Lockdown, o ovo da serpente das sociedades de controlo • Rui Gilman

 

 

A eleição da palavra do ano 2020, no Reino Unido, pelo Collins Dictionary, baseada na análise de uma base de dados de 4,5 biliões de palavras de material escrito e oral (websites, livros, jornais, rádio, televisão e conversas) recaiu numa palavra cujo uso, no espaço de um ano, havia aumentado 6000%.[1] Essa palavra foi LOCKDOWN.

1. Marco Perisse, “La parola dell’anno è diversa da quello che pensi”, GQ Italia, 10 de Novembro de 2020.

Desde que em Março de 2020 uma vaga de “lockdowns” encerrou, um a um, a quase totalidade dos países da Europa (Itália a 9, Espanha a 15, França a 17, Portugal a 18, Reino Unido a 26…), o “lockdown” ou confinamento tem ocupado um lugar central na opinião pública e publicada. A cacofonia mediática, o medo do desconhecido e a urgência de acção, aliadas a uma forte politização, tiveram como efeito a criação de um modelo de debate polarizado e maniqueísta, dividido em dois campos opostos: pró-lockdown e anti-lockdown.

O campo pró-lockdown, maioritário, apoiado por partidos mais institucionalistas (directa ou indirectamente ligados ao poder vigente), ancorado comunicacionalmente nos media tradicionais e na comunicação oficial do estado, suportado pelos especialistas e assente no primado da ciência e na defesa dos valores da vida, da prudência, da responsabilidade e da solidariedade.

O anti-lockdown, minoritário, apoiado por partidos populistas ou libertários, sem responsabilidades governativas, comunicacionalmente assente quase exclusivamente na internet e nas redes sociais, suportado por especialistas dissidentes ou “párias” da comunidade científica e assente na defesa da economia, no questionamento da ciência e nos valores da liberdade de escolha e do individualismo.

Se em certos países este em(de)bate cavou um profundo cisma, promovendo um clima de quase guerra religiosa, em Portugal – resultado duma conjuntura política invulgar - acabou por redundar num unanimismo ecuménico que elevou o “lockdown” a “dogma de fé”, excomungando “heréticos” e circunscrevendo a discussão a um debate entre “crentes” - mais progressistas ou mais ortodoxos - em torno de minudências sobre a sua extensão temporal ou abrangência.

Quer na hostilidade sectária dos primeiros quer na concórdia conciliatória dos segundos, a discussão do “lockdown” seguiu invariavelmente o mesmo percurso, partindo da análise das projecções dos modelos matemáticos que justificariam a sua implementação e terminando quase exclusivamente num debate em torno da eficácia. Sigamos o mesmo ritual.




LOCKDOWN, os modelos


“Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem.”

Jean Baudrillard, “Simulacros e simulações”


A 16 de Março de 2020, um estudo da Imperial College of London prevendo 500 mil mortos no Reino Unido até ao fim do Verão, faz Boris Johnson inverter o rumo da sua política de combate ao Coronavírus.[2]

2. Até ao dia 10 de Março de 2021, o Reino Unido tinha registado 124.797 mortos por Covid-19.

Como constata um editorial da prestigiada revista médica The BMJ, “a pandemia de coronavírus tem revelado muito sobre a acção política, inclusive até que ponto os políticos e seus conselheiros confiam e dependem da modelação para ajudar a prever o futuro da propagação do vírus e decidir quais as melhores acções a tomar”.[3] A fé excessiva e quase exclusiva nestes modelos matemáticos, pese embora a sua inquestionável utilidade, não deixa de ser surpreendente, tendo em conta que estes “(…) têm limitações bem documentadas (…)”, algumas de natureza intrínsecas outras de natureza externa, algumas gerais outras específicas dos modelos covid-19. A saber:

-uma débil calibração empírica;

-uma conceptualização excessivamente abstracta de populações e seus comportamentos;

-o facto destes modelos, enquanto sistemas complexos, estarem sujeitos a variações enormes e imprevisíveis, derivadas de pequenos eventos iniciais indetectados;

-a falta de qualidade dos dados disponíveis (dispersos e colhidos em tempo real devido à inexistência histórica dum surto prévio);

-a sobrestimação de premissas teóricas;

-a reutilização de modelos prévios, desenhados para outras epidemias ou para outros fins;

-a pressão pública para respostas rápidas, incompatível com o percurso normal do progresso científico, baseado na revisão pelos pares, na testagem e na replicabilidade;

-as expectativas descentradas em relação ao papel da ciência;

-o equívoco em relação à certeza do conhecimento científico;

-a confusão no que concerne à responsabilidade pública;

-o secretismo e a falta de transparência dos códigos dos modelos;

-a falta de qualificações dos modeladores no que concerne a doenças infecciosas;

-a afinação dos modelos no sentido da obtenção de resultados que vão ao encontro das expectativas ou pensamento dominante;

-a pressão sensacionalista causada pela avidez por previsões catastrofistas das publicações especializadas, dos media e da sociedade em geral.

