É fácil rir dos erros de Donald Trump e
indignar-se com a violência dos seus fanáticos. Mas a irrupção da mais pura
irracionalidade, ocorrida no seio do processo eleitoral do país melhor equipado
para administrar alternâncias do sistema representativo, também nos coloca
questões sobre o mundo que partilhamos com ele: um mundo que acreditávamos ser
o do pensamento racional e da democracia pacífica. A primeira pergunta seria,
sem dúvidas: como é possível alguém estar tão determinado a não reconhecer
factos, mesmo que estes sejam muito bem comprovados, e como é que essa
obstinação pode ser tão amplamente partilhada ou apoiada?
Alguns gostariam ainda de se agarrar a uma
velha tábua de salvação: aqueles que não querem reconhecer os factos são
ignorantes mal informados ou espíritos crédulos enganados pelas fake news.
Trata-se do ideal clássico de um povo bondoso que se deixaria levar pela
inocência, e que deveria ser ensinado a informar-se através de factos e a
julgá-los criticamente. Mas como podemos ainda acreditar nesta fábula da
ingenuidade popular, quando vivemos num mundo onde os meios de informação, os
meios para verificar a informação e os comentários que “decifram” toda a informação
abundam e superabundam à disposição de todos?
Devemos então inverter o argumento: se alguém
rejeita os factos, não é por estupidez, mas para mostrar que é inteligente. E a
inteligência, como se sabe, consiste em desconfiar dos factos e em perguntar-se
qual é a utilidade dessa enorme massa de informação que todos os dias é
despejada sobre nós. Responde-se, muito naturalmente, que esta informação só
poderia servir para nos enganar, pois o que é demasiado evidente só pode estar
aí para encobrir a verdade, de modo que seria preciso descobrir algo que está
oculto sob a falaciosa aparência dos factos consumados.
A força dessa resposta é que ela satisfaz, ao
mesmo tempo, os mais fanáticos e os mais céticos. Uma das características
notáveis da nova extrema direita é o lugar ocupado pelas teorias da
conspiração e pelo negacionismo. Elas apresentam aspectos delirantes, como na
teoria da grande conspiração internacional de pedófilos [1].
Mas esse delírio é, em última instância, apenas a forma extrema de um tipo de
racionalidade geralmente valorizado nas nossas sociedades: aquele que não
apenas nos obriga a ver, em qualquer facto particular, a consequência de uma
ordem global, mas que também nos impõe recolocá-lo no encadeamento geral dos
factos, revelando, no final, algo muito distinto do que se esperava à primeira
vista.
1. Jacques Rancière
refere-se ao Qanon, uma teoria da
conspiração que circula pela extrema-direita, envolvendo uma seita secreta de
pedófilos canibais e adoradores de Satanás. De acordo com os defensores desta
teoria da conspiração, a seita comandaria uma rede mundial de tráfico sexual
infantil e um conluio contra Donald Trump, sendo integrada inclusive por
actores de Hollywood e do Partido Democrata [N.T.].
Sabemos que o princípio de explicar tudo pelo
conjunto das suas relações também pode ser percorrido ao contrário: desse modo,
é sempre possível negar um facto invocando a ausência de um elo na cadeia de
condições que o tornariam possível. É assim, como sabemos, que os intelectuais
marxistas radicais negaram a existência das câmaras de gás nazis, porque seria
impossível deduzir a sua necessidade da lógica geral do sistema capitalista. E
ainda hoje intelectuais engenhosos veem o coronavírus como uma fábula inventada
pelos nossos governos para nos controlar melhor.
As teorias da conspiração e o negacionismo
dependem de uma lógica que não é apenas reservada às mentes ingénuas e aos
cérebros doentios. As suas formas extremas testemunham a parte de
irracionalidade e superstição presentes no cerne da forma dominante de
racionalidade das nossas sociedades e nos modos de pensar que interpretam o seu
funcionamento. O que torna possível negar tudo não é o “relativismo”, posto em
questão por mentes sérias que se imaginam os guardiões da universalidade racional.
Trata-se, antes, de uma perversão inscrita na própria estrutura da nossa razão.
Dir-se-á que não basta estar intelectualmente
munido para negar tudo. Seria ainda necessário querer fazê-lo. Isto é muito
justo. Mas temos que ver em que consiste essa vontade, ou melhor, esse afecto
que leva a acreditar ou a não acreditar.
