Sobre a integridade orgânica da obra de arquitectura em momento de emergência • Bruno Baldaia





A arquitectura feita em Portugal depende do contexto e das circunstâncias. Aqui está uma frase tão evidente que parece pateta escrevê-la. Mas como as coisas são feitas de contextos uma evidência tão pedestre passa a merecer a nossa atenção, a determo-nos nela. Em primeiro lugar, aquele que traz o esforço de a tornar relevante no momento de emergência em que vivemos. Em segundo, rever a história da arquitectura em Portugal a partir desta frase leva-nos a pensar sobre ela no momento por que passamos. E onde vamos estar durante um tempo que ainda não conseguimos compreender.
Os últimos tempos têm trazido um conjunto de preocupações sobre a prática de arquitectura em Portugal. Há pelo menos dois inquéritos que circulam, um que resulta de uma cooperação entre a Faculdade da Arquitectura da Universidade do Porto e a Escuela de Arquitectura Cesuga-USJ da Corunha que aborda as condições de vida em confinamento e as expectativas para o momento que se segue. Um outro, promovido pelo Movimento dos Trabalhadores em Arquitectura, procura aferir das condições de trabalho por que passam os profissionais que nela trabalham preocupando-se em particular com os assalariados e com a avaliação da alteração das suas condições de trabalho. Estes inquéritos poderão permitir expor dois aspectos: o modo como a arquitectura terá de lidar com um novo contexto e uma nova circunstância, do lado do projecto, dos programas e da sua concepção; o outro mostra-nos que a condição de exercício de arquitectura é ainda uma actividade maioritariamente não empresarial e muito instável, afastada por isso das exigências de disciplina laboral que uma prática estabelecida deve trazer consigo, ou seja, vamos perceber que a arquitectura se faz de um modo precário e que, por isso, arrasta consigo um exército já não negligenciável de precários.
São iniciativas importantes que substituem o vazio que as organizações que têm responsabilidades no sector deveriam priorizar. Vivemos um momento difícil e imprevisível. É necessário percebê-lo e ter a capacidade de antecipar o que se segue. Este futuro já previsível tem antecedentes recentes e se pensarmos que as regras sanitárias por que passamos vão ter uma vigência que não será anterior ao aparecimento de uma vacina para a COVID-19 e ao seu acesso generalizado, ou seja um prazo não inferior a dois anos, facilmente se percebe que este tempo poderá funcionar como uma antecâmara do futuro.
O sector da construção tem passado por mudanças importantes. A globalização trouxe com ela a fusão ou aquisição de empresas de produção de materiais ou de soluções construtivas reunindo-as num número cada vez mais pequeno de grandes corporações. Os processos de certificação conduziram ao uso de soluções integradas, que reduzem a interferência quer dos processos de desenho quer da execução quando procuram a adaptação a uma circunstância específica. Ou seja o mercado da construção vai restringir-se, vai-se organizar num conjunto estreito de opções que são aquelas que garantem as condições a que só um modelo industrial de escala poderá dar resposta. O que implica uma profunda alteração de processos da indústria da construção em Portugal.
 Já estamos a viver um pouco disso. A crise de 2008 afectou profundamente a indústria da construção que se adaptou como pôde. A tradição construtiva portuguesa viveu sempre da capacidade de ofício que se exercia em empresas de pequena dimensão que continuou a manifestar-se pela passagem de conhecimento oficinal. Esse conhecimento está em dificuldade, a emigração massiva de profissionais pós-crise abasteceu a Europa com uma geração de profissionais qualificados onde foram bem acolhidos e bem remunerados o que dificulta o seu regresso mesmo que, desta vez, a crise atinja toda Europa, não apenas uma sua parte. Mas a verdade é que o sector oficinal da construção está representado hoje por profissionais envelhecidos que provavelmente já não terão a quem passar o seu conhecimento o que afecta a possibilidade de uma especificidade da construção portuguesa. A que restar será um luxo ao acesso de poucos. Aos outros a construção sistematizada e indiferenciada, uma espécie de mundo IKEA. Como a arquitectura participa de uma indústria tanto como a uma cultura vale a pena determo-nos por aqui um pouco.
A arquitectura em Portugal foi sempre, ao longo da sua história, lenta na sua absorção das mudanças que pelo mundo se foram fazendo. Existem excepções, como sabemos, mas o corpo da arquitectura que por aqui se foi fazendo foi sempre mais pela adaptação à nossa realidade dos modelos importados do que da assumpção plena do que os centros, em cada momento, definiram como cosmopolitismo. O caso português é curioso porque foi construindo um saber oficinal, nos vários aspectos da construção, capaz de compatibilizar inovação com tradição e, com isso, criar uma continuidade de hibridismo que se foi mantendo. Esta é uma parte muito importante e comum às várias versões da procura de uma identidade para a arquitectura portuguesa. Se voltarmos ao momento em que a arquitectura portuguesa encontra o seu reconhecimento internacional com as obras de Álvaro Siza vemos uma obra que não é possível de conceber sem os pedreiros, os carpinteiros, os serralheiros e todos os outros profissionais que permitiram toda aquela aventura. E temos um choque forte com o presente. Mais do que isso, as condições e o contexto em que foi possível construí-las incorporaram o processo conceptual que lhes deu origem. Elas são assim também porque é assim que foi possível fazê-las e, com isso, uma aparente desvantagem de falta de sofisticação tornou-se na enorme vantagem da sua autenticidade e filiação profunda numa tradição.