3. cf. editorial de “Modelling the pandemic”, The BMJ, 21 de Abril de 2020, in https://www.bmj.com/content/369/bmj.m1567.

Estas fragilidades fazem com que as previsões funcionem bem na dimensão do “ideal” (em comunidades fechadas com populações homogéneas) mas falhem com estrondo na realidade complexa do mundo global, justificando assim o paupérrimo currículo das previsões de pandemias, apenas reforçado pelos fracassos recentes na actual crise da COVID-19.

Exemplo cabal de tudo o que foi dito são previsões como as de um dos mais mediáticos “especialistas” portugueses[4], que antecipava uma média 17.000 novos casos entre os dias 10 e 12 de Fevereiro de 2021, quando apenas se registaram 3728.

4. Professor Carlos Antunes é licenciado em Engenharia Geográfica e doutorando em Geodesia Física.

Como explicar que perante erros sucessivos desta magnitude, nem a fiabilidade científica da disciplina em que se inserem os modelos, nem a competência técnica dos cientistas que os produzem, nem a credibilidade política dos decisores que neles se baseiam sejam minimamente beliscadas?

Talvez tal se deva a uma progressiva confusão entre legitimidade científica e legitimidade política que politiza a ciência e cientifica a política, convertendo o hipotético em certeza e transformando escolhas políticas em decisões técnicas. O “lockdown” é uma escolha política.


 

LOCKDOWN, a experiência

 

“Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem.”

Hebreus 11:1

 

Num recente artigo, um médico americano questiona(-se) “Do Lockdowns work? — And, if so, how much?”[5], elencando dificuldades colocadas a uma averiguação, minimamente rigorosa e exacta, dos efeitos e eficácia dos “lockdowns”:

1.   Flexibilidade analítica introduzida pelo desfasamento temporal entre a entrada em vigor das medidas restrictivas e o seu efeito, resultando numa diversidade de conclusões, consoante a data a partir da qual se analisem os efeitos da intervenção (análises extemporâneas poderão não detectar efeitos ou detectar efeitos negativos do “lockdown”, ao passo que análises tardias poderão detectar efeitos positivos não provocados por este);

2.    Aplicação simultânea de uma multiplicidade de restrições concorrentes;

3.  Diferentes definições de “lockdown”, de escolha dos países ou regiões a estudar, de métodos para modelação de dados ou a multitude de investigadores, implicando resultados variáveis;

4.  Variabilidade no tempo da eficácia do lockdown consoante o rácio ou o número absoluto de casos, ou ainda, segundo variantes biológicas ou geográficas;

5.  Graus variáveis de observância das restrições pelas populações ao longo do tempo (fadiga pandémica) implicando efeitos diferentes ou mesmo divergentes com a aplicação de um mesmo modelo de “lockdown”, numa mesma localização;

6. Efeitos diferentes dependendo da cultura regional, práticas de nações vizinhas, densidade dos agregados domésticos ou clima político;

7.   Variação do impacto das restricções consoante a cobertura mediática (um “lockdown” tenderá a funcionar melhor se cobertura mediática for serena e pior se esta for frenética);

8. Discrepância entre a precisão das restricções e os comportamentos promotores da disseminação viral (o “lockdown” de uma cidade inteira será inútil se porventura a maioria ou totalidade dos contágios acontecer numa instalação específica que continue aberta ou a laborar);

9.  Robustez dos sistemas de saúde e de segurança social da região ou país em que é aplicado;

5. Vinay Prasad, “Op-Ed: “Do ‘Lockdowns’ Work – And, if so, how much?”, MedPage Today, 4 de Fevereiro de 2021.

O autor suspeita ainda que, se a estas dificuldades na análise do impacto das restrições gerais impostas pelo “lockdown”, somarmos o infinito rol de pequenas restrições, mais ou menos temporárias e discricionárias, aplicadas geograficamente de forma não uniforme (desinfecção, uso de máscara, divisórias de acrílico, recolher obrigatório, saídas de casa em horários diferentes para diferentes grupos etários, aulas presenciais de janela aberta, encerramentos de praias, fecho de jardins, retirada de baloiços, proibição de sentar em espaço público, proibição de fumar, substituição de toalhas de pano por de papel, limitações à venda de álcool, ementas em código QR...) chegaríamos muito provavelmente à desoladora conclusão que “para muitas das restrições – talvez até para a maioria das restrições – nunca saberemos” qual o seu impacto real. Conclui, por fim, que o “entristece saber que acabaremos com uma ideia muito pouco clara relativamente a que intervenções ajudaram, prejudicaram e foram neutrais. Imaginem que conduziam um estudo multibilionário e não conseguiam uma única resposta”.

O artigo relembra-nos aquilo que o “novo normal”, ao caducar a novidade e ao trivializar o anómalo, se esforçou por nos fazer esquecer. O lockdown - sendo inconclusivo quanto aos benefícios directos, mas inquestionável quanto aos efeitos colaterais - é algo de absolutamente novo, sem qualquer precedente histórico e consequentemente não testado. O “lockdown” é uma experiência.[6]

6. Anders Tegnell (Epidemiologista-chefe da Suécia), afirmou “Penso que vários países deviam ter pensado duas vezes antes de terem adoptado as medidas extremamente drásticas do lockdown (...) [o lockdown] é que é experimental, não o modelo sueco.”, Johan Ahlander, “Loved and loathed, Sweden’s anti-lockdown architect is unrepentant”, Reuters, 25 de Junho de 2020.



LOCKDOWN, a origem

 

“O caminho do inferno está pavimentado de boas intenções”

Karl Marx, “O Capital”, volume I

 

Outro aspecto igualmente intrigante e ainda mais esquecido da “(…) inquestionavelmente a maior experiência psicológica alguma vez conduzida”[7], é a sua origem extraordinariamente recente.

Na língua inglesa, segundo um artigo do The Guardian, a palavra “lockdown” remonta ao século XIX mas terá sido “(…) apenas nos anos 70 do séc. XX que “lockdown” passou a significar um estado prolongado de confinamento para prisioneiros ou para pacientes internados em hospitais psiquiátricos, passando, posteriormente, a referir-se a qualquer período de isolamento forçado por razões de segurança”.[8, 9]

7. cf.: Elke van Hoof, “Lockdown is the world’s biggest psychological experimente – and we will pay the price”, World Economic Forum, 9 de Abril de 2020

8. Steven Poole, “From barges to barricades: the changing meaning of ‘lockdown’”, The Guardian, 2 de Abril de 2020

9. A partir de 1999, a palavra passou a designar também um novo protocolo de segurança americano de resposta a tiroteios em escolas e posteriormente alargado a hospitais, consistindo no fecho de todas as entradas e saídas desses estabelecimentos.

Mais surpreendente e ainda mais recente é a história da sua adaptação ao contexto do combate à propagação de doenças infeciosas.

Tudo começa no Verão de 2005, com George W. Bush a ler um livro.[10]

A conjugação das preocupações com o bioterrorismo no pós-11 de Setembro e de um surto de gripe das aves no Vietname com leituras estivais sobre a gripe espanhola levam o então presidente americano a convocar, no Outono 2005, Richard Hatchett, oncologista e conselheiro de biodefesa, e Carter Mecher, médico intensivista (ambos sem experiência prévia no campo da prevenção de pandemias) no sentido de desenvolverem ideias para o combate a um contágio em larga escala num cenário de escassez de anti-virais e de não existência de vacina.

Em simultâneo, o Department of Homeland Security[11] contacta, com o mesmo propósito, Robert J. Glass, analista de sistemas complexos nos laboratórios nacionais em Sandia[12], Novo México. Glass tinha-se especializado na construção de modelos virtuais avançados que explicavam o funcionamento e analisavam as causas de potenciais falhas catastróficas em sistemas complexos.

10. O livro em causa é The Great Influenza: The Story of the Deadliest Pandemic in History, de John M. Barry.

11. O Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, fundado por George W. Bush em 2002, tem como responsabilidade proteger o território dos E.U.A. em situações de ataque terrorista ou desastre natural.

12. Os Laboratórios Nacionais Sandia são laboratórios de pesquisa e desenvolvimento da Administração Nacional de Segurança Nuclear nos Estados Unidos.

