Por
um extenso artigo no Expresso da semana passada, onde eram ouvidos vários
reitores de universidades, acompanhado por uma entrevista ao ministro da
Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, ficámos a saber que “há uma
transformação profunda a ser preparada no ensino superior”. Esta “revolução”
consiste em “criar um modelo de ‘ensino híbrido’, em que as aulas teóricas são
disponibilizadas online e o tempo na universidade é reservado sobretudo para
aulas práticas”. Ou seja, a didáctica à distância introduzida por razões de
emergência sanitária ganha um estatuto definitivo. O factor pandemia funcionou
a favor de um processo que já estava em curso e que só precisava de encontrar
mais ampla legitimação e experiência para ser acelerado.
De acordo com este modelo, a componente teórica do ensino universitário fica por conta dos meios digitais e reduz-se o seu peso curricular. Manuel Heitor, o ministro, explica assim esta transformação: “Hoje, os jovens têm acesso fácil à informação, que está disponível em muitas fontes”. O presidente do Instituto Superior Técnico corrobora e diz que “parte do que era a formação docente, que era transmitir informação” se tornou “grandemente redundante”. E quanto ao reforço da componente prática e da flexibilidade, as razões são explicitadas pelo reitor da Universidade Nova, João Sàágua: “Os empregos do futuro são difíceis de prever, pelo que os estudantes têm de ter a capacidade de criar o seu próprio negócio. Por conseguinte, todos eles, das ciências sociais à engenharia, passarão a ter durante o curso uma formação em empreendedorismo”.
De
maneira muito sumária, tentemos resumir as razões e os objectivos desta
“transformação profunda”:
1)
Não foi apenas, nem sobretudo, a experiência da didáctica online praticada
durante a pandemia que permitiu torná-la uma solução estrutural e definitiva: a
universidade já tinha integrado e desenvolvido as condições para que esta
substituição se desse (ou, pelo menos, era um ideal para o qual se tendia). Por
isso, todos os desejos de reabertura e regresso à “normalidade” caíam na ilusão
de querer voltar a algo que historicamente já tinha deixado de existir.
2) A
ideia de que teoria e informação são equivalentes e de que os novos meios
digitais são fontes de informação que tornam redundante o papel dos professores
das aulas teóricas tem como fundamento o princípio de que o acto da leitura
(aquela que não se reduz à obtenção e elaboração de informações e dados), que é
uma experiência completamente estranha ao tempo e à espacialidade digitais, se
tornou obsoleta. Este ensino universitário sem leitura (e, consequentemente,
sem história) tem como requisito fundamental uma nova “literacia”, que João
Sàágua formula desta maneira: “E há outras matérias que vão também passar a
fazer parte de todas as licenciaturas, como a capacitação digital, a nível de
big data e codificação”. Esta cultura da literacia digital corresponde ao que
alguns universitários americanos designaram como obsessão por um “new
vocationalism” que renuncia ao ideal de uma esfera de interacção comunicativa
em que os cidadãos não estão reduzidos a códigos linguísticos específicos,
apenas funcionais no interior de uma esfera estrita de aplicação.
3) É
antiga a obsessão da universidade com o mercado de trabalho. Mas agora passou a
ser necessário projectar o ensino universitário num horizonte em que “os
empregos do futuro são ainda difíceis de prever”. Fácil de prever, e já
amplamente previsto, é uma sociedade de gente desocupada, graças à
automatização. Uma universidade capaz de responder aos desafios do futuro, como
quer o reitor João Sàágua, deveria então voltar-se não para o trabalho mas para
a ausência dele, introduzindo nos seus cálculos prospectivos a situação de uma
sociedade sem trabalho e não a generalização do empreendedorismo, já que o
número de empreendedores com que o mercado e a sociedade podem funcionar é
muito limitado, a não ser que imaginemos que metade da população empreendedora
vende o produto dos seus empreendimentos de madrugada e até ao fim da manhã, e
a outra metade que foi consumidora matinal passa a fornecedora vespertina e
nocturna dos empreendedores da manhã. A iniciativa de uma universidade de
Hamburgo, que atribuiu uma bolsa a quem apresentasse o melhor projecto de não
fazer nada durante um ano, talvez esteja mais à altura dos desafios do futuro e
das exigências de uma universidade moderna do que a obsessão com o trabalho, o
emprego e os novos vocacionalismos.
António Guerreiro
Imagem
«Kristof killed by T.V.» 1969. Will McBride
Nota de edição
O texto de António Guerreiro foi originalmente publicado no Jornal Público, na edição de 9 de Julho,
no caderno Ípsilon.
Ficha Técnica
Data de publicação: 20.07.2021
Edição #32 • Verão
2021 •