face à Universidade, numa altura em que até o status quo das políticas científicas europeias acentua a importância de ajustarmos os modelos de avaliação (evitando a mera contabilização acrítica de “produtos”), a centralidade da “ciência cidadã”, a relevância de envolveremos vastos atores e movimentos sociais numa cultura científica abrangente ou mesmo a importância dos processos de cocriação, eis que algumas instituições de “vanguarda” assumem a revolução, tendo como grande timoneiro o ministro da Ciência e do Ensino Superior, a quem me dirijo.
À boleia da pandemia, querem remeter as aulas teóricas para o ghetto do online, assim reificadas como acessório mais ou menos dispensável face ao pragmatismo absoluto e instrumental das “aulas práticas”, repetindo a ladainha arcaica da bifurcação entre teoria e prática. Ora, toda a epistemologia do racionalismo aplicado do século XX, de Gaston Bachelard, passando por Thomas Kuhn, Karl Popper ou Imre Lakatos, mostrou à saciedade a profunda interdependência entre teoria e empiria, acentuando a importância de observações teoricamente bem conduzidas para aprimorar o conhecimento da realidade e, mais do que isso, o papel central das teorias e conceitos para fazermos as perguntas difíceis que orientam todas as investigações e fazem a ciência progredir de erro em erro.
Claro que se percebe o que está subjacente: por um lado, regressa em força a primazia da ciência aplicada, à medida das encomendas, mercantilizada no seu âmago, pronta a usar. Por outro, transfere-se, uma vez mais, o dinheiro público para o setor privado, pois aquele investe na formação (demorada, cara) dos cientistas e profissionais que vão doravante trabalhar para satisfazer a procura, o ritmo e as oscilações dessa entidade metafísica chamada mercado. Finalmente, transformam-se os docentes em meros tecnólogos, formadores de aulas práticas e aceleradores da credenciação, pois o ministro, em provinciana referência, refere o exemplo holandês de mestrados express feitos em nove meses (por que não em três?)! Na verdade, os professores são uns chatos, que teimam em querer transmitir valores e processos demorados de construção intelectual e de análise crítica. Talvez o ministro e os doutos representantes da Nova School of Business and Economics e do MIT à portuguesa, o técnico (pacóvios deslumbrados pelos significantes lubrificados em inglês), tenham interpretado à sua maneira o célebre verso de Caeiro: “Pensar incomoda como andar à chuva.” Para si e essas personalidades, as aulas teóricas são expositivas e os alunos não participam. Lamento dizer-lhe, mas precisa rapidamente de fazer uma formação pedagógica. As minhas aulas teóricas são momentos de grande alegria e debate.
Diz ainda, na já célebre entrevista ao Expresso: “Até aqui, sempre foram os docentes a decidir o que vão dar. Mas a grande transformação é que sejam alianças entre os docentes e os empregadores a decidir o que deve ser dado para responder às necessidades.” Nunca nenhum governante tido ido tão longe no propósito de colonizar o campo académico e científico. Por isso, gabo-lhe a coragem. Ao menos agora fica claro que o seu ideal é colocar os CEO deste mundo a fazer programas, a definir objetivos de aprendizagem e métodos de avaliação. O docente executará, transformado em mais um colaborador do imenso e desmedido universo empresarial.
Senhor ministro: enquanto for professor, nos meus programas mando eu, em articulação com o conselho científico da minha instituição. Serei sempre sensível à interação com os alunos (interação sim, em copresença, mal passe a pandemia, face a face, sabe, essa coisa antiquada), à responsabilidade social, à escuta dos vários saberes que dialogam e complementam o saber universitário, que se quer humilde, poroso e dinâmico. Mas não prescindo da autonomia que séculos e séculos de acumulação de conhecimento e de luta contra o dogma e o obscurantismo me concederam. Sei quão preciosa é essa autonomia, pois o senhor quer tirar-ma. Aviso-o com serenidade: nem pense, tire já as mãos das minhas aulas.
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João Teixeira Lopes
Professor e sociólogo.
Nota de edição
O texto de João Teixeira Lopes que aqui se publica foi originalmente publicado no Jornal Público a 5 de Julho de 2021.
Ficha Técnica
Data de publicação: 21.07.2021
Edição #32 • Verão 2021 •