Ao começar a trabalhar nessa proposta, com os mesmos pressupostos iniciais de Hatchett e Mercher, Glass é inspirado pela aparente coincidência entre o pedido das autoridades oficiais de Washington e o trabalho escolar da sua filha de 15 anos. Laura Glass estava a desenvolver um projecto escolar anual cujo objectivo era a criação de uma estratégia para o abrandamento de pandemias gripais a partir de um programa de computador que simulava interacções humanas. Uma das suas primeiras conclusões havia sido que as crianças em idade escolar, ao conviverem diariamente com uma média de 140 pessoas, eram o veículo preferencial de disseminação viral na comunidade, mais que qualquer outro grupo etário.

Glass aproveita o programa da filha e fá-lo correr nos supercomputadores da National Infrastructure Simulation and Analysis Center (NISAC), mais acostumados a cálculos de armas nucleares, e conclui que, numa cidade hipotética, o simples encerramento das escolas levaria à redução dos contágios em 90%. Pai e filha chegam assim às mesmas soluções: promoção do distanciamento social e encerramento de escolas como medidas mitigadoras do contágio em contexto pandémico.

Em Maio de 2006, a adolescente e o seu projecto escolar são capa do Albuquerque Journal com o seu 3ºlugar na Intel International Science and Engineering Fair de Indianapolis e em Novembro do mesmo ano, o seu nome reaparece, como co-autora num estudo assinado pelo seu pai, publicado pela Center of Disease Control and Prevention (CDC).

Mecher e Carter tomam conhecimento do estudo de Glass e elaboram uma proposta exactamente na mesma linha: limitações à interacção social, proibição de eventos de massas, encerramento de escolas e locais de trabalho…

As ideias de Hatchett, Mecher e Glass são recebidas “(…) com cepticismo e com certo grau de ridículo (…)”[13] pelas entidades oficiais, pelos peritos de saúde pública e pelos políticos em Washington, preocupados quer com as suas potenciais consequências sociais e económicas, quer com as dúvidas acerca da legalidade, ética, eficácia e exequibilidade das medidas em si.

13. Eric Lipton & Jennifer Steiner, “The Untold Story of the Birth of Social Distancing”, NY Times, 22 de Abril de 2020.

Pesem embora as fortes críticas e dúvidas, a administração Bush acaba por tomar o partido da estratégia de “lockdown” e do distanciamento social. Em Fevereiro de 2007, a CDC torna a estratégia – burocraticamente baptizada como Intervenções Não-Farmacológicas – política oficial dos Estados Unidos no combate a epidemias de doenças infeciosas.

Em 2020 esta política é colocada em acção pela primeira vez na História. Estima-se que só em Março, 2,6 biliões de pessoas (1/3 da população mundial) tenham estado confinadas ao seu domicílio.

“Pode um simples projecto escolar de uma adolescente de 15 anos, em Albuquerque, ocasionar um lockdown no Mundo?” poderia ser a manchete-resumo de como um “efeito borboleta” deu origem aos “lockdowns”.

No entanto, a história dos bastidores da sua origem revela outros aspectos:

- O carácter de experiência psicológica de controlo e obediência social do “lockdown”, sugerido pela origem da palavra e reforçado pelo seu contexto histórico (o da paranóia securitária da administração Bush) e pelo seu desenvolvimento intimamente ligado à segurança interna (assim não é surpreendente que antes de 2020, os únicos lockdowns registados, Boston em 2013 e Bruxelas em 2015, tenham acontecido em contexto de ataques terroristas);

- A crescente influência sociopolítica dos modelos matemáticos de simulação e da aplicação universal das teorias dos sistemas complexos, originados em contexto da investigação científica militar, de que as ideias, métodos e percurso profissional de Glass são exemplo (esta tendência não é nova, o período que vivemos é uma segunda fase, de aceleração e correcção, da “Era dos Sistemas”).[14]  

14. Glass tem publicações, baseadas em modelos por si criados, sobre temas tão diversos como: reservas estratégicas de petróleo, influência dos media em campanhas eleitorais ou o empenho de militares-mulheres no Afeganistão.



LOCKDOWN, a Era dos Sistemas

 

“Que esfinge de cimento e alumínio despedaçou os seus crânios e devorou os seus cérebros e imaginação?

(…)

Moloch cuja mente é puro mecanismo! Moloch cujo sangue é dinheiro em circulação! Moloch cujos dedos são dez exércitos! Moloch cujo peito é um dínamo canibal! Moloch cuja orelha é um túmulo fumegante!”

