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Editorial • edição#28 • Verão 2020 • Les Statues
meurent aussi •
O filme de Chris
Marker, Alain Resnais e Ghislain Cloquet, “As estátuas também morrem” (1953),
serve aqui para assinalar o horizonte temático desta edição de Verão do Jornal
Punkto. Se a anterior edição foi devotada inteiramente a compreender os efeitos
e consequências sociais e políticas da expansão vertiginosa da pandemia, esta
edição debruça-se sobre os conflitos raciais que emergiram nos EUA na sequência
do homicídio de George Floyd, mas cuja rápida disseminação pelo mundo veio mais
uma vez provar a estrutura político-económica intrinsecamente racista do
capital global.
Se, por um lado, os
comentadores europeus activamente se esforçaram por denunciar o racismo
estrutural da sociedade americana, numa excitação exaltada anti-Trump,
convenientemente fizeram esquecer que na Europa não são apenas os telhados que
são de vidro, mas são as próprias fundações do “projecto europeu” que mergulham
bem alto no céu do mais comovente idealismo. E não é preciso revirar o grande
arquivo da história à procura de vítimas, basta ver esse grande cemitério
marítimo em que se transformou o mar mediterrâneo, à custa de uma política
de refugiados absolutamente criminosa.
A presunção europeia
de inocência e o seu complexo de superioridade são em si mesmo, formas veladas
de um racismo que sustenta culturalmente o projecto global de uma dominação da
vida pelo capital. Um projecto que precisou de construir um discurso
biopolítico sobre as raças para validar e justificar a sua intrínseca
desigualdade e os seus processos de segregação e expropriação, assim como fez
da xenofobia a arma política por excelência capaz de transformar milagrosamente
todo o conflito social em conflito racial. É por isso que racismo
e Estado-nação são as faces da mesma moeda do capitalismo histórico: quer seja
uma comunidade fundada na identidade de atributos biológicos ou genéticos (um ius
sanguinis) ou na identidade de um lugar geográfico (um ius soli), em
qualquer um dos casos a efabulação mítica e mística de um povo (Os
Portugueses! Os Americanos!) serve apenas como máquina de guerra da
mobilização social: fazer emergir a unidade social para dissimular a violência sistemática
da exploração económica, para dissimular a fundação desigual do capital.
“Make America
Great Again” – o slogan político de Trump – longe de ser uma anomalia é a
fórmula que leva até às últimas consequências o laço constitutivo entre
política e racismo que funda o capitalismo histórico: a sua fórmula absurda e
paradoxal é, afinal de contas, a fórmula na qual revolve todo o discurso
político transformado na Auto-Europa da mobilização pibesca da auto-estima
nacional. Entre um Obama que nunca se cansou de enaltecer as características
únicas dos “americanos” – até os professores americanos eram os melhores do
mundo – e Trump há apenas uma diferença de grau. Trump é a continuação de Obama
por outros meios; tal como o fascismo é o culminar das aporias de uma
democracia liberal que concede o princípio de igualdade perante a lei à custa
de expropriar o princípio de igualdade social e económica.
O anti-racismo não é
um problema abstracto de uma humanidade em busca da sua redenção; e muito menos
pode o anti-racismo ser meramente uma questão de solidariedade ou de “má
consciência”. Só uma crítica do racismo enquanto pilar fundamental do
capitalismo histórico e só uma critica do papel histórico do racismo no quadro
das estruturas político-económicas do capitalismo, pode ser capaz de
compreender as suas causas, os seus efeitos e, sobretudo, os usos políticos a
que se presta. Não se trata, portanto, de exigir “igualdade de oportunidades” –
o mantra neoliberal – no acesso de todos – brancos, negros, latinos, mulheres,
gays – ao mercado global do capital, trata-se sim de exigir o fim do mercado
enquanto tal, como a única fórmula para uma igualdade possível.
Para terminar,
referir ainda que as estátuas não morrem por exercício gratuito da
violência – como tantos vieram a terreiro prontamente acusar – mas porque elas
são em si mesmo a configuração, a petrificação, de todo um exercício da
violência. Não há maior logro intelectual do que aquele que assume que o
monumento nos oferece qualquer coisa como a história tal qual foi ou
ainda, na versão popular kitsch, enquanto janela para a história.
Tudo o que foi
elevado à condição de monumento está destinado a perder a sua condição
propriamente histórica: não é mais do que um souvenir que integra o
longo cortejo dos despojos e ruínas dos vencedores. Dito isto, não é a
demolição do monumento que nos condena ao esquecimento do passado, bem pelo
contrário, é precisamente a sua demolição que devolve o objecto à (sua) história
e que nos devolve o passado: isto é, a violência do passado, a violência do
presente.
A silenciosa
violência das estátuas (parafraseando o título do texto de Paulo Ávila) não
é senão a silenciosa violência da história.
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Nota da edição
Este texto corresponde ao editorial da edição #28
do Jornal Punko, Verão 2020.
Imagem
André
Romão, Decapitação da escultura de August Comte (2008-2012). Uma imagem que fez
parte integrante do número 3 da Revista Punkto, “Nostalgia”, 2013.
Ficha Técnica
Data de publicação: 21.09.2020