A
arquitectura feita em Portugal depende do contexto e das circunstâncias. Aqui
está uma frase tão evidente que parece pateta escrevê-la. Mas como as coisas
são feitas de contextos uma evidência tão pedestre passa a merecer a nossa
atenção, a determo-nos nela. Em primeiro lugar, aquele que traz o esforço de a
tornar relevante no momento de emergência em que vivemos. Em segundo, rever a
história da arquitectura em Portugal a partir desta frase leva-nos a pensar sobre
ela no momento por que passamos. E onde vamos estar durante um tempo que ainda
não conseguimos compreender.
Os
últimos tempos têm trazido um conjunto de preocupações sobre a prática de
arquitectura em Portugal. Há pelo menos dois inquéritos que circulam, um que
resulta de uma cooperação entre a Faculdade da Arquitectura da Universidade do
Porto e a Escuela de Arquitectura Cesuga-USJ da Corunha que aborda as condições
de vida em confinamento e as expectativas para o momento que se segue. Um outro,
promovido pelo Movimento dos Trabalhadores em Arquitectura, procura aferir das
condições de trabalho por que passam os profissionais que nela trabalham
preocupando-se em particular com os assalariados e com a avaliação da alteração
das suas condições de trabalho. Estes inquéritos poderão permitir expor dois
aspectos: o modo como a arquitectura terá de lidar com um novo contexto e uma
nova circunstância, do lado do projecto, dos programas e da sua concepção; o
outro mostra-nos que a condição de exercício de arquitectura é ainda uma
actividade maioritariamente não empresarial e muito instável, afastada por isso
das exigências de disciplina laboral que uma prática estabelecida deve trazer
consigo, ou seja, vamos perceber que a arquitectura se faz de um modo precário e
que, por isso, arrasta consigo um exército já não negligenciável de precários.
São
iniciativas importantes que substituem o vazio que as organizações que têm
responsabilidades no sector deveriam priorizar. Vivemos um momento difícil e
imprevisível. É necessário percebê-lo e ter a capacidade de antecipar o que se
segue. Este futuro já previsível tem antecedentes recentes e se pensarmos que
as regras sanitárias por que passamos vão ter uma vigência que não será
anterior ao aparecimento de uma vacina para a COVID-19 e ao seu acesso
generalizado, ou seja um prazo não inferior a dois anos, facilmente se percebe
que este tempo poderá funcionar como uma antecâmara do futuro.
O
sector da construção tem passado por mudanças importantes. A globalização
trouxe com ela a fusão ou aquisição de empresas de produção de materiais ou de
soluções construtivas reunindo-as num número cada vez mais pequeno de grandes corporações.
Os processos de certificação conduziram ao uso de soluções integradas, que
reduzem a interferência quer dos processos de desenho quer da execução quando
procuram a adaptação a uma circunstância específica. Ou seja o mercado da
construção vai restringir-se, vai-se organizar num conjunto estreito de opções
que são aquelas que garantem as condições a que só um modelo industrial de
escala poderá dar resposta. O que implica uma profunda alteração de processos
da indústria da construção em Portugal.
Já estamos a viver um pouco disso. A crise de
2008 afectou profundamente a indústria da construção que se adaptou como pôde.
A tradição construtiva portuguesa viveu sempre da capacidade de ofício que se
exercia em empresas de pequena dimensão que continuou a manifestar-se pela
passagem de conhecimento oficinal. Esse conhecimento está em dificuldade, a
emigração massiva de profissionais pós-crise abasteceu a Europa com uma geração
de profissionais qualificados onde foram bem acolhidos e bem remunerados o que
dificulta o seu regresso mesmo que, desta vez, a crise atinja toda Europa, não
apenas uma sua parte. Mas a verdade é que o sector oficinal da construção está
representado hoje por profissionais envelhecidos que provavelmente já não terão
a quem passar o seu conhecimento o que afecta a possibilidade de uma
especificidade da construção portuguesa. A que restar será um luxo ao acesso de
poucos. Aos outros a construção sistematizada e indiferenciada, uma espécie de
mundo IKEA. Como a arquitectura participa de uma indústria tanto como a uma
cultura vale a pena determo-nos por aqui um pouco.
A
arquitectura em Portugal foi sempre, ao longo da sua história, lenta na sua
absorção das mudanças que pelo mundo se foram fazendo. Existem excepções, como
sabemos, mas o corpo da arquitectura que por aqui se foi fazendo foi sempre
mais pela adaptação à nossa realidade dos modelos importados do que da
assumpção plena do que os centros, em cada momento, definiram como
cosmopolitismo. O caso português é curioso porque foi construindo um saber
oficinal, nos vários aspectos da construção, capaz de compatibilizar inovação
com tradição e, com isso, criar uma continuidade de hibridismo que se foi
mantendo. Esta é uma parte muito importante e comum às várias versões da
procura de uma identidade para a arquitectura portuguesa. Se voltarmos ao
momento em que a arquitectura portuguesa encontra o seu reconhecimento
internacional com as obras de Álvaro Siza vemos uma obra que não é possível de
conceber sem os pedreiros, os carpinteiros, os serralheiros e todos os outros
profissionais que permitiram toda aquela aventura. E temos um choque forte com
o presente. Mais do que isso, as condições e o contexto em que foi possível
construí-las incorporaram o processo conceptual que lhes deu origem. Elas são
assim também porque é assim que foi possível fazê-las e, com isso, uma aparente
desvantagem de falta de sofisticação tornou-se na enorme vantagem da sua
autenticidade e filiação profunda numa tradição.
As
maiores empresas do setor seguem a tendência internacional, por isso, se
quisermos hoje procurar por aí uma identidade só a encontraremos na memória de
um certo estilo de composição que incorporou em tempos aspectos construtivos
que agora se materializarão apenas em gestos automáticos, irreflectidos, tiques
formais.
O
Estado de Emergência a que estamos sujeitos reduziu drasticamente a actividade
do sector da construção. Mas ficamos com a ideia de que estamos todos a tratar
daquilo que nos é próximo e menos preocupados com uma coisa que todos deveríamos
saber de cor, a integridade orgânica da obra de arquitectura. Não querendo
desvalorizar as iniciativas que referi acima há outras que merecem a nossa
atenção.
Facilmente percebemos que há empresas que têm
capacidade estrutural para se adaptar a novas condições sanitárias para poderem
funcionar em segurança e outras em isso será muito difícil. É preciso trabalhar
para que o sector não desapareça, mas em que condições?
Os
arquitectos e engenheiros de projecto estão em processo de trabalho diferido
adaptando-se como podem a estas novas circunstâncias. Mas não é possível
diferir o trabalho de pedreiro, o de carpinteiro ou o de serralheiro. As obras
continuam, dentro do possível, mas com uma divisão de riscos muito
diferenciada. A indústria da construção não tem na generalidade as práticas de
outras, como a agro-alimentar por exemplo, para assegurar critérios de
segurança, sobretudo a pequena e média indústria, aquela que ainda faz
diferença entre o standard e a capacidade da especificidade. A autoria em
reclusão e a execução em risco. Confesso que os últimos meses me têm colocado
os maiores problemas éticos. As obras de que somos autores e responsáveis
continuam. Respeitam os projectos que fizemos e a decisão e o investimento de
quem as encomendou. Mas não somos nós que corremos riscos para que elas se tornem
realidade. O que valem as obras ou o investimento? Quanto custam,
verdadeiramente?
Todos
temos tentado adaptarmo-nos o melhor que podemos. Os Planos de Higiene e Saúde
em Obra são todos pré-epidemia. Alguns têm tentado adaptar as normas da
Direcção Geral de Saúde aos projectos-de-obra da melhor maneira possível mas
basta sair à rua e ver nas obras que decorrem os riscos e os comportamentos que
todos temos tentado evitar. E não é possível evitar a sensação de desigualdade
na forma como todos, numa mesma obra, estamos a expor-nos ao risco de infecção
e, no entanto, uma obra de arquitectura é um todo orgânico, é de todos os que
nela trabalham.
É
urgente que todos os organismos que estão ligados ao sector da construção,
Ordens Profissionais, Institutos, Comissões de Coordenação, Câmaras Municipais,
Empresas do sector se reúnam com a Direcção Geral de Saúde e demais
instituições de Saúde Pública e de Actividades Económicas para que sejam
discutidas e implementadas normas de funcionamento em segurança. A esmagadora
maioria dos arquitectos vive da obra privada e é essa que compreende as maiores
perdas e os maiores riscos. Esta é uma situação de emergência mas é igualmente
um contexto que se prolongará num tempo que não conseguimos ainda determinar. É
uma antecâmara de um outro espaço que ainda não conhecemos. E sendo importante
que cada um, no seu lugar, preserve as melhores condições para que as
actividades não desapareçam, é também o momento para que os arquitectos não
percam a consciência de que na sua prática, tanto como na história da sua
disciplina em Portugal, as obras são o resultado da integridade orgânica de
todos os que nela trabalham. São um todo solidário e esta é uma situação que
exige dos arquitectos essa solidariedade. Seria terrível que a identidade que
todos proclamamos não sobrevivesse à falta de solidariedade que, num momento de
emergência, não fomos capazes de constituir para todos os que connosco
constroem uma obra de arquitectura.
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Bruno
Baldaia
Nasceu em Coimbra (1971) é arquitecto
(FAUP, 1997) e doutorando na ETSAB-UPC no Grupo Habitar onde desenvolve tese
sob o tema “El Sucio y el Limpio, Estética y Arquitectura en la Europa
Occidental de la Post-Guerra” sob a orientação de Xavier Monteys. Tem publicado
textos de crítica de arquitectura em revistas nacionais e estrangeiras, foi
docente na EAUM, DACT-UCP Viseu e ARCA-EUAC. É comissário (com Luis Tavares
Pereira e Magda Seifert) do Habitar Portugal 2012-2014.
Imagem
Lunch atop a Skyscraper,
1932.
Ficha Técnica
Data de publicação: 05.06.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •