O design global por Hal Foster • Carlos Vidal







Poderíamos considerar que o design hoje (apagada a história que nos levou de Adolf Loos à Bauhaus) é sobretudo uma produção social, é já toda a sociedade; é o/um fazer ver [1] e não um produto social (pensemos no objecto, a sua funcionalidade está anulada, a noção do uso, seu valor, é agora uma absoluta fantasia). Ou seja, como o pós-estruturalismo dos inícios da carreira de Hal Foster poderia assegurar: o design é significado e não significante, é um estatuto e uma caracterização da propriedade. Gropius e a Bauhaus, não o esqueçamos, viveram uma crise de sociedade (o nazismo interrompeu-lhes a utopia e a visão do mundo) e a essa crise ligaram a “crise da arte”. Ora, como imagem objectual-teatral (ou literal, diria Michael Fried, empenhado no projecto moderno de superação do objecto-mercadoria a partir de uma determinada objectualidade, mais ou menos espiritual – como em Kandinsky –, mas nunca literal), [2] o design torna-se “ética” liberal, esteticiza o objecto, não o vê como forma pragmática devedora da experiência (Kant e a relação entre percepção e consciência). A função separa-se da forma – e é precisamente este o terreno do despontar de um novo tipo de ornamento (ou crime); por isso Foster presta, no título Design e Crime (E Outras Diatribes), uma clara e assumida homenagem ao Ornament und Verbrechen (1908) de Adolf Loos, onde o ornamento (no fundo, o fazer ver) é um retrocesso civilizacional (no qual gente como Goethe ou Beethoven nunca cairiam, diz Loos), é capital e trabalho desperdiçado.

Alguns anos depois da diatribe sobre o design, mostra Hal Foster, exactamente o mesmo acontecendo à sua “parente“ arquitectura, em The Art-Architecture Complex: nada de reflexão ou pensamento, mas estética: a Zaha Hadid e seus famosos mestres, Rem Koolhaas (o mais astuto conciliador entre o fantasismo pós-moderno e a modernidade) [3] ou Elia Zenghelis, interessa sobretudo desvelar novas vias para o edifício baseadas no futurismo, no expressionismo ou no construtivismo russo. A isto se resume o “arquivo“ de Hadid e a sua mnemotecnia (termo de Baudelaire que Foster aqui trabalha, no seu capítulo V, “Arquivos de Arte Moderna”).

Qual o papel da arte no inevitável processo de transformação da sociedade?, a pergunta de Walter Gropius desapareceu definitivamente e Hal Foster desenvolve uma crítica, irónica e cruel a um novo-velho complexo (que funciona como o “complexo industrial-militar”), o da arte-design-arquitectura, em que os dois últimos perseguem a primeira (a arte), formando uma máquina de guerra, em suma a nova máquina de guerra do neoliberalismo. Vejamos agora como Foster chega a estas conclusões. Apresentemo-lo, pois, aqui, neste que é o seu primeiro livro por cá publicado

1. Guy Debord entende bastante bem a relação entre o design – sem o citar expressamente – e a sociedade burguesa ocularcêntrica, a nossa civilização ocidental: “O espectáculo [diríamos, o design?] é o herdeiro de toda a fraqueza do projecto filosófico ocidental, que foi uma compreensão da actividade, dominada pelas categorias do ver; assim como se baseia no incessante alargamento da racionalidade técnica precisa, proveniente deste pensamento. Ele não realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo” (Debord, A Sociedade do Espectáculo, trad. F. Alves e Afonso Monteiro, Lisboa, Mobilis in Mobile, 1991, pp. 15-16).

2. Michael Fried, em “Art and Objecthood”: “a pintura moderna procura tratar como imperativo a derrota e suspensão da sua própria objectualidade, e o factor crucial deste empreendimento é a configuração (shape), mas uma configuração que pertence à pintura – deve ser pictórica e não literal. Enquanto isso, a arte literalista apoia-se numa configuração enquanto propriedade dada pelos objectos, se não mesmo um objecto em seu pleno direito. O literalismo não aspira derrotar nem suspender a sua objectualidade, mas, pelo contrário descobrir e projectar a objectualidade enquanto tal”. Quanto à relação entre teatralidade e tempo literal: “A preocupação literalista com o tempo – mais precisamente, com a duração da experiência – é, sugiro, paradigmaticamente teatral, como se o teatro confrontasse o espectador, e assim o isolasse com uma experiência interminável não apenas da objectualidade, mas do tempo; (...) Reclamo que é pela virtude da sua presentificação (presentness) e instantaneidade que a pintura e a escultura moderna derrotam o teatro”. Ver “Art and objecthood”, Artforum, 5, junho, 1967. Republicação: Michael Fried, Art and Objecthood: Essays and Reviews, The University of Chicago Press, 1998, pp. 148-172. Ver ainda, Michel Henry, Voir l‘invisible sur Kandinsky, Paris, PUF, 1988.

