O factor F: fascismo e fascinação • António Guerreiro



 

Também por cá estamos agora a assistir à ascensão organizada de um novo radicalismo de direita. E olhamos o fenómeno como quem observa de fora a vida de um organismo criado num laboratório.

Na sua coluna de segunda-feira, no Expresso, Daniel Oliveira apontava o fascínio da comunicação social pelo congresso do Chega, em Évora – um fascínio que não equivale a um apoio, dizia Daniel Oliveira, mas tem quase o mesmo efeito. Devemos então colocar a questão: de onde nasce esse fascínio? Nasce daquilo a que Adorno, na sua análise da “personalidade autoritária” como fundamento do fascismo, chamou o “factor F”. Trata-se do triunfo de uma irracionalidade que gera a necessidade paranóica, tanto mais forte quanto mais vazia de conteúdos reais, de crer, odiar e combater um inimigo absoluto. E no combate a esse inimigo essencialmente abstracto, espectral, mas que depois ganha corpo em pessoas, entidades e realidades empíricas, o primeiro dever que o combatente assume perante o seu chefe é o de não ter dúvidas. Por isso, nenhuma racionalidade e sentido da realidade conseguem ser armas eficazes. Contra este radicalismo, não há refutação crítica eficiente. O fascínio por este fenómeno é muito semelhante ao que sentimos pela estupidez.

Usei com cálculo a expressão “novo radicalismo de direita” para evocar um texto de Adorno com esse título, que permaneceu inédito até 2019. Editado na Suhrkamp com um longo posfácio de Volker Weiss, um historiador alemão que se tem dedicado à história e à actualidade da extrema-direita, ao fim de menos de um ano esse opúsculo já tinha vendido na Alemanha 70 mil exemplares, o que se explica pela pertinência actual do tema, aspecto para o qual Volker Weiss chama a atenção. Trata-se da transcrição de uma conferência que Adorno fez em 1967, na Universidade de Viena, a convite de uma associação de estudantes socialistas austríacos. O contexto político na República Federal da Alemanha de 1967 explica o conteúdo desta conferência: um partido neo-nazi, o NPD (Partido Nacional-Democrático), formado em 1964, tinha obtido óptimos resultados em eleições regionais e esteve quase a entrar no Bundestag, o parlamento da RFA.

Este texto de Adorno, embora tenha como objecto imediato uma situação política particular da RFA naquele momento histórico, inscreve-se nas suas investigações anteriores sobre a “personalidade autoritária” e prossegue de algum modo o seu ensaio sobre A Teoria Freudiana e a Estrutura da Propaganda Fascista. As críticas a esta análise do fascismo, que também pode ser aplicada a esta conferência sobre a extrema-direita na Alemanha dos anos 60, incidiram sobretudo na psicologização que des-historiciza. Na análise de Adorno, o novo radicalismo de direita manifesta o “eterno retorno” de uma mitologia reaccionária que se revela uma máquina de propaganda de implacável eficiência. Dessa mitologia, faz parte o anti-semitismo (na versão actual, anti-migrantes, xenofobia e racismo), o anti-intelectualismo, o medo da desclassificação e perda do estatuto social, a caça a um bode expiatório. Muito inquietante, dizia Adorno (e a nossa experiência actual dá-lhe toda a razão), é o facto de os seguidores deste novo radicalismo de direita, que coincidem quase sempre com os defensores do velho e do novo fascismo, estarem distribuídos de modo transversal entre todas as camadas da população. Mas o ponto fundamental da conferência de Adorno é a explicação que ele dá para a ascensão deste radicalismo de direita: as premissas sociais do fascismo têm a sua origem nos falhanços da democracia, uma democracia que não está à altura do seu conceito e em nenhum lado se concretizou de modo efectivo do ponto de vista económico e social. O ressentimento, fomentando o sentimento anti-democrático e anti-político, é um falhanço da democracia na realização das suas promessas.

Mas, evidentemente, a análise de Adorno não é compreensível sem a referencia à sociedade de massa e aos mecanismos da propaganda que criam e fomentam a emoção induzida, uma ostentação “pática” (patisch, isto é, cheia de pathos) sem substância. A substância é substituída precisamente pela propaganda que se torna “a coisa mesma”, a própria substância da política.

 


António Guerreiro

É ensaísta e crítico do Público/Ípsilon e editor da Revista Electra. Publicou um volume de ensaios, O Acento Agudo do Presente (Cotovia, 2000) e, mais recentemente, O demónio das imagens. Sobre Aby Warburg (Língua Morta, 2018). Tem colaboração dispersa em revistas e volumes colectivos e editou, com Olga Pombo e António Franco Alexandre, Enciclopédia e Hipertexto (Editora Duarte Reis, 2006). Fundou com José Gil, Silvina Rodrigues Lopes a revista Elipse. Walter Benjamin e Aby Warburg (sobre os quais tem vários artigos publicados) são os dois pontos fortes do seu trabalho nos últimos anos.

 

Imagem

Leni Riefenstahl, O Triunfo da Vontade [Triumph des Willens], 1935.


Nota de edição

O texto original foi publicado no jornal Público, suplemento Ípsilon, na edição de 25 de Setembro de 2020.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 29.09.2020

Edição #29 • Outono 2020 •