Allen Ginsberg, “O Uivo”

 

Nos anos 50 é criado um novo modelo simplificado, quase robótico do ser humano, cuja única motivação era a persecução dos seus próprios interesses egoístas. Este modelo abstracto do indivíduo, baseado na Teoria dos Jogos, rectificava e conferia previsibilidade às estratégias hiper-racionais e padronizadas da resposta nuclear americana, no contexto da Guerra Fria.

A este novo paradigma de Homem associar-se-ia uma nova concepção de liberdade, a liberdade negativa, que se viria a tornar na derradeira e fulcral utopia política do capitalismo global pós-Segunda Guerra Mundial. Teorizada por Isaiah Berlin em 1958, a liberdade negativa assentava na não-interferência do poder do Estado sobre as acções individuais. Em oposição encontrar-se-ia a liberdade positiva, assente na auto-realização pessoal, liberta dos tradicionais constrangimentos impostos pelas estruturas sociais e inserida num espírito colectivo e de participação política directa activa. A primeira, proposta pelas democracias liberais, embora limitada, seria sempre preferível às tendências totalitárias e coercivas da segunda, proposta por regimes revolucionários, da Revolução Francesa à Revolução Bolchevique.

Este radical novo entendimento do indivíduo e da liberdade contamina progressiva e transversalmente os campos da economia, da psicologia, da sociologia, da genética e da política, resultando na crença dogmática dos sistemas auto-reguláveis, dos quais o mercado financeiro global seria o exemplo primordial.

O deslumbramento e optimismo geral gerado pelo triunfo e expansão planetária deste paradigma civilizacional, plasmado nos anos 90 na “ideologia californiana”[15], começaria a ser lentamente erodido por uma sucessão de eventos económicos e geoestratégicos desestabilizadores -  a crise asiática de 1997, o 11 de Setembro de 2001, a guerra do Iraque de 2003, a crise do subprime de 2008, a primavera Árabe e a crise das dívidas soberanas europeias em 2010, a guerra civil da Síria em 2011, a crise migratória na Europa em 2015, o Brexit e a eleição de Trump em 2016 – que combinados com o aumento exponencial dos desastres naturais[16], o crescimento da conflitualidade social potenciada pelas redes sociais e as sucessivas revelações de corrupção ao mais alto nível pareciam indicar que o sistema não só não tendia para um natural equilíbrio como havia entrado numa espiral autodestrutiva.

15. Nome dado a um pensamento político nunca formalizado, assente numa mistura de neoliberalismo económico, individualismo radical e utopias cibernéticas.

16. “Last decade most expensive for natural disasters: report”, Reuters, 22 de Janeiro de 2020.

José Gil, num artigo em Abril de 2020, notava que vivíamos já desde há certo tempo um período de transição, marcado por um desfasamento entre a economia financeira global e aquilo que ele designava por “subjectivações” (hábitos, costumes, relações pessoais, estrutura social e política, …). Este desfasamento teria vindo a agravar-se, fruto do conflito entre as novas subjectivações digitais e as velhas subjectivações industriais ou pré-industriais.

A pandemia funcionaria como “(…) o agente mediador da passagem de uma fase histórica do capitalismo (…) para uma outra (…)” e o “lockdown” como instrumento político catalisador, simultaneamente de disrupção e de estabilização social, no sentido de garantir a implementação das novas “(…) subjectividades apropriadas, com o máximo de consenso colectivo e individual, e o mínimo de conflito”, não já como gradual evolução, mas enquanto brutal ruptura. “Inverter-se-ia a ordem de subordinação: o digital, que estava submetido à hegemonia dos hábitos ligados ao corpo físico (…), tornar-se-ia dominante, condicionando os outros actos sociais, quando não os suprimia”.[17]

17. José Gil, “A pandemia e o capitalismo numérico”, Público, 12 de Abril de 2020.

O PREC sanitário mundial assinala desta forma, não uma revolução eminente, mas uma evolução na continuidade. “(…) Um paradigma de governo cuja eficácia supera de longe todas as outras formas de governo da história política do ocidente até agora conhecidas”[18] podia ser o copy publicitário deste novo sistema operativo político mundial que promete ser mais intuitivo, mais rápido, mais eficiente, mais autónomo e, sobretudo, mais previsível e estável. Esta segunda fase da Era dos Sistemas é um regresso aos projectos originais de controlo e de previsibilidade, originalmente prometidos pelas tecno-utopias dos anos 50, interrompidos e distorcidos desde os anos 60 pela descoberta, aceitação, incorporação e adestramento do caos. Ao questionamento constante e ao desmantelamento sistemático das estruturas (políticas, económicas, sociais, históricas, culturais e naturais) impulsionados pelo irrefreável avanço tecnológico, a segunda fase contrapõe uma cristalização dinâmica planeada, um encontro a meio caminho entre o modelo liberal do capitalismo ocidental e o modelo autoritário do capitalismo de estado chinês. “Depois da política ter sido substituída pela economia, chega agora a vez desta, para poder governar, ser integrada no novo paradigma da biossegurança (…)”[19]. Um segundo Fim da História.[20]