3. Ver, em Design e Crime, sobretudo, o capítulo IV, “Arquitectura e Império”.

 

1. 80

Mesmo quando Hal Foster, ao longo da década de 80, década que o revelou, acompanhando artistas então passíveis de serem considerados “críticos” (isto é, autores que intentavam analisar a paisagem da era da reprodutibilidade pré-cibermundializada e suas instâncias dominadoras, através do cartaz, Guerrilla Girls na senda da factografia soviética, ou da fotografia, Richard Prince, nada de complexo, digamos, quando trabalha o estereótipo do “Marlboro Man”), prolongando eu ou juntando aos citados anteriormente, Cindy Sherman, James Casebere, Matt Mullican, Louise Lawler ou Thomas Demand, este mais abstractizante (uma geração muito marcada pela crítica da representação de Guy Debord, tanto quanto pela repulsa sartreana pelo olhar, sorvedor e formador da consciência, ou ainda pelo sistema de “trocas” de Lacan e Merleau-Ponty), mesmo quando Foster se embrenhava nessa década em que firmou o seu nome e se movia no movediço terreno da pós-modernidade (como Fredric Jameson), buscava aí Foster, inspirado no situacionismo, no estruturalismo ou no desconstrutivismo, um criticismo progressista, ou seja, intentava colocar-se de um dos lados do mundo e barricada pós-moderna que não aceitava como amálgama (isto é, nunca foi um democrata plural num contexto de niilismo passivo, para utilizar alguns termos de Alain Badiou).

Pertinentemente, via então no pós-modernismo uma oportunidade de crítica social e encontrava ferramentas teóricas para recusar o dogma do “pluralismo”, antes como agora em moda e ritmo neoliberal, “pluralismo” (“As a general condition pluralism tends to absorb argument”, escrevia no seu primeiro livro) [4] que sempre foi um álibi para o não-pensamento e uma forma de, aliás, novo totalitarismo (unindo-se Foster a Marcuse, por exemplo, e tornando este precursor, ou ambos seguidores, de autores como Žižek ou Badiou, Meillassoux ou Rancière, ou Lacan e Derrida).

Se o mundo herdado de Thatcher, Reagan e Pinochet fora insuportavelmente abjecto, havia também ao mesmo tempo que revisitar todos os dogmas de “maravilhamento” do século XX e mostrar-lhe a face oculta e inversa (escovando-o a contrapelo, diria Benjamin noutro contexto). Isso fê-lo Foster já num livro de maturidade sobre o surrealismo e André Breton: Compulsive Beauty, 1993.

4. Ver o primeiro capítulo de Recodings: Art, Spectacle, Cultural Politics (Seattle, 1985), pp. 13-32.

 

2. Surrealismos

Tratou-se aí de uma notável investigação sobre a natureza psicopatológica e a deriva para a pulsão de morte no seio do movimento surrealista (algo que o seu “criador”, André Breton, sempre se encarregou de refutar, opondo, como se sabe, o amor e a liberdade “admiráveis” à “vida sórdida”, fugindo de vozes como as de Artaud e Bataille); curiosamente, o livro pode ser lido como preâmbulo do nosso tempo e suas disfunções sobretudo económicas, mas não menos psíquicas, materiais ou terrenas; e preâmbulo porque, típico do nosso chamado “antropoceno” escamoteado, tudo parece marchar em apocalipse alegre para o colapso final – Breton recalcou, inicia Foster a sua investigação, a sua experiência como assistente em 1916 de uma clínica de neuropsiquiatria, Saint-Dizier; um doente intrigava Breton, alguém que dizia ser a Guerra um simulacro, um homem traumatizado entre dois mundos que Breton nunca valorizou na sua “história do surrealismo”; esta estranheza esquizóide não desaparece, mas é recalcada: Como? O estranho convoca o recalcado, este é o trauma. Depois, para chegar ao amor convulsivo (Nadja), Breton vai amalgamar o estranho ao trauma e estes ao maravilhoso (Mabille). Este fechamento ou arquitectura suscitou críticas nas vanguardas e neovanguardas, até aos anos 70 pelo menos. Por isso, Hal Foster avança até um balanço destas nos anos 90 e num livro imprescindível: The Return of the Real: The Avant-Garde at the end of the century, saído no MIT Press em 1996.