As maiores empresas do setor seguem a tendência internacional, por isso, se quisermos hoje procurar por aí uma identidade só a encontraremos na memória de um certo estilo de composição que incorporou em tempos aspectos construtivos que agora se materializarão apenas em gestos automáticos, irreflectidos, tiques formais.
O Estado de Emergência a que estamos sujeitos reduziu drasticamente a actividade do sector da construção. Mas ficamos com a ideia de que estamos todos a tratar daquilo que nos é próximo e menos preocupados com uma coisa que todos deveríamos saber de cor, a integridade orgânica da obra de arquitectura. Não querendo desvalorizar as iniciativas que referi acima há outras que merecem a nossa atenção.
 Facilmente percebemos que há empresas que têm capacidade estrutural para se adaptar a novas condições sanitárias para poderem funcionar em segurança e outras em isso será muito difícil. É preciso trabalhar para que o sector não desapareça, mas em que condições?
Os arquitectos e engenheiros de projecto estão em processo de trabalho diferido adaptando-se como podem a estas novas circunstâncias. Mas não é possível diferir o trabalho de pedreiro, o de carpinteiro ou o de serralheiro. As obras continuam, dentro do possível, mas com uma divisão de riscos muito diferenciada. A indústria da construção não tem na generalidade as práticas de outras, como a agro-alimentar por exemplo, para assegurar critérios de segurança, sobretudo a pequena e média indústria, aquela que ainda faz diferença entre o standard e a capacidade da especificidade. A autoria em reclusão e a execução em risco. Confesso que os últimos meses me têm colocado os maiores problemas éticos. As obras de que somos autores e responsáveis continuam. Respeitam os projectos que fizemos e a decisão e o investimento de quem as encomendou. Mas não somos nós que corremos riscos para que elas se tornem realidade. O que valem as obras ou o investimento? Quanto custam, verdadeiramente?
Todos temos tentado adaptarmo-nos o melhor que podemos. Os Planos de Higiene e Saúde em Obra são todos pré-epidemia. Alguns têm tentado adaptar as normas da Direcção Geral de Saúde aos projectos-de-obra da melhor maneira possível mas basta sair à rua e ver nas obras que decorrem os riscos e os comportamentos que todos temos tentado evitar. E não é possível evitar a sensação de desigualdade na forma como todos, numa mesma obra, estamos a expor-nos ao risco de infecção e, no entanto, uma obra de arquitectura é um todo orgânico, é de todos os que nela trabalham.
É urgente que todos os organismos que estão ligados ao sector da construção, Ordens Profissionais, Institutos, Comissões de Coordenação, Câmaras Municipais, Empresas do sector se reúnam com a Direcção Geral de Saúde e demais instituições de Saúde Pública e de Actividades Económicas para que sejam discutidas e implementadas normas de funcionamento em segurança. A esmagadora maioria dos arquitectos vive da obra privada e é essa que compreende as maiores perdas e os maiores riscos. Esta é uma situação de emergência mas é igualmente um contexto que se prolongará num tempo que não conseguimos ainda determinar. É uma antecâmara de um outro espaço que ainda não conhecemos. E sendo importante que cada um, no seu lugar, preserve as melhores condições para que as actividades não desapareçam, é também o momento para que os arquitectos não percam a consciência de que na sua prática, tanto como na história da sua disciplina em Portugal, as obras são o resultado da integridade orgânica de todos os que nela trabalham. São um todo solidário e esta é uma situação que exige dos arquitectos essa solidariedade. Seria terrível que a identidade que todos proclamamos não sobrevivesse à falta de solidariedade que, num momento de emergência, não fomos capazes de constituir para todos os que connosco constroem uma obra de arquitectura.



Bruno Baldaia
Nasceu em Coimbra (1971) é arquitecto (FAUP, 1997) e doutorando na ETSAB-UPC no Grupo Habitar onde desenvolve tese sob o tema “El Sucio y el Limpio, Estética y Arquitectura en la Europa Occidental de la Post-Guerra” sob a orientação de Xavier Monteys. Tem publicado textos de crítica de arquitectura em revistas nacionais e estrangeiras, foi docente na EAUM, DACT-UCP Viseu e ARCA-EUAC. É comissário (com Luis Tavares Pereira e Magda Seifert) do Habitar Portugal 2012-2014.

Imagem

Ficha Técnica
Data de publicação: 05.06.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •