Raro
hoje, se não mesmo inexistente, é o discurso quotidiano que não foi contagiado
pela actual pandemia. A linguagem e o discurso foram eles mesmos infectados. O
vírus tornou-se viral e faz jus ao seu signo soberano – a coroa – pelo império
mediático que detém sobre a linguagem e, consequentemente, sobre as mentes e
sobre os corpos. Não se trata tanto, neste caso, de um «anarquista coroado»,
mas antes de um anomos coroado que fez propagar por toda a parte a
anomia decretada, mais ou menos oficial, de um verosímil estado de excepção planetário.
O inaudito encerramento de fronteiras, o confinamento, o isolamento e a distância
(no grego apostasis), que remetem para o limite último, estanque e
opressivo, do corpo individual de cada um, testemunham paradoxalmente da
remoção escatológica daquilo que detém, retém ou refreia – refiro-me ao katechon
da 2ª Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses. Se esta remoção é temporária
ou permanente, prefigurativa ou final, não estamos ainda em condições de o
saber.
Ao que
parece, porém, este microscópico «inimigo da humanidade», como já foi designado,
ampliado nos ecrãs televisores, veio afinal unir-nos, separados, com dóceis
palavras de ordem partilhadas e comandos precedidos de hashtag. Numa
reedição contemporânea do contrato social hobbesiano, a guerra de todos contra
todos – «potenciais infectados» – é, de novo, pressuposta pela delegação do
poder de preservação da vida. E à semelhança, estranha e inquietante, do frontispício
original do Leviatã, as ruas da cidade estão, também aqui, vazias – com
a excepção das figuras de guardas e de indivíduos ostentando as famosas
máscaras dos médicos da peste. [1] A multitude perde-se de vista, dissolvida e enclausurada no
corpo virtual do soberano, e o povo solidariza-se mutuamente na sua servidão
voluntária. Mais do que nunca: salus populi suprema lex esto.
1. Primeiramente apontado por Horst Bredekamp no seu livro sobre
Thomas Hobbes, este detalhe iconológico foi mais recentemente comentado por
Francesca Falk, Carlo Ginzburg e Giorgio Agamben em Stasis.
O
trabalho de Giorgio Agamben foi plenamente vindicado e sobretudo num ponto: a
biopolítica representa o último reduto do poder soberano de decisão nas
sociedades democráticas liberais. Não é difícil constatar o retorno da retórica
decisionista nos discursos que antecederam a tomada de medidas excepcionais de
segurança pelos órgãos executivos europeus, guiados pela auctoritas da
Organização Mundial de Saúde. Mas se com Carl Schmitt o poder soberano de
decisão se articulava com a multiplicidade irredutível de um conflito político,
segundo linhas móveis de amizade e inimizade, o presente «inimigo da
humanidade» vem agora delinear os contornos de uma nova ordem e unidade global
despolitizada, diante da qual toda a dissidência – em primeiro lugar discursiva
– é necessariamente insalubre, se não mesmo infecciosa, um perigoso atentado à
saúde pública. Nesta unidade planetária todas as divisões entre ateus e
religiosos professos, agnósticos e gnósticos, anarquistas e neo-fascistas,
comunistas e capitalistas são miraculosamente curadas e abolidas. Isto
mostra-nos que, tal como a condição do consenso ignora a divisão entre esquerda
e direita, o dissenso deverá repensar a viabilidade de posições unilaterais
tomadas a priori.
O Grande Confinamento e a biopolítica
Remontando
aquém de Agamben, encontramos em Michel Foucault, aquele que primeiro identificou
o paradigma biopolítico da modernidade, duas úteis referências arquivais que
nos permitem pensar o alcance histórico e a especificidade dos actuais
dispositivos securitários em vigor. Os recentes, múltiplos e prolixos,
comentários às teses de Foucault não fizeram, até agora, avançar
substancialmente a compreensão da situação em que nos encontramos, tendo-se
limitado, no geral, às clássicas menções honrosas da teoria que se vê, ao que tudo
indica, justificada nos factos.
Trata-se,
em primeiro lugar, da dicotomia entre os meios de contenção da lepra e da peste,
analisada em Vigiar e Punir. Se o mecanismo de resposta à lepra se
caracterizava pela forma simples da exclusão, a contenção da peste, por seu
turno, caracterizava-se pela vigilância, pela análise da distribuição espacial
dos corpos, pelo controlo – proibição e autorização – da circulação, por um
sistema de registo permanente dos eventos e dos movimentos. Vários aspectos
conducentes à concretização total de um poder omnipotente e omnisciente,
multiplicado, ramificado e coextensivo a todas as dimensões da existência.
Segundo
Foucault, o exílio do leproso e a erradicação da peste correspondiam a dois
tipos distintos de «sonho político»: um, o de uma comunidade pura, o outro, o
de uma cidade perfeitamente governada. Esta dicotomia, porém, não representava
um simples dualismo, dado que a sua composição, num espaço ao mesmo tempo de
exclusão e de vigilância, viria a configurar o dispositivo panóptico, cujo
diagrama regeu o desenho dos espaços disciplinares das prisões, dos asilos, dos
hospitais, das escolas, dos quartéis e das fábricas.
A
novidade da actual situação pauta-se por uma composição distinta de vigilância
e exclusão: se com a criação dos espaços disciplinares o poder parecia empregar
o paradigma da cidade pestífera em proveito do seu exercício em espaços
separados de encerramento ou «internamento», hoje assistimos ao retorno do
poder ao lugar do qual partiu. Após o seu périplo experimental pelos lugares de
exclusão, o poder rebate-se doravante num único espaço-tempo global de controlo
e vigilância onde a vida se encontra excluída de si própria. A expressão
tão foucaultiana de «Grande Confinamento», adquirirá, em retrospectiva – para a
presente era da satelização total do planeta –, uma singular tonalidade. [2]
2. O regime
biopolítico ligado às primeiras grandes liberalizações dos mercados europeus
nos séculos XVII e XVIII esteve associado à crescente cooperação europeia após
a Paz de Westphalia e a um espaço aberto de trocas económicas suportado pelas
colónias. Hoje, com a de facto existência de uma única civilização
global, com o seu intercâmbio populacional e o seu ecossistema económico cada
vez mais integrado e, de certo modo, fechado – a não ser nos sonhos da
colonização extra-planetária –, não é de espantar o regresso dos encerramentos
de toda a espécie.
A segunda
referência em questão encontramo-la em Segurança, Território e População,
com a análise de duas estratégias distintas, correspondentes a dois paradigmas
distintos, de resposta a epidemias. No contexto de um poder de tipo
disciplinar, uma doença epidémica era combatida por meio de regulamentações
ditando a separação e isolamento dos corpos, a sua redução estrita à
individualidade, de modo a prevenir o contágio. O tratamento concreto da doença
era exclusivamente dirigido aos indivíduos na sua particularidade. Os
dispositivos biopolíticos de segurança, por seu turno, passaram a lidar com
variáveis populacionais e demográficas e com os fenómenos de massa implicados
nas epidemias. O alvo das operações biopolíticas, incluindo a cura, deixou de
ser o indíviduo para passar a ser a população. A própria noção de «saúde
pública» tem origem nesta mudança e é no paradigma securitário que se cunham,
pela primeira vez, noções populacionais hoje correntes como as de «caso»,
«risco», «perigo» e «crise». Uma racionalização do aleatório elabora-se neste
regime, segundo a qual não se trata tanto de impedir o fenómeno que se pretende
anular, mas de o deixar decorrer ou mesmo de o provocar de forma controlável e
governável, em termos dos seus efeitos de massa, mas também em função dos seus
impactos económicos.
Nesta passagem
da disciplina à segurança, vemos surgir um modelo distinto da norma e da
normalidade. A disciplina partia de um modelo hipotético, postulado como norma,
e aplicava-o aos indivíduos, visando a sua conformidade à norma e a repartição
do normal e do anormal. Os dispositivos securitários, inversamente, lidam com a
normalidade existente de um conjunto e de uma série de fenómenos, com
coeficientes e taxas de morbidade e mortalidade, na sua realidade dada e na sua
probabilidade. A partir da normalidade geral de um fenómeno epidémico ou da sua
curva global, os dispositivos de segurança visam rebater as normalidades desfavoráveis
de uma determinada faixa etária, por exemplo, sobre a curva normal geral da
população, reduzindo ao máximo os desvios. A norma deduz-se agora do normal e
não o normal da norma.
É a
partir desta emergência de uma racionalidade securitária que surge a
epidemiologia, não só como ciência, mas como técnica de governo. É devido aos
mecanismos de equilíbrio populacional inaugurados pela biopolítica que a gestão
da saúde pública de cariz liberal se torna possível, com a sua adaptação dos
sistemas de saúde nacionais às regularidades epidemiológicas e patológicas de
uma dada população, tanto no espaço como no tempo. Algo como a «má gestão» de
um sistema de saúde é somente possível desde dentro do modelo gestionário que
decorre das tecnologias de segurança instauradas pela biopolítica.
Com a distinção
entre aquilo que Foucault chamou a «normação» disciplinar e a «normalização»
biopolítica observamos a antecipação teórica daquilo que Agamben identificaria
como a estrutura da excepção soberana. A suspensão da norma externa tem como
efeito a captura da vida pelos dispositivos de poder, resultando numa nova
forma de normalização imanente que passa a coincidir com a vida ela mesma. A
biopolítica marca uma mudança no modelo clássico da soberania, exercida através
da submissão de sujeitos de vontade, em prol de novas formas de governo
imanente da vida. Para Foucault, no entanto, soberania e dispositivos de
segurança nunca foram considerados paradigmas mutuamente exclusivos, pelo
contrário, o poder soberano pode empregar técnicas securitárias de modo a
exercer um domínio mais eficaz e penetrante sobre a vida.
O que
ambas as referências nos parecem indicar por contraste com a situação actual é,
portanto, um estranho retorno de um modelo disciplinar que se sobrepõe agora ao
modelo securitário ou biopolítico no sentido estrito. Uma das características
da disciplina, cuja constatação hoje parece indisputável, era o isolamento, com
a total ausência de contacto de qualquer espécie e a rigorosa individualização
dos corpos. A novidade da presente situação passa pela existência da
telecomunicação e das tecnologias digitais que permitem a preservação de uma
forma recomposta de «contacto» à distância, de outro modo barrado num regime
disciplinar estrito. É neste elemento que a possível resposta a uma
perplexidade teórica poderá ser esboçada.
Não
obstante, Foucault preveniu-nos contra a tendência em esquematizar
excessivamente os dois modelos segundo, por exemplo, uma sequência cronológica
e apontou, igualmente, para o sempre possível recurso a técnicas disciplinares por
parte do biopoder. Em parte é disso que se trata, já que as medidas
disciplinares, decalcadas do modelo de contenção da peste, encontram-se, neste
caso, enquadradas num paradigma estatístico e demográfico característico do
regime biopolítico, usadas como ferramenta para «aplanar a curva», assim como
meios mobilizados num contexto mais lato de desenvolvimento da «imunidade de
grupo», de resto necessária e inevitável.
A
estratégia mais consensual a nível internacional até ao momento para lidar com a
COVID-19, delineada pelo Imperial College de Londres, propõe a permanência de
medidas securitárias durante um período de 18 meses, durante o qual o
confinamento e o distanciamento social continuarão a ser impostos em várias
fases, de modo descontínuo e selectivo. A par disto, propõe-se também a
realização dos testes de imunidade que permitirão a livre circulação dos
indivíduos com resultado positivo. Estas medidas prevêem-se necessárias já que,
enquanto a imunidade de grupo não tiver sido formada – natural ou por vacinação
–, vários outros surtos do vírus são de esperar e a capacidade de resposta do
sistema de saúde terá, portanto, de continuar a ser gerida.
Porém,
a ausência de consenso científico acerca da natureza epidemiológica e
patológica do vírus e acerca das medidas a tomar em resposta à pandemia realçam
o carácter propriamente político dos dispositivos implementados. Este
dissenso científico – mesmo formulado nos parâmetros da racionalidade
biopolítica – foi testemunhado pelas vozes de médicos e investigadores independentes,
com posições de relevo no domínio institucional da saúde pública, como Wolfgang
Wodarg, John Ioannidis, Sucharit Bhakdi e Knut Wittkowski, alguns deles tendo
caracterizado as medidas de confinamento geral como «absurdas» e «grotescas».
Mas além do teor especificamente político das medidas tomadas a nível mundial,
a ausência de consenso científico quanto à sua necessidade permite entrever uma
mudança macropolítica de fundo cujos contornos são ainda dificilmente descortináveis.
Se a decisão biopolítica tomada é de facto injustificada ou, no mínimo, não
consensual, a questão fundamental que se impõe é a dos pressupostos e
implicações de tal decisão no que respeita a uma transformação global e epocal
da soberania, do poder e do governo.
Imunização soberana do comum
Os diferentes líderes e decisores políticos de todas as
eras não tiveram de esperar por que um Maquiavel formalizasse no papel a
necessidade de mitos e narrativas políticas para a manufactura de consenso. O
mito por excelência da modernidade biopolítica é o do humanitarismo, do qual a
«solidariedade» é um dos muitos rostos. Neste contexto, muitos dizem-nos hoje
que a resposta à epidemia reforçou o sentido de comunidade. Mas como poderá
isto assim ser se a comunidade efectiva representa, na verdade, sob a óptica
securitária em vigor, um risco de contágio e infecção? Como Roberto Esposito
expôs de modo exemplar em Immunitas, também neste caso a lógica biopolítica
de imunização subordina o princípio do comum ao princípio do próprio e a
sociedade torna-se governada e unificada pelo princípio da comum separação,
em que o que é comum é somente a reivindicação ao que quer que seja individual.
Numa peculiar iteração de um conhecido mecanismo totalitário, o comum é somente
pensado e produzido como resultado de uma operação de imunização, da qual o
medo e o instinto egóico de preservação da vida constituem o motor secreto.
Como foi ainda claramente demonstrado por Heiner Mühlmann,
de acordo com o seu modelo científico-cultural da «cooperação sob stress
maximal», a emergência de uma concertação colectiva em face de uma ameaça –
real ou virtual – que afecta o todo da sociedade não significa que o bem comum
se sobrepõe aos interesses privados, mas constitui tão-só o exemplo de um tipo específico
de «cooperação egoísta». Este fenómeno pode ser pensado como o produto de um
mecanismo genético-cultural, segundo o qual a cooperação possui mais vantagens
individuais do que o puro e simples interesse de cada indivíduo por si só. Este
mecanismo engendra a sua própria auto-justificação moral, mas o seu
funcionamento sistémico não deixa de estar assente no instinto de sobrevivência
e no medo da morte. Instinto de sobrevivência e medo da morte não são
antitéticos à coesão social – a questão é: que tipo de comunidade pode emergir
daí?
A propósito de Hobbes, Esposito escreveu: «a ordem
política da soberania é somente tornada possível pela eliminação drástica de
toda a interacção social, à parte a estrita permuta individual entre protecção
e obediência. Assim que o «cum» [o com da co-munidade] é tomado
como sendo constitucionalmente arriscado para a auto-preservação ele é
drasticamente eliminado em favor de uma forma política que coloca todo o
indivíduo em contacto directo com o poder soberano que o representa.» [3]
3. Roberto Esposito, Immunitas: the Protection and
Negation of Life (Cambridge: Polity Press, 2011), 86.
Esta constatação, que ressoa hoje com força de evidência,
permite-nos pensar uma articulação oculta entre soberania e tecnologias de
controlo, na medida em que a suspensão da interacção social directa e imediata
instaura uma mediação tecnológica necessária que passa a governar as
interacções entre indivíduos. Se a cidade pestífera, com a sua lógica de
confinamento, isolamento, controlo da circulação e vigilância exaustiva constitui
o paradigma que, segundo Foucault, representa o obscuro sonho tecnocrático de
uma cidade perfeitamente governada, o que pensar de um globo pestífero e
do controlo inaudito que a sua governabilidade acarreta? Qual é exactamente a
natureza desse «contacto directo com o poder soberano» que a mediação
tecnológica impõe aos indivíduos à escala planetária?
A teletopia do controlo filantrópico global
A vaga de choque do presente inimigo da humanidade apela
à intervenção desses «amigos da humanidade» de que Bill Gates é claramente a
face mais disseminada. Outros actores sem rosto são a Apple e a Google que
propuseram já aplicações que detectam por via do sistema Bluetooth dos smartphones
a transmissão do coronavírus, nomeadamente pela detecção de contactos com
indivíduos previamente diagnosticados com o vírus. A contrapartida é, claro, o
acesso por parte de empresas privadas aos dados médicos das populações. Esta
constelação revela o carácter tecnocrático, público-privado, das instituições e
da máquina governamental global.
Uma pequena investigação acerca do nexo dos investimentos
e das actividades filantrópicas da Fundação Bill e Melinda Gates dá-nos um
verdadeiro mapa da lógica tecnocrática global que se desenha a par da resposta
à presente pandemia. Bill Gates é o segundo maior financiador da OMS, que segue
escrupulosamente os seus projectos de vacinação global, em detrimento de
políticas de saúde pública que se afigurariam como mais prioritárias na
prevenção de doenças infecciosas, como o incentivo e a criação de redes de água
potável, recursos de higiene, nutrição e desenvolvimento económico. A Fundação
é também responsável pela maior parte do apoio financeiro às principais
instituições internacionais por detrás da criação dos testes de detecção do
SARS-CoV-2, bem como às instituições que investigam a produção de vacinas. Vários
dos membros da recém-criada comissão europeia de resposta ao coronavírus
dirigem institutos directamente financiados pela Fundação. Além disto, Bill
Gates está também na vanguarda da geoengenharia, com o projecto EarthNow e o
investimento em satélites que visam aumentar a superfície e as capacidades de vigilância
do planeta, que se pretende funcionar totalmente em tempo real, e com o
projecto SCoPEx, para a produção de nuvens artificiais com o propósito de
bloquear e filtrar os raios solares e reduzir o aquecimento global por uma
espécie de contra-efeito de estufa. Outro dos investimentos de Bill Gates é nos
mecanismos de mineração de criptomoeda ou moeda digital, tendo já patenteado
uma tecnologia que permitirá operar essa mineração a partir de dados
biométricos, como ondas cerebrais e circulação sanguínea, prescindindo das
redes maciças e custosas de computadores. Finalmente, Bill Gates é o principal
investidor do projecto global ID2020 que se propõe implementar um sistema de
identificação digital mundial. Um dos pontos do programa é a necessidade de uma
«identidade persistente», que acompanhe o indivíduo desde o nascimento à morte
– exactamente como se pretende proceder a essa identificação persistente
permanece pouco transparente, no entanto, o implante de um chip RFID será, sem
dúvida, o limite e a solução final.
Estas movimentações tecnocráticas globais não fazem senão
aplicar o princípio securitário de resposta a uma urgência – ou formulado em
termos capitalistas: «não deixes uma boa crise ser desperdiçada». Aplica-se
plenamente, aqui também, a ideia de uma «doutrina do choque», mobilizada por um
«capitalismo do desastre» para a exploração política e económica de cenários de
crise. Nesta linha, vemos já o desenvolvimento de toda uma economia da
distância, que corresponde, no entanto, a uma transformação mais vasta em
decurso das tecnologias de poder. Momentos de crise são momentos propícios à
implementação e aceleração de mudanças sociais associadas a tecnologias incipientes
que, de outro modo, seriam dificilmente aceites pelas populações. Como Agamben
referiu numa das suas intervenções recentes, nenhuma tecnologia implementada em
situações de crise desaparece totalmente com a retomada da «normalidade».
Entre outros aspectos, a normalização da telescola e do
teletrabalho serão duas formas da normalização geral da telepresença. O
«distanciamento social» ele mesmo não é senão a embraiagem dessa teletopia
mais vasta – para usar uma feliz expressão de Paul Virilio – pela qual se
realiza uma total reversibilidade entre realidade e virtualidade. Aos aparelhos
simuladores de realidade virtual, pelos quais o homem age realmente sobre
objectos virtuais, por meio do movimento dos membros corporais detectado
pelos sensores que os equipam, alia-se o controlo domótico do ambiente real, um
dos aspectos da «internet das coisas» a vir (automação e telecomando de
aparelhos domésticos), pelo qual o homem age virtualmente sobre objectos
reais. Esta reversibilidade contribui para a produção de uma interface
energética homem-máquina que, no limite, erradica o contacto de superfícies e
oblitera a densidade física do corpo animal.
A televigilância, acompanhada pela geovigilância dos
deslocamentos e trajectos, redobra-se ainda pela biovigilância da actividade
corporal – temperatura corporal, pressão sanguínea, batimento cardíaco, ondas
cerebrais, etc. A noção de vigilância, no entanto, apesar de constituir um
aspecto essencial do actual panorama político, retém uma conotação de exterioridade
que não explica a integralidade da mutação ontológica epocal em decurso, com a sua
crescente hibridização homem-máquina. A questão fundamental não é a da retirada
das liberdades civis e individuais, cuja contestação é geralmente acompanhada de
um apelo supérfluo e impotente à privacidade. Uma outra ideia a excluir, cuja
realidade, como já mencionado, não se constata – apesar de a sua emergência
parcial não ser de excluir –, é a do desmoronamento da comunidade no caos da
luta pela sobrevivência biológica. Aquilo a que assistimos é ao advento de um
estado de controlo absoluto da vida e à produção de uma sobre-vivência
espectral, pela qual a vida sobrevive a si própria, expropriada e fagocitada
pelos dispositivos tecnobióticos, componentes de um sistema global de sujeição
maquínica.
Num tempo em que alguns dos mais representativos
pensadores públicos de esquerda advogam um reforço das políticas globalistas e
inclusivamente louvam as suas instituições e actores, é mais do que nunca
necessário, em face deste cenário, repensar e reabilitar as lutas
antiglobalização, tão correntes nos anos 90 do século passado, mas esquecidas
após o 11 de Setembro e apropriadas por interesses geopolíticos regionais ou
tristemente entregues à sua manipulação populista e identitária.
O katechon e a anomia coroada
Como Agamben afirmou em Il tempo che resta, o katechon,
essa enigmática figura paulina do poder que retém e retarda o desenlace final
do «mistério da anomia» no fim dos tempos, não é senão a aparência transitória de
legitimidade dos múltiplos poderes que recobrem o estado de excepção efectivo
em que vivemos. A remoção do katechon coincide, portanto, com o desvelamento do
«mistério da anomia», quando o poder e as autoridades constituídas assumem a
figura do anomos, do fora-da-lei, pela suspensão da lei num estado de
excepção que eles mesmos instauram. A anomia libertada pela remoção do katechon
é uma anomia coroada, isto é, um reino, não o mero caos ou anarquia. E quem
diz anomia coroada diz excepção normalizada.
Para o Apóstolo Paulo, o katechon era uma figura
associada à política imperial e a sua remoção implicava necessariamente um
evento ecuménico. O signo soberano do SARS-CoV-2 é indissociável do seu
carácter global. Com o estado de excepção planetário instaurado pelo «inimigo
da humanidade» vemos inaugurada uma era global em que o dissidente biopolítico
tende a confundir-se e a ser identificado com esse mesmo inimigo de que ele é o
portador virtual. A única figura comparável com este novo tipo de dissidente
biopolítico é a figura do terrorista. A diferença, porém, reside no facto de
que a identificação do terrorista depende necessariamente de uma acção,
virtual ou não, ao passo que a identificação do dissidente biopolítico se
prende com o seu próprio ser e com um ser de pura virtualidade: o
potencial infectado.
É preciso ter em mente que, para o Apóstolo, a comunidade
messiânica cristã constitui uma comunidade para quem a morte foi abolida no
corpo de Cristo. Trata-se de uma comunidade que é o próprio Corpo de
Cristo e para a qual, em última instância, não há morte. O katechon, na medida
em que definiu inicialmente a figura de compromisso da comunidade messiânica
com os poderes terrenos, possui um carácter imunitário. Ele representa a figura
da inoculação da comunidade com o mal do poder que retarda o advento da anomia
consumada, mas também, e por conseguinte, a parousia divina e o Reino
dos Céus. O compromisso da ekklēsia com o poder e, portanto, o
retardamento da anomia final, dá-se pela necessidade de acolher «neste mundo» os
chamados e de os preparar para o aion a vir. Mas se o katechon sacrifica
parcialmente a liberdade do espírito pela necessidade de interacção com a ordem
do mundo e pela protecção, ou imunização, da vida messiânica, a apostasia que
conduz à anomia final não é senão a doença auto-imune do poder, um katechon
extremado – um Grande Inquisidor que esqueceu a sua missão provisória em vista
do reino do espírito e que sacrifica agora a própria vida à sua necessidade
delirante e desenfreada de protecção. A remoção escatológica do poder que retém
inaugura o tempo do confronto directo entre a comunidade messiânica e o reino
anómico anti-messiânico.
Co-imunidade e resistência biopolítica
O efectivo excesso de mortalidade, tanto em Itália como
em Espanha, apresenta um enigma à análise. Alguns estudos efectuados nesses
países demonstram que as mortes de pacientes testados positivamente com o
coronavírus representam apenas uma fracção do excesso de mortalidade. Vários
órgãos de comunicação social, entre os quais o Corriere Della Sera e o El
País, congestionados por uma verdadeira fixação psicossemiótica, depreenderam
desde logo que a única explicação para este facto se deve necessariamente à
ausência de testes e que, portanto, um número muito maior de casos letais seria
causado pelo coronavírus. Esta hipótese não tem, porém, qualquer base nos dados,
já de si excessivamente inflacionados pela equivalência entre mortes por SARS-CoV-2
e mortes com a presença do SARS-CoV-2 em quadro de comorbidade. Um
estudo pioneiro de John Ioannidis com o teste serológico aponta para o facto de
que, numa dada população, 50 a 85 vezes mais pessoas do que o previamente
estimado a partir dos testes virológicos deverão ter sido infectadas e
desenvolvido já imunidade, com a conclusão que a taxa de mortalidade da
COVID-19 é muito mais baixa, não diferindo muito da taxa de mortalidade de uma
gripe sazonal.
Além da inflação estatística dos dados, várias razões
para o excesso de mortalidade por coronavírus em Itália foram já apontadas,
passando por diferentes factores como população envelhecida, poluição
atmosférica, tabagismo, índices elevados de doenças crónicas e as já conhecidas
fragilidades do sistema de saúde – a operar normalmente a cerca de 98% da sua
capacidade –, com o efeito de avalanche causado pelo seu colapso. Um outro
factor a ter em conta são as infecções nosocomiais e os focos de contágio que
os próprios hospitais constituem. Se o cenário italiano foi brandido como
exemplo para os outros países, esse exemplo não deveria ter sido seguido em
detrimento das diferenças e singularidades de cada realidade nacional, regional
e local. O cenário italiano deveria ter-nos mostrado o que não fazer,
não por defeito, mas por excesso.
Para lá das mortes associadas ao coronavírus e à
inacessibilidade de cuidados médicos a pacientes com outras doenças, o que não
foi ainda suficientemente questionado são os efeitos do estado ele mesmo
infeccioso de pânico, bem como as prováveis repercussões desastrosas, presentes
e futuras, das medidas tomadas de confinamento, não só para a economia, mas
para a saúde comunitária. Neste aspecto, os media agiram e agem, em geral, de
forma inteiramente irresponsável e em total ignorância da codependência entre
pânico e doença – sendo, de resto, sabido que os media de massas lucram
enormemente com circuitos de feedback de pânico que eles próprios alimentam.
É desde há algum tempo constatado no contexto da
neuroendocrinologia e da psiconeuroimunologia que o stress e o os estados
depressivos podem diminuir drasticamente a capacidade imunitária do organismo. Por
outro lado, uma correlação entre isolamento social, solidão e morte prematura
foi também já amplamente comprovada. Além disto, a disrupção dos ritmos
existenciais, das regularidades vitais e dos hábitos constitui um outro factor
imprevisto no aumento de uma verdadeira morbidez generalizada. O problema não é
a existência de políticas de saúde pública – ou, melhor dito, comum –, mas o
seu teor, afirmador ou negador da vida. Podemos, neste sentido, falar numa
alternativa entre uma biopolítica afirmativa e uma biopolítica
negativa (de que as medidas até aqui tomadas são exemplo).
Ou ainda, ao invés de uma imunização da comunidade, uma
verdadeira co-imunidade, enquanto totalidade dinâmica do conjunto de
funções, operativas a nível comunitário, que resistem à morte – para utilizar a
célebre definição de vida de Xavier Bichat. Co-imunidade essa elaborada
a partir de práticas dietéticas e ascéticas, no sentido lato, incluindo uma
diversidade de estratégias psíquicas e orgânicas, individuais e colectivas, de coping
ao stress. Ao invés da já designada «hiper-alergologia» – tanto mais reactiva e
hiper-sensível quanto mais imunizada – ao sofrimento, uma integração e sobressunção
do sofrimento pelo dinamismo auto-superador da vida. Nem o cenário disciplinar
puramente negativo da distância e das restrições e limitações do movimento, nem
o cenário mais «liberal» da formação de imunidade de grupo concebem esta
co-imunidade afirmativa. Muito pouco ou nada disto faz parte do nosso vocabulário
biopolítico público, que esqueceu um velho princípio da medicina hipocrática,
segundo o qual não se deve combater a doença, mas promover e potenciar a saúde.
É já um lugar-comum do pensamento filosófico-político a
oposição de Espinosa a Hobbes, mas ela contém ainda um potencial de actualidade
impensado, já que permanecemos, afinal, sem saber «o que pode um corpo». Sob os
nomes de Hobbes e Espinosa estão em jogo duas concepções distintas do corpo
comunitário, uma baseada na separação e na mediação soberana e a outra no
contacto e nas relações imediatas – o que não exclui o tacto e o trato (a
distância). Para Hobbes a preservação da comunidade, ameaçada pela destruição
mútua, é assegurada pela separação dos corpos, de modo a enclausurar cada
indivíduo no interior de fronteiras inquebráveis – e conduzir à sua
recomposição energética no corpo virtual soberano –, ao passo que para Espinosa
a comunidade é necessariamente formada pela ligação e contacto dos corpos que se
reforçam mutuamente:
«Se dois indivíduos, absolutamente da mesma natureza, se
unem um ao outro, formam um indivíduo duas vezes mais poderoso que cada um
deles separadamente. Portanto, nada mais útil ao homem do que o homem. Os
homens – digo – não podem desejar nada mais vantajoso para conservar o seu ser
do que estarem todos de tal maneira de acordo em tudo, que as almas e os corpos
de todos formem como que uma só alma e um só corpo» (Ética, IV,
proposição 18).
Na eventualidade de uma remoção final do poder que retém
o advento do reino anti-messiânico, resta-nos somente delinear as novas – e
últimas – estratégias de resistência biopolítica que permitem ainda a
existência desse «um só corpo» para o qual a morte perdeu o seu império.
•
Luís Carneiro
Luís
Carneiro é membro investigador do Aesthetics, Politics and Knowledge Research
Group do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto e leccionou como
assistente convidado o seminário de Biopolítica do Mestrado de História,
Relações Internacionais e Cooperação da Faculdade de Letras da Universidade do
Porto. Vive actualmente em Atenas.
Imagens
Frontispício e pormenor do Leviatã de Thomas Hobbes (1651)
Ficha técnica
Data de publicação:
28.04.2020
Edição #27 •
Primavera 2020 •