Loucos e sábios • Jacques Rancière




É fácil rir dos erros de Donald Trump e indignar-se com a violência dos seus fanáticos. Mas a irrupção da mais pura irracionalidade, ocorrida no seio do processo eleitoral do país melhor equipado para administrar alternâncias do sistema representativo, também nos coloca questões sobre o mundo que partilhamos com ele: um mundo que acreditávamos ser o do pensamento racional e da democracia pacífica. A primeira pergunta seria, sem dúvidas: como é possível alguém estar tão determinado a não reconhecer factos, mesmo que estes sejam muito bem comprovados, e como é que essa obstinação pode ser tão amplamente partilhada ou apoiada?

Alguns gostariam ainda de se agarrar a uma velha tábua de salvação: aqueles que não querem reconhecer os factos são ignorantes mal informados ou espíritos crédulos enganados pelas fake news. Trata-se do ideal clássico de um povo bondoso que se deixaria levar pela inocência, e que deveria ser ensinado a informar-se através de factos e a julgá-los criticamente. Mas como podemos ainda acreditar nesta fábula da ingenuidade popular, quando vivemos num mundo onde os meios de informação, os meios para verificar a informação e os comentários que “decifram” toda a informação abundam e superabundam à disposição de todos?

Devemos então inverter o argumento: se alguém rejeita os factos, não é por estupidez, mas para mostrar que é inteligente. E a inteligência, como se sabe, consiste em desconfiar dos factos e em perguntar-se qual é a utilidade dessa enorme massa de informação que todos os dias é despejada sobre nós. Responde-se, muito naturalmente, que esta informação só poderia servir para nos enganar, pois o que é demasiado evidente só pode estar aí para encobrir a verdade, de modo que seria preciso descobrir algo que está oculto sob a falaciosa aparência dos factos consumados.

A força dessa resposta é que ela satisfaz, ao mesmo tempo, os mais fanáticos e os mais céticos. Uma das características notáveis ​​da nova extrema direita é o lugar ocupado pelas teorias da conspiração e pelo negacionismo. Elas apresentam aspectos delirantes, como na teoria da grande conspiração internacional de pedófilos [1]. Mas esse delírio é, em última instância, apenas a forma extrema de um tipo de racionalidade geralmente valorizado nas nossas sociedades: aquele que não apenas nos obriga a ver, em qualquer facto particular, a consequência de uma ordem global, mas que também nos impõe recolocá-lo no encadeamento geral dos factos, revelando, no final, algo muito distinto do que se esperava à primeira vista.

1. Jacques Rancière refere-se ao Qanon, uma teoria da conspiração que circula pela extrema-direita, envolvendo uma seita secreta de pedófilos canibais e adoradores de Satanás. De acordo com os defensores desta teoria da conspiração, a seita comandaria uma rede mundial de tráfico sexual infantil e um conluio contra Donald Trump, sendo integrada inclusive por actores de Hollywood e do Partido Democrata [N.T.].

Sabemos que o princípio de explicar tudo pelo conjunto das suas relações também pode ser percorrido ao contrário: desse modo, é sempre possível negar um facto invocando a ausência de um elo na cadeia de condições que o tornariam possível. É assim, como sabemos, que os intelectuais marxistas radicais negaram a existência das câmaras de gás nazis, porque seria impossível deduzir a sua necessidade da lógica geral do sistema capitalista. E ainda hoje intelectuais engenhosos veem o coronavírus como uma fábula inventada pelos nossos governos para nos controlar melhor.

As teorias da conspiração e o negacionismo dependem de uma lógica que não é apenas reservada às mentes ingénuas e aos cérebros doentios. As suas formas extremas testemunham a parte de irracionalidade e superstição presentes no cerne da forma dominante de racionalidade das nossas sociedades e nos modos de pensar que interpretam o seu funcionamento. O que torna possível negar tudo não é o “relativismo”, posto em questão por mentes sérias que se imaginam os guardiões da universalidade racional. Trata-se, antes, de uma perversão inscrita na própria estrutura da nossa razão.

Dir-se-á que não basta estar intelectualmente munido para negar tudo. Seria ainda necessário querer fazê-lo. Isto é muito justo. Mas temos que ver em que consiste essa vontade, ou melhor, esse afecto que leva a acreditar ou a não acreditar.