É um livro estruturalmente distinto, sobretudo na sua génese, mas de objectivos aproximáveis a Recodings: Art, Spectacle, Cultural Politics, datado, como disse, de 1985, e com o qual The Return .... pode formar um “par” – um estará para a década de 80 (criticando o seu pós-modernismo reaccionário, mercantilista e identitário) como o outro para a de 90 (na sua retoma traumática das neovanguardas e introdução do tema do “artista etnógrafo”), sendo este livro, ainda e sempre, uma excelente introdução à arte dos nossos dias pós-vanguardistas nas suas dinâmicas contraditórias (como em todas as épocas, mas Foster nunca temeu dilucidar este facto e estudá-lo para fazer escolhas).

 

3. Vanguarda, vanguardas

Em Recodings..., Foster, então professor de História da Arte e de Literatura Comparada na Universidade de Cornell, reuniu ensaios previamente publicados entre 1982 e 1985, em Art in America, New German Critique e, inevitavelmente, OCTOBER, referência máxima dos estudos visuais (políticos e psicanalíticos), a publicação teórica de que integra o núcleo duro com Rosalind Krauss, Annette Michelson (falecida em 2018), Buchloh e Yve-Alain Bois. Nestes estudos assumiu estrategicamente a vocação e a distanciação crítica do pensamento pós-estruturalista (como Craig Owens, Douglas Crimp e Rosalind Krauss, entre outros que abandonavam o primado da estrutura global debaixo da qual gravitavam as redes de estruturas menores), tendo por finalidade questionar e rejeitar o retorno da representação na arte desse período e, acima de tudo, a forma como tal se processou. (Repito, a forma como tal se processou.)

Genericamente, sob o modo leviano (Kiefer é disso um exemplo) de uma associação entre o “regresso à pintura”, o “regresso à figuração” (que, num outro ensaio fulminante, Benjamin Buchloh aliaria ao regresso dos processos sociais totalitários, ligação testemunhada ao longo deste século desde o fascismo italiano ao “reaganismo”) e uma expansão mercantilista – caracterizadora dum pós-modernismo predominantemente conservador (moral, política e economicamente) –, antevista nos interesses das novas instituições museológicas e numa regeneração do mercado que desvalorizava a neovanguarda tornando-a sinónimo de mercantilização da vanguarda histórica na sequência das teses de Peter Bürger (crise das vanguardas que foi o tema central da obra de Warhol, que no entanto e cirurgicamente o tratou como “tragédia”, “luto”, contra a via celebratória de Jeff Koons ou Matthew Barney).

 

4. Representação

Para Foster, como para Craig Owens (falecido em 1990) nesse momento, mais do que recusar a narratividade histórica e a representação, interessava valorizar a análise dos processos representacionais, compreendendo o que levava à exclusão de uns e à estimulação de outros. Partindo de Theodor Adorno, Foster afirmava ser necessário, por oposição à irracionalidade do capitalismo tardio (Lenine, Habermas ou Jameson) que tudo pretendia absorver e anular (homologando as chamadas “diferenças”), propor contramodelos fazendo face à depressão causada pela queda (aparente) das narrativas políticas tradicionais (concretamente, o marxismo).

No campo da crítica, em particular, constatava-se que os seus dois pilares básicos até então se encontravam esgotados. Isto é, tínhamos um criticismo, na linha do pensamento Iluminista, que separava a prática e o conhecimento em duas esferas autónomas (autor e espectador ou autor e teoria) e, por outro lado, uma actividade crítica fundada no paradigma burguês do espaço público, da “livre expressão” e da “livre iniciativa”. O desvio de Foster, nas suas renovadas teorizações e na sua prática (enquanto crítico de arte), fundou-se em premissas pertinentes. Anteviu que a crítica de estilo iluminista não conseguia libertar-se das discussões mais ou menos autistas em torno do belo, do gosto e da recepção, e que o paradigma da chamada “livre iniciativa” se perfilava segundo interesses mercantilistas, legitimando (pseudo)teoricamente uma determinada “base financeira” e a “garantia da propriedade” como coisa para a eternidade.

O retrato desse período histórico (fim de século) era assim esboçado por Foster:

“Presentemente (...) podemos distinguir pelo menos duas posições sobre o pós-modernismo: uma associada às políticas neoconservadoras, a outra relacionada com a teoria pós-estruturalista. Das duas, é o pós-modernismo neoconservador o mais conhecido: definido essencialmente em termos de estilo, depende do modernismo, que, reduzido à sua imagem mais formalista, é confrontado com um regresso à narrativa, ao ornamento e à figura. (...) esta posição é de reacção, mas em mais aspectos que o estilístico – também defendido é o regresso à história, à tradição humanista e o regresso ao sujeito.” [5]

Por contraposição, o pós-modernismo denominado de pós-estruturalista, na senda das batalhas teóricas de Barthes, Foucault, Derrida ou Althusser, ia definindo a “morte do homem” (ou seja, a sua anulação como sujeito da representação ou sujeito narcísico da história), ou a “morte do autor” numa nova exaltação experimental do significante, deixando ao artista um espaço de analítica micrológica, cirúrgica, sobre as formas tradicionais de exercício do poder e da representação (Foucault). Um novo conjunto de responsabilidades.

Tudo isto marcaria o livro de Hal Foster sobre o surrealismo e o seguinte sobre as vanguardas históricas. A sua reavaliação do surrealismo fez-se, como se disse, pela via da exaltação da sua obscuridade recalcada. Partindo de Breton, que escreveu em Nadja, “La beauté sera CONVULSIVE ou ne sera pas” (e todos o lemos), Foster aparta-se do “fundador” (e da presença exclusiva do “amor admirável”), convocando pensadores como Jacques Lacan, Bataillle, Michel Leiris, Roger Caillois e, last but not least, Marcel Duchamp. Ou seja, e com Rosalind Krauss (na sua dedicação ao heterológico “informe” de Bataille, aquilo que não tem outra forma que não a viscosidade de um escarro, mas tem-na: não confundir “informe” com abjecção), dizia, com Krauss e Hollier, Foster bem conhece este surrealismo dissidente, iniciado por Artaud.

O livro legitima-se, por assim dizer, tomando as análises do presente como ponto de partida para um recuo predeterminado, útil ou retroactivo. Isto é, constata-se que se o minimalismo e o conceptualismo, nos anos 60 e 70, encontraram matrizes operativas em movimentos como o dadaísmo e o construtivismo (sobretudo neste último), as estéticas surgidas nos anos 80 – enquanto críticas das imagens mediáticas institucionais, dotadas de uma correlativa construção das identidades, bem como de novos espaços de reclamação da sua especificidade (os movimentos gay e feministas) – encontrariam raízes num surrealismo por desvelar e quase sempre recalcado por uma falsa determinação modernista.

Num surrealismo que, apesar do seu heterossexismo (veja-se Breton, de novo), introduziu a sexualidade nas artes visuais e o inconsciente na vida quotidiana. Em conclusão, o surrealismo foi precursor do pós-modernismo através de uma peculiar contramodernidade – bastante clara no conflito que oporia André Breton a Georges Bataille.

Por seu turno, em The Return of the Real ..., analisando a evolução dos últimos 30 anos até à escrita do livro (de 70 a 90), Foster propõe três paradigmas interpretativos. Se, perante a natureza fenomenológica (e assexuada, como dirá Benjamin Buchloh) do minimalismo e do conceptualismo a arte se apresentou como “texto” (e se aceitarmos a restrição da arte conceptual a um trabalho de definição da arte por via linguística), nos anos 80, como vimos, a arte relacionar-se-ia com toda uma panóplia de simulacros, realizando a crítica desconstrutiva da representação mediática e de suas modalidades de domínio (economicamente liberais, sociologicamente morais e conservadoras ao ponto de um exercício intolerável de censura, bem conhecido e iniciado depois da morte de Mapplethorpe).

5. Recodings, p. 121.

 

5. O regresso do real

Nos anos 90, o paradigma da arte seria, para Foster, o “retorno do real”, através de uma estética do corpo embrenhada nos fenómenos sociais. Desligada desta feita da mediatização e do simulacro. Num segundo plano do seu livro, Foster revalida o conceito e o papel das vanguardas, desde as vanguardas históricas até às neovanguardas, propondo uma nova síntese dos eixos temporais dominantes na arte deste século.