18. Giorgio Agamben, “Biosicurezza e politica”, Quodlibet, 11 de Maio de 2020.

19. idibem.

20. Referêcia ao artigo “O Fim da História”, de Francis Fukuyama, publicado em 1989.

Este novo paradigma, do qual a gestão da pandemia é um ensaio, baseia a sua eficácia na tríplice aliança ciência-política-segurança. A ascenção da ciência e da segurança a um estatuto quase religioso tem como conveniente efeito a (des)promoção da política a mero braço executivo de ambas. Esta tríplice aliança reforça assim o estatuto de cada um dos componentes e expande o campo de acção de todos, transformando fiscalização mútua em legitimação recíproca. Exemplo cimeiro destes mecanismos em acção é o “lockdown”.

No “lockdown” verifica-se como esta tríplice aliança permite, simultaneamente, um controlo máximo –  da génese do conceito e da implementação da política até à verificação dos resultados - e uma dissensão mínima. Neste caso concreto, é perceptível uma articulação estreita entre a infinita repetição de expressões pró-ciência - “ouvir a ciência”, os “estudos mostram”, a “ciência diz” – e de metáforas bélicas – “guerra contra um inimigo invisível”, “linha da frente”. Se as primeiras visam isentar as decisões políticas de implicações éticas e morais ao transferir o juízo político da política para a ciência, as segundas procuram incentivar a solidariedade social e desencorajar a dissidência (tal como num conflito armado) ao suspender o juízo político através da perpetuação do “(…) círculo vicioso: não deliberamos porque estamos numa emergência, e estamos numa emergência porque não conseguimos deliberar”.[21]

As noções de comunidade e de altruísmo do “estamos todos juntos pelo bem-comum” convivem com as noções de individualismo e salvaguarda do interesse próprio do “cada um isolado em sua casa ligado à internet”. O sistema, através das tecnologias digitais, consegue, assim, um equilíbrio e uma convergência entre as duas liberdades, positiva e negativa, aparentemente dicotómicas. Uma Terceira Via cibernética.[22]

21. David Cayley, “Questions about the current pandemic from the point of view of Ivan Illich”, Quodlibet, 8 de Abril de 2020.

22. A 5 de Novembro de 1997, Tony Blair escreve uma carta a Isaiah Berlin perguntando se seria possível a conjugação da liberdade negativa e positiva. Berlin morreu no mesmo dia sem chegar a responder.

Estes processos de incorporação estendem-se também aos indivíduos. “O utilizador de uma ferramenta usa-a para atingir um determinado fim. Os usuários de sistemas estão dentro do sistema, ajustando constantemente o seu estado ao sistema, ao mesmo tempo que o sistema ajusta o seu estado a eles mesmos. Um indivíduo autodeterminado em busca de bem-estar pessoal dá lugar a um sistema imune que constantemente recalibra os seus limites porosos com o sistema circundante”.[23] O sujeito, total e ininterruptamente conectado, é indestrinçável do objecto.

“A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente é o das sociedades de controlo”.[24]

23. David Cayley, op. cit.

24. Gilles Deleuze, “Post-Scriptum sobre las sociedades de control”, Conversaciones 1972-1990, Pré-textos, Valencia, 1999.

 

 

Rui Gilman

Arquitecto, locutor de rádio, crítico e ensaísta, doutorando na FAUP, na área de património arquitectónico.

 

Imagens

1. Manchetes de jornais britânicos sobre o “lockdown” (composite: BBC), 2020.

2. Professor Carlos Antunes na TVI, 20 de Janeiro de 2021.

3. Mensagem da rainha Isabel II em Piccadilly Circus, Londres, Abril de 2020.

4. George Bush lendo um livro infantil a crianças de uma escola na manhã do dia 11 de Setembro de 2001.

5. Virtual reality, Laurie Lipton, 2015.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 30.03.2021

Edição #31 • Primavera 2021 •