É pouco provável que os setenta e cinco milhões
de eleitores que votaram em Trump sejam todos cérebros limitados, convencidos
pelos seus discursos e pelas informações falsas que lhes foram veiculadas. Se
eles acreditaram, não é no sentido em que tomaram o que ele disse por verdade,
mas no sentido em que ficam satisfeitos por ouvir o que ouviram: um prazer que
pode, a cada quatro ou cinco anos, ser expresso por meio de um boletim de voto,
mas que se expressa de forma muito mais simples a cada dia através de um
simples like. E aqueles que disseminam fake news não são ingénuos
ao ponto de imaginarem que elas são verdadeiras, e tampouco cínicos que sabem
que são falsas. São simplesmente pessoas que querem que seja assim, desejosos
de ver, pensar, sentir e viver na comunidade sensível que essas palavras tecem.
Como pensar sobre essa comunidade e sobre esse
desejo? Aqui espreita uma outra noção muito cómoda, a do populismo. Ela já não
invoca uma população bondosa e ingénua, mas, inversamente, um povo frustrado e
invejoso, pronto a seguir quem saiba encarnar e apontar a causa do seu
ressentimento.
Trump, ouve-se com frequência, é o
representante de todos os pequenos brancos angustiados e raivosos: aqueles que
ficaram para trás face à transformação económica e social, que perderam, não
apenas os seus empregos com a desindustrialização, como também os seus
marcadores de identidade com as novas formas da vida e da cultura, aqueles que
se sentem abandonados pelas elites políticas distantes e desprezados pelas
elites intelectuais. Não há nenhuma novidade nessa história: o desemprego
também foi usado, nos anos 1930, como uma explicação para o nazismo e
reutilizado indefinidamente para explicar qualquer impulso da extrema direita
nos nossos países. Mas como poderíamos acreditar seriamente que os setenta e
cinco milhões de eleitores de Trump atendem a esse perfil de vítimas da crise, do
desemprego e da desclassificação? Devemos então abandonar a segunda boia do
conforto intelectual, a segunda figura do povo tradicionalmente relegado ao
papel de actor irracional: esse povo frustrado e brutal que é a contrapartida
do povo bom e ingénuo.
Devemos, mais profundamente, questionar essa
forma de racionalidade pseudo-erudita que faz das formas de expressão política
do sujeito-povo traços pertencentes a esta ou àquela camada social em ascensão
ou declínio. O povo político não é a expressão de um povo sociológico que o
precede. É uma criação específica: o produto de um certo número de
instituições, de procedimentos, de formas de acção, mas também de palavras,
frases, imagens e representações que não expressam os sentimentos do povo,
mas criam um determinado povo, ao criar para este um regime de afectos
específico.
O povo de Trump não é a expressão de camadas
sociais em dificuldade e em busca de um protector. É antes de tudo o povo
produzido por uma instituição específica onde muitos insistem em ver a
expressão suprema da democracia: aquela que estabelece uma relação imediata e
recíproca entre um indivíduo, que se supõe encarnar o poder de todos, e um
coletivo de indivíduos, que se reconheceria nele. É também o povo construído
por uma forma particular de interpelação,
esta interpelação personalizada,
possibilitada pelas novas tecnologias de comunicação, em que o líder fala todos
os dias a todos, tanto como homem público como homem privado, usando as mesmas
formas de comunicação que permitem a cada um e a todos dizerem quotidianamente
o que pensam ou o que sentem.
Trata-se, finalmente, do povo construído pelo
sistema específico de afectos que Donald Trump mobilizou por meio desse sistema
de comunicação: um sistema de afectos que não se destina a nenhuma classe em
particular e que não joga com a frustração, mas, pelo contrário, com a
satisfação de uma condição, não com um sentimento de desigualdade a ser
reparado, mas com um privilégio a ser mantido contra todos aqueles que desejam
violá-lo.
Não há nada de misterioso na paixão que Trump
invoca, trata-se da paixão pela desigualdade, aquela que permite igualmente a
ricos e pobres encontrarem uma multidão de inferiores sobre os quais devem, a
todo custo, manter a superioridade. Na verdade, há sempre uma superioridade da
qual podemos participar: superioridade dos homens sobre as mulheres, das
mulheres brancas sobre as mulheres negras, dos trabalhadores sobre os
desempregados, dos que trabalham nas profissões do futuro sobre todos os
outros, dos que podem desfrutar de uma assistência privada sobre aqueles que
dependem da solidariedade pública, dos locais sobre os migrantes, dos nativos
sobre os estrangeiros e dos cidadãos da nação-mãe da democracia sobre o resto
da humanidade.
A presença simultânea, no Capitólio ocupado
pelos capangas trumpistas, da bandeira dos treze estados fundadores e da
bandeira do Sul esclavagista [2], ilustra muito bem esta montagem singular que faz da igualdade
uma prova suprema da desigualdade e da pursuit of happiness um afecto
odioso. Assim como a um determinado estrato social, esta identificação entre o
poder de todos e a colecção incontável de superioridades e ódios não pode ser
associada ao ethos de uma nação específica. Sabemos do papel
desempenhado aqui pela oposição entre a França trabalhadora e a França
socialmente assistida, entre aqueles que avançam e aqueles que permanecem
presos a sistemas arcaicos de proteção social, ou entre os cidadãos do país das
Luzes e dos direitos humanos, e as populações atrasadas e fanáticas que
ameaçariam a sua integridade. E podemos ver todos os dias, na Internet, o ódio
a todas as formas de igualdade ser exaustivamente reiterado nos comentários dos
leitores de jornais.
2. Jacques Rancière refere-se
à bandeira do exército confederado dos Estados Confederados da América que
durante a Guerra Civil Americana (1861 — 1865) lutou contra a abolição da
escravatura nos EUA. Hoje a bandeira é apropriada pelo movimento alt-right
supremacista americano (N.T).
Assim como a teimosia em negar não é marca de
mentalidades atrasadas, mas uma variante da racionalidade dominante, a cultura
do ódio não é obra de camadas sociais carentes, mas produto do funcionamento
das nossas instituições. Ela é uma forma de fazer-povo, uma forma de criar um
povo que pertence à lógica da desigualdade. Passaram-se quase duzentos anos
desde que o pensador da emancipação intelectual, Joseph Jacotot [3],
mostrou a maneira pela qual a desrazão desigual fazia funcionar uma sociedade
onde cada inferior era capaz de encontrar um inferior e desfrutar da sua
superioridade sobre ele. Da minha parte, há apenas um quarto de século, sugeri
que a identificação da democracia com o consenso produzia, no lugar do povo
pretensamente arcaico da divisão social, um povo muito mais arcaico fundado
sobre os efeitos do ódio e da exclusão [4].
Mais do que ao conforto, à indignação ou ao
escárnio, os eventos que marcaram o fim da presidência de Donald Trump deviam
incentivar-nos a um exame um pouco mais aprofundado das formas de
pensamento a que chamamos racionais e as formas de comunidade a que chamamos
democráticas.
3. No seu livro O mestre ignorante –cinco lições sobre a
emancipação intelectual (Belo Horizonte: Autêntica, 2018), Jacques Rancière
encontra, nas práticas do Ensino Universal propostas pelo pedagogo oitocentista
Joseph Jacotot, algumas das suas próprias preocupações políticas e filosóficas.
Com o intuito de provar o princípio da igualdade das inteligências, o autor
tece uma espécie de teoria da educação, onde desvincula a inteligência,
compreendida como a capacidade de conhecer, e o saber, o conteúdo dessa
capacidade [N.T.].
4. Cf. Jacques
Rancière, O ódio à democracia,
Boitempo, São Paulo, 2014 [N.T.].
•
Jacques Rancière
Nasceu em 1940
na Argélia. Em 1965, escreveu com Louis Althusser e Étienne Balibar, o livro
“Lire le Capital”. Foi Professor emérito da Universidade de paris VIII, onde
leccionou estética e política. Entre as suas obras destaca-se A Noite dos Proletários (1981 -
publicado pela Antígona, 2012), O Mestre
Ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual (1987 – publicado
em português pela Pedago, 2010), Nas Margens
do Político (1990 – publicado pela Imago, 2014), Estética e Política. A Partilha do Sensível (2000 – publicado pela
editora Dafne, 2010), O espectador
emancipado (2008 – publicado pela Orfeu Negro, 2010).
Imagens
1. Apoiantes de Trump em protesto após infundadas suspeitas
de fraude, ©Spencer Platt.
Nota de edição
O artigo de Jacques Rancière, Les fous et les sages – réflexions sur la fin de la
présidence Trump foi publicado
no site AOC a 14 de Janeiro de 2021. A versão brasileira, traduzida por Pedro
Caetano Eboli foi publicada na Revista Beira, editada por Duda Kuhnert e Bárbara Bergamaschi, com
revisão Antoine D’Artemare e Bárbara Bergamaschi. A versão publicada no Jornal
Punkto foi gentilmente cedida pelo tradutor com conhecimento do AOC, com
revisão e adaptação de João Paupério e Paulo Ávila para o Jornal Punkto.
Ficha Técnica
Data de publicação: 22.01.2021
Edição #30 • Inverno 2020 •