Opondo-se ao filósofo Peter Bürger (o qual, no conhecido Theorie der Avantgarde, de 1974, iria negar as potencialidades das neovanguardas dos anos 60 / 70, por considerá-las repetitivas em relação às vanguardas históricas, transformando assim a anti-arte em artisticidade e a transgressividade em institucionalização), que considerou como um autor ainda dependente de um pensamento mítico que procurava a “pureza” de um momento original (por isso as neovanguardas foram um fracasso para Bürger), Hal Foster viria agora propor duas críticas essenciais a este e a qualquer outro pensamento mítico-originário (que desejava uma “vanguarda pura” nunca existente): uma, fundada na noção de paralaxe, outra, na de acção diferida; a primeira diz-nos que a nossa construção do passado depende da nossa posição no presente, e, consequente e sucessivamente, esta é redefinida por essa construção do passado, numa mútua mutabilidade interminável. A segunda noção de Foster, estabelecida depois de Freud e Lacan, reporta-se ao facto de que um evento tem um registo traumático quando é retomado retroactivamente: ou seja, os chamados actos de ruptura ou fundacionais (para Bürger, como vimos, as vanguardas históricas), apenas são-no quando retomados numa segunda vez, ou seja, apenas podemos dizer que algo aconteceu quando acontece duas vezes.

Por exemplo, nos anos 60, Robert Morris é um dos mais importantes artistas a reler Duchamp – assim, Duchamp só é hoje Duchamp porque existiu nos anos 60 ou 70 artistas como Morris que historicizaram (termo caro a Michel Fried) o seu processo “fundacional”, catalogando semiologicamente as possibilidades do ready made (quem não é retomado, desaparece).  O mesmo para todos os outros artistas fundadores da modernidade, como Picasso, por exemplo, o qual quando trabalhava nas Demoiselles d'Avignon não poderia, no exacto instante em que a realizava, perceber (ainda que o pudesse antever) a dimensão de um processo de historicização que cunharia essa tela como algo de fundador, porque obviamente a historicização é um deslizamento temporal de décadas e não um passe de mágica processado num instante de segundos ou breves minutos. Ora, esse deslizamento temporal gera sempre novas movimentações futuras.

Por isso, para o ensaísta, a vanguarda é um conceito do passado (!!!) que regressa sempre a partir do futuro. Escreve, a este propósito: “Actualmente, é crucial a relação entre as transformações dos modelos críticos e os retornos das práticas históricas (...): como é que uma re-ligação com uma prática do passado se pode tornar a base de uma des-conexão de uma prática presente e / ou um desenvolvimento de uma outra, nova?”.

Concluindo, desde os anos 60 que a arte retoma determinados processos das vanguardas históricas do início do século XX (como a análise construtivista do objecto, a fotomontagem – matriz de um novo conceito de imagem –, ou a crítica museológica do readymade) para os seus fins contemporâneos. Para o seu tempo.

 

6. Design e Crime

Para que esta revisão e reabilitação (que pode ser apenas uma necessária visita, como opera ciclicamente a história da arte, visita, citação ou funda implicação) das práticas das vanguardas não fique esvaziada e sem exemplos, Foster vai, seguidamente, exemplificar o seu programa de trabalho (que podemos chamar de “crítico”) mostrando os serviçais e espectaculares caminhos, estruturadores do mais fanático liberalismo, que tomaram duas artes ou duas disciplinas artísticas: o design e a arquitectura nesta sociedade da logomarca, nesta logomaquia. Nas obras, Design and Crime (And Other Diatribes) (2002) e The Art-Architecture Complex (2011). Analisemos atentamente o primeiro destes trabalhos, o nosso livro.

Em Design e Crime, Foster começa por um tema que nos remete para o universo acutilante e impiedoso de Karl Kraus (aliás, um dos protagonistas de Design e Crime). Pensemos, pois, neste problema à maneira de Kraus: qual é a causa do amolecimento cerebral contemporâneo, e a quem serve? Foster, peremptório: é a transformação da ética de vida (Nietzsche, Foucault) num mero décor; é o design global: aí cada indivíduo é, ao mesmo tempo, “designer” e “designed”. A manipulação pelo design é total: da casa (design de decoração) ao rosto (cirurgia plástica), da personalidade (drugs design) ao DNA (children design), de um candidato presidencial ganhador à Young British Art (nos livros-objectos de Bruce Mau, por exemplo), passando pela memória histórica (museum design), à arquitectura-espectáculo de Frank Gehry (“este designer de museus metálicos e salas de concerto curvilíneas,”) e à teoria-espectáculo de Rem Koolhaas (ver caps. III e IV) que não resistiria à realidade (o 11 de Setembro). Neste sentido nem é preciso ser-se muito rico para se aceder ao mundo do design global e à transformação da cultura comercial numa nova fonte de “status”: tudo é acessível já na província, desde a marca Sacks à revista The New Yorker, e ninguém precisa de viajar a Manhattan para conhecer os seus “arquivos” (comentando aqui Foster as ideias de um crítico desse magazine, John Seabrook no livro The Culture of Marketing, The Marketing of Culture), pois os arquivos entrópicos electrónicos já estão em todo o lado.