É pouco provável que os setenta e cinco milhões de eleitores que votaram em Trump sejam todos cérebros limitados, convencidos pelos seus discursos e pelas informações falsas que lhes foram veiculadas. Se eles acreditaram, não é no sentido em que tomaram o que ele disse por verdade, mas no sentido em que ficam satisfeitos por ouvir o que ouviram: um prazer que pode, a cada quatro ou cinco anos, ser expresso por meio de um boletim de voto, mas que se expressa de forma muito mais simples a cada dia através de um simples like. E aqueles que disseminam fake news não são ingénuos ao ponto de imaginarem que elas são verdadeiras, e tampouco cínicos que sabem que são falsas. São simplesmente pessoas que querem que seja assim, desejosos de ver, pensar, sentir e viver na comunidade sensível que essas palavras tecem.

Como pensar sobre essa comunidade e sobre esse desejo? Aqui espreita uma outra noção muito cómoda, a do populismo. Ela já não invoca uma população bondosa e ingénua, mas, inversamente, um povo frustrado e invejoso, pronto a seguir quem saiba encarnar e apontar a causa do seu ressentimento.

Trump, ouve-se com frequência, é o representante de todos os pequenos brancos angustiados e raivosos: aqueles que ficaram para trás face à transformação económica e social, que perderam, não apenas os seus empregos com a desindustrialização, como também os seus marcadores de identidade com as novas formas da vida e da cultura, aqueles que se sentem abandonados pelas elites políticas distantes e desprezados pelas elites intelectuais. Não há nenhuma novidade nessa história: o desemprego também foi usado, nos anos 1930, como uma explicação para o nazismo e reutilizado indefinidamente para explicar qualquer impulso da extrema direita nos nossos países. Mas como poderíamos acreditar seriamente que os setenta e cinco milhões de eleitores de Trump atendem a esse perfil de vítimas da crise, do desemprego e da desclassificação? Devemos então abandonar a segunda boia do conforto intelectual, a segunda figura do povo tradicionalmente relegado ao papel de actor irracional: esse povo frustrado e brutal que é a contrapartida do povo bom e ingénuo.

Devemos, mais profundamente, questionar essa forma de racionalidade pseudo-erudita que faz das formas de expressão política do sujeito-povo traços pertencentes a esta ou àquela camada social em ascensão ou declínio. O povo político não é a expressão de um povo sociológico que o precede.  É uma criação específica: o produto de um certo número de instituições, de procedimentos, de formas de acção, mas também de palavras, frases, imagens e representações que não expressam os sentimentos do povo, mas criam um determinado povo, ao criar para este um regime de afectos específico.

O povo de Trump não é a expressão de camadas sociais em dificuldade e em busca de um protector. É antes de tudo o povo produzido por uma instituição específica onde muitos insistem em ver a expressão suprema da democracia: aquela que estabelece uma relação imediata e recíproca entre um indivíduo, que se supõe encarnar o poder de todos, e um coletivo de indivíduos, que se reconheceria nele. É também o povo construído por uma forma particular de interpelação, esta interpelação personalizada, possibilitada pelas novas tecnologias de comunicação, em que o líder fala todos os dias a todos, tanto como homem público como homem privado, usando as mesmas formas de comunicação que permitem a cada um e a todos dizerem quotidianamente o que pensam ou o que sentem.

Trata-se, finalmente, do povo construído pelo sistema específico de afectos que Donald Trump mobilizou por meio desse sistema de comunicação: um sistema de afectos que não se destina a nenhuma classe em particular e que não joga com a frustração, mas, pelo contrário, com a satisfação de uma condição, não com um sentimento de desigualdade a ser reparado, mas com um privilégio a ser mantido contra todos aqueles que desejam violá-lo.

Não há nada de misterioso na paixão que Trump invoca, trata-se da paixão pela desigualdade, aquela que permite igualmente a ricos e pobres encontrarem uma multidão de inferiores sobre os quais devem, a todo custo, manter a superioridade. Na verdade, há sempre uma superioridade da qual podemos participar: superioridade dos homens sobre as mulheres, das mulheres brancas sobre as mulheres negras, dos trabalhadores sobre os desempregados, dos que trabalham nas profissões do futuro sobre todos os outros, dos que podem desfrutar de uma assistência privada sobre aqueles que dependem da solidariedade pública, dos locais sobre os migrantes, dos nativos sobre os estrangeiros e dos cidadãos da nação-mãe da democracia sobre o resto da humanidade.

A presença simultânea, no Capitólio ocupado pelos capangas trumpistas, da bandeira dos treze estados fundadores e da bandeira do Sul esclavagista [2], ilustra muito bem esta montagem singular que faz da igualdade uma prova suprema da desigualdade e da pursuit of happiness um afecto odioso. Assim como a um determinado estrato social, esta identificação entre o poder de todos e a colecção incontável de superioridades e ódios não pode ser associada ao ethos de uma nação específica. Sabemos do papel desempenhado aqui pela oposição entre a França trabalhadora e a França socialmente assistida, entre aqueles que avançam e aqueles que permanecem presos a sistemas arcaicos de proteção social, ou entre os cidadãos do país das Luzes e dos direitos humanos, e as populações atrasadas e fanáticas que ameaçariam a sua integridade. E podemos ver todos os dias, na Internet, o ódio a todas as formas de igualdade ser exaustivamente reiterado nos comentários dos leitores de jornais.

2. Jacques Rancière refere-se à bandeira do exército confederado dos Estados Confederados da América que durante a Guerra Civil Americana (1861 — 1865) lutou contra a abolição da escravatura nos EUA. Hoje a bandeira é apropriada pelo movimento alt-right supremacista americano (N.T).

Assim como a teimosia em negar não é marca de mentalidades atrasadas, mas uma variante da racionalidade dominante, a cultura do ódio não é obra de camadas sociais carentes, mas produto do funcionamento das nossas instituições. Ela é uma forma de fazer-povo, uma forma de criar um povo que pertence à lógica da desigualdade. Passaram-se quase duzentos anos desde que o pensador da emancipação intelectual, Joseph Jacotot [3], mostrou a maneira pela qual a desrazão desigual fazia funcionar uma sociedade onde cada inferior era capaz de encontrar um inferior e desfrutar da sua superioridade sobre ele. Da minha parte, há apenas um quarto de século, sugeri que a identificação da democracia com o consenso produzia, no lugar do povo pretensamente arcaico da divisão social, um povo muito mais arcaico fundado sobre os efeitos do ódio e da exclusão [4].

Mais do que ao conforto, à indignação ou ao escárnio, os eventos que marcaram o fim da presidência de Donald Trump deviam incentivar-nos a um exame um pouco mais aprofundado das formas de pensamento a que chamamos racionais e as formas de comunidade a que chamamos democráticas.

3. No seu livro O mestre ignorante –cinco lições sobre a emancipação intelectual (Belo Horizonte: Autêntica, 2018), Jacques Rancière encontra, nas práticas do Ensino Universal propostas pelo pedagogo oitocentista Joseph Jacotot, algumas das suas próprias preocupações políticas e filosóficas. Com o intuito de provar o princípio da igualdade das inteligências, o autor tece uma espécie de teoria da educação, onde desvincula a inteligência, compreendida como a capacidade de conhecer, e o saber, o conteúdo dessa capacidade [N.T.].

4. Cf. Jacques Rancière, O ódio à democracia, Boitempo, São Paulo, 2014 [N.T.].

 

 

Jacques Rancière

Nasceu em 1940 na Argélia. Em 1965, escreveu com Louis Althusser e Étienne Balibar, o livro “Lire le Capital”. Foi Professor emérito da Universidade de paris VIII, onde leccionou estética e política. Entre as suas obras destaca-se A Noite dos Proletários (1981 - publicado pela Antígona, 2012), O Mestre Ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual (1987 – publicado em português pela Pedago, 2010), Nas Margens do Político (1990 – publicado pela Imago, 2014), Estética e Política. A Partilha do Sensível (2000 – publicado pela editora Dafne, 2010), O espectador emancipado (2008 – publicado pela Orfeu Negro, 2010).

 

Imagens

1. Apoiantes de Trump em protesto após infundadas suspeitas de fraude, ©Spencer Platt.

 

Nota de edição

O artigo de Jacques Rancière, Les fous et les sages – réflexions sur la fin de la présidence Trump foi publicado no site AOC a 14 de Janeiro de 2021. A versão brasileira, traduzida por Pedro Caetano Eboli foi publicada na Revista Beira, editada por Duda Kuhnert e Bárbara Bergamaschi, com revisão Antoine D’Artemare e Bárbara Bergamaschi. A versão publicada no Jornal Punkto foi gentilmente cedida pelo tradutor com conhecimento do AOC, com revisão e adaptação de João Paupério e Paulo Ávila para o Jornal Punkto.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 22.01.2021

Edição #30 • Inverno 2020 •