1.
Numa reportagem recente
sobre hospitais privados tivemos a oportunidade de ficar a saber (depois de longos
minutos a observar com deleite a tecnologia de ponta destes serviços) que estes
apresentavam avultadas perdas de receita, dada a ausência de «clientes». A
reportagem soava como um repto à mobilização imediata dos seus pacientes, «Às
doenças, cidadãos!», dando conta que a recuperação financeira destes hospitais
será difícil. Logo a seguir, ficávamos a saber que estas «entidades não
públicas» são uma parte importante do Serviço Nacional Saúde (SNS),
curiosamente ao mesmo tempo que se referia que a Covid-19 poderia ser uma
«fonte suplementar de receita». Mais ainda, ficamos a saber que os hospitais
privados estão, afinal, disponíveis para ajudar no que for preciso, prontos a
receber os utentes do SNS (desde que o Estado, obviamente, assegure as despesas
totais dos internamentos).
O modo como administradores e médicos
procuraram ao longo da reportagem legitimar a sua posição relativamente ao SNS
revelou-se um verdadeiro exercício de equilibrismo: por um lado, afirmavam que
são parte integrante do «sistema», por outro lado, que uma crise desta natureza
só caberia ao Estado responder, desresponsabilizando-se (a si e às seguradoras)
de qualquer custo.
Ora, ficou bem patente nestas últimas
semanas qual é o papel do sector privado no SNS: por um lado, nenhuma
responsabilidade, nenhum sentido de serviço público, nenhuma capacidade de
resposta; por outro lado, absoluta dependência relativamente ao financiamento
que provém do Estado e pura visão empresarial da saúde: que significa na
prática dar aos hospitais públicos as funções não lucrativas da saúde, ao mesmo
tempo que guardam para si as funções exclusivamente lucrativas. O privado fica
com os lucros e o público fica com os prejuízos. Uma lógica de tal modo
consolidada que nem a emergência epidémica conseguiu perturbar. Torna-se,
assim, tão fácil como aterrador imaginar o que seria uma resposta à pandemia
sem um SNS público.
2.
O empobrecimento progressivo dos hospitais
públicos não se deve simplesmente à falta de orçamento, deve-se sim a uma
política consistente de financiamento do sector privado por parte do Estado.
Por sua vez, a privatização dos serviços públicos não significa simplesmente a
sua transferência para um outro modelo de funcionamento em mercado
concorrencial, mas a inscrição plena destes serviços no sistema financeiro
global, enquanto funções essenciais do seu negócio. Tal como a privatização da
habitação pública foi a grande alavanca da expansão da finança a partir dos
anos 80 (através dos créditos à habitação), a crescente privatização dos
serviços públicos tem servido para generalizar novas formas de extracção de
mais-valia (lucro), através dos mecanismos da dívida e da renda (crédito à
habitação, seguros de saúde, individualização das protecções sociais, mas
também, por exemplo, especulação imobiliária).
Tornar o Estado mais «eficaz», mais «pequeno»,
entregar todos estes serviços «às regras eficientes do mercado», não passam de
discursos que procuram legitimar o facto da acumulação de capital (numa
economia financeirizada como aquela que temos) se situar não apenas na relação capital-trabalho,
mas no terreno da própria vida (da reprodução biológica e social). Neste
sentido, aquilo que está em causa não é simplesmente fazer da saúde ou da
habitação um negócio, mas sim fazer do corpo, nas suas necessidades básicas e
vitais, na sua existência nua, uma função fundamental da expansão da finança.
Se podemos falar de uma financeirização
da vida é porque o corpo foi capturado por uma miríade de instrumentos técnico-financeiros
que o administram de acordo