Hoje não é toda a cultura de massas que sai vencedora, é sobretudo o abaixamento do género “criança de elite”. E isto é muito: é a vulgarização do “valor médio” (que não é mais distintivo: para os defensores de uma cultura sem hierarquia [“nobrow culture”] já não há mais intelectuais) obrigado a concorrer com tudo o resto na megastore, esse lugar mítico onde qualquer coisa se vende até mesmo a fantasia de que as divisões de classe já foram suspensas. É um mundo de “qualidades sem pessoas” (que Foster citará com Robert Musil) que se abre.

Em Design e Crime (título do capítulo II e do livro), Foster é certeiro: o nosso fim de século XX foi similar ao fim do anterior, quando o “Art Nouveau” pretendia-exigia aplicar a tudo o mesmo motivo floral – da arquitectura aos cinzeiros, tratando objectos como mini-sujeitos. Os cegos de hoje são os que não querem perceber como é que esse “estilo” rapidamente passou de obsoleto a Camp e Kitsch, e que é essa menoridade que preside ao nosso descomprometido (cultural e politicamente) total design, ao “Style 2000” e à estética do “poor little rich man” do “dot.capitalismo”.

Para esta análise, Foster toma como referência, como já sublinhado, o conhecido ensaio de Adolf Loos, Ornamento e Crime, de 1908, para que percebamos como é que os objectos constroem a individualidade e identidade dos seus proprietários. Loos atacava um certo tipo de comprador de “Art Nouveau” que pretendia que “se colocasse arte em cada detalhe de um objecto”; vale a pena ler de novo Adolf Loos, aqui recordado:

“Cada divisão formava uma sinfonia de cores, inteira em si mesma. A harmonização das paredes, dos papéis de parede, da mobília e dos materiais era feita dos modos mais engenhosos. Cada artigo doméstico possuía o seu próprio lugar específico e integrava-se com os restantes em admirabilíssimas combinações. O arquitecto não se esqueceu de nada, absolutamente nada. Os cinzeiros para charutos, os talheres, os interruptores — tudo, tudo foi feito por si” (pág. 20); para que a “individualidade do proprietário se manifestasse em cada ornamento, em cada forma, em cada prego”.

Tarefa que é hoje cumprida pelo chamado “objecto de design”. Para o designer “Art Nouveau” esta perfeição – pensar a conjugação do movimento de uma abóbada com a cor de um prego – era a máxima completude.

Do “Art Nouveau” à Bauhaus, das teses sobre a indústria cultural de Adorno à sociedade do espectáculo de Guy Debord, dos anos 20 da rádio, cinema e da reprodução – que Debord tomou como início da sociedade do espectáculo –, da era da imagem no pós-guerra (dissecada por Andy Warhol) ao “dot.capitalismo” do momento, Hal Foster analisa um tempo em que a economia pós-fordista de produção de bens ligada a mercados demarcados (“constantly niched”) gerou uma total desregulação do capitalismo: agora, design, marketing e espectáculo substituem-se à produção (são, acima de tudo, uma estética social). E não apenas se substituem à produção: são a única produção existente (que já não distingue objectos e ideologias, pragmatismo e função).

Creio que podemos ver nesta denúncia do total design e da sua penetração em todas as esferas da vida social e artística, a continuação de algo que nos anos 80 ocupou Foster: a crítica do pluralismo. Essa disfarçada preparação para a aceitação da arte-mercadoria, da arquitectura e teoria-espectáculo. Um dos ensaios de Recodings (1985), não por acaso o primeiro, intitulava-se “Against pluralism”. Aí denunciava-se o pluralismo como posição-alibi, ao mesmo tempo um esvaziamento das argumentações e a preservação do status quo político, do gosto e da crítica, indefinidamente. Em suma, este Design e Crime é importante pelo seu diagnóstico, abrindo o que eu vejo como uma quarta via no pensamento do autor.

Vejamos outras vias mencionáveis na trajectória de Foster (e o recente Bad New Days: Art, Criticism, Emergency, 2015, retrospectiva tudo isso): 1) a defesa (em Recodings nos anos 80) de um pós-modernismo pós-estruturalista por oposição a um pós-modernismo conservador, este ligado ao estilo, à narrativa operática, ao ornamento e às políticas de Reagan e Thatcher. 2) a ligação entre um “retorno do real” e um “retorno do medium”. Se entendermos por medium um simples “corpo” (humano, fotográfico, pictórico, etc), valerá a pena relembrar uma entrevista (com Ruben Gallo), onde Foster faz esta autocrítica:

“A arte contemporânea afastou-se do modo de ver o mundo da minha geração de artistas e críticos, na qual, para o dizer cruamente, tudo parecia ser uma imagem, um efeito de representação. A noção baudrillardiana de simulacro impregnou muito do trabalho dessa época. Mas a geração posterior, a que está hoje activa, tem uma ideia diferente do real. ‘O retorno do corpo’ é um cliché, mas, como alguns outros clichés, tem em si alguma verdade. O corpo reafirmou a sua pretensão de que não pode ser elidido pela representação, de que não desaparecerá no ciberespaço”. [6]

3) por fim, relacionado com o tópico anterior, Hal Foster, embora não como Harold Bloom, vai considerar que uma obra conseguida do presente desenvolve aspectos pertinentes de uma obra do passado. Sem referências causais, pois as relações de Foster trabalham uma releitura do conceito de vanguarda, complexificado e reversível.

Uma alusão final ao importante Capítulo VII deste Design e Crime, “Art Critics in Extremis”, uma reflexão sobre a critica de arte americana desde o pós-guerra à actualidade. Recordando Clement Greenberg, as relações complexas entre este e Michael Fried, Rosalind Krauss, Barbara Rose, Harold Rosenberg ou Annette Michelson, Foster vai concluir que não há boa crítica sem conflitualidade dramática (e já antes defendera uma “autonomia estratégica” para a arte e o artista) – algo que é estranho a um tempo, o nosso tempo, em que nesta espécie de luto do chamado “formalismo greenberguiano” se gera a larga passada para o domínio dos dealers e “comissários a-críticos”. Daí que a actual expansão seja antes uma contracção, nas palavras de Theodor Adorno, oportunamente recordadas por Hal Foster.

Secundando e seguindo estes pontos de vista, chegamos à arquitectura, hoje o mais eficaz instrumento de “identidade” das “big corporations” em competição na nova logomaquia estética. Enfeite fantasista da nova ordem mundial social-espectacular. Escape desta actual cultura de congestão (Rem Koolhaas).

Segundo Foster, existe hoje uma arte-arquitectura “connection” que é fruto de interacções, nos últimos 50 anos, raramente movidas por motivações exactamente arquitectónicas. Ora esta arte-arquitectura “connection” destina-se ao retrato de governos e “big corporations” que, deste modo, adquirem a sua identidade e identificação num mundo global de negócios planetários. Para Foster, justamente, é sempre de negócios que se trata mesmo quando esta “connection” entra no domínio da cultura (onde ela, aliás, se sente melhor), ou seja, no mundo das indústrias do entretenimento entretecido com a cultura, onde até as cidades operárias são destinos chiques de turismo cultural.

Neste livro, a ideia de Foster é a de que arquitectos como Zaha Hadid, Diller Scofidio ou Jacques Herzog viram-se para a arte com uma visão “artisticista” para precisamente reanimarem a arquitectura e seu vocabulário, aparentemente exausto depois da querela modermo/pós-moderno. Esta “artisticidade” segue-se à arquitectura da geração de Richard Rodgers e Norman Foster, ou Renzo Piano, que reeditaram o international style de Gropius e Mies van der Rohe nos seus tópicos: pragmatismo, utopia e ideologia. O design foi buscar vocabulário ao minimalismo (Judd) e a arquitectura à arte: por exemplo, Hadid ao construtivismo russo (já explicado e notório nas pinturas da autora), Scofidio ao conceptualismo e ao feminismo, etc. São arquitectos dotados, sim, mas de uma habilidade imagística contra tópicos como os de “programa”, “função” e “estrutura”. Assim, a arquitectura é hoje imagem-evento, edifício-escultura e performativa.

6.Hal Foster / Ruben Gallo, “The return of shock and trauma”, Trans>, 3 / 4, Nova Iorque, 1997, p. 48.

 

7. Emergência agora!!

Ora, depois desta desmitificação do design e da arquitectura, que hoje vivem do cadáver de Gropius, por exemplo, assim colocadas num eixo “globalização-big corporations-Dubai-Zaha Hadid” (e atenção que as pinturas desta autora são pouco mais do que miseráveis, apesar da sua arquitectura servir muito bem os seus propósitos ideológicos), Foster, nestes desastrados dias em que vivemos, “regressa” à vanguarda (por si totalmente redefinida e sem clichés), propondo-nos o seguinte: a vanguarda não é uma ruptura nem a instituição de uma nova ordem. Cabe-lhe antes abrir fracturas já existentes na ordem presente e aprofundá-las.

Como? (E logo por aqui se percebe que Foster conhece, na raiz e na utopia, os caminhos das vanguardas desde os inícios:) na sequência do “arquivismo” fotográfico de Rodchenko, das fotomontagens de John Heartfield e das colagens de Hannah Höch, Foster vê hoje o mesmo impulso arquivístico em obras como as de Hirschhorn, Joachim Koestler, Bartana, Jeremy Deller, Stan Douglas ou no Otolith Group.

Vejamos de perto este tema do “arquivo”. Como nos relembra Derrida (Mal d’Archive), etimologicamente, o arquivo leva-nos à origem e ainda à possibilidade de seleccionar (exercer poder, portanto), movido por uma pulsão de morte (o “arconte” guarda e selecciona – portanto, temos também o “arquivo morto”, e o fracasso de tudo conseguir guardar e abarcar são inerentes ao arquivo). Isto significa que os temas da origem, selecção, classificação e pulsão de morte, são inerentes à arte actual. Isso é testemunhado em obras de Tacita Dean ou, de novo, Thomas Hirschhorn, este com os seus “monumentos” dedicados a Deleuze, Ingeborg Bachman ou Bataille, que são uma infinita revitalização da história e do pensamento (e sempre no espaço público). Tacita Dean, em Bubble House ou Sound Mirrors busca um passado quase perdido e irrecuperável que nos faz pensar no presente e, claro, nos dias próximos. Exactamente como nos livros de Sebald, somos “fantasmas de repetição” num mundo devastado.

E, paradoxal ou estranhamente, um dos grandes méritos destas obras reside no facto de nos “avisarem” de que a memória pouco ou nada pode fazer por nós. Estamos sempre em solidão e, desorientados, temos de agir e movermo-nos. Movermo-nos neste “junk-space” do capitalismo.

Bem alicerçado (Capítulo V) no trabalho de pensadores como Bruno Latour (temos possibilidades de fazer distinções nos nossos “arquivos” que os nossos antepassados não tinham), Rancière ou Giorgio Agamben, Hal Foster, inteligentemente, vai-nos dando as suas próprias respostas.

O idílio terminou.

 

 

Carlos Vidal

Artista (protagonizou a exposição “Imagens para os Anos 90” em Serralves, onde se encontra representado) e professor na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, onde lecciona Pintura, Composição, Temas da Arte Contemporânea, e orienta teses de mestrado e doutoramento. Tem três livros recentes, “Invisualidade da Pintura”, “A Sombra Total: Arte, Amor, Ciência e Política em Alain Badiou” e “Deus e Caravaggio” publicados em Espanha na editora Brumaria (com edição inglesa de “Deus e Caravaggio” no prelo). Tem-se dedicado a temas como o “Siglo de Oro” (colaborou com textos nos eventos dos 400 anos do nascimento de Murillo, Sevilha), o barroco italiano (Caravaggio), a videoarte (“Invisualidade da Pintura”) e o pós-colonialismo (“Globalization or Endless Fragmentation?”, em “Over Here” ed. G. Mosquera e J. Fisher, The MIT Press, 2004).

 

Nota da edição

Este texto serve de posfácio ao livro “Design e Crime”, publicado recentemente pela VS Editor, com tradução de Vasco Gato. Carlos Vidal publicou ainda no Punkto um outro texto de apresentação ao livro São Paulo de Alain Badiou, publicado igualmente pela VS Editor.

 

Imagem

“Mies-en-abyme”,  2014.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 06.04.2021

Edição #31 • Primavera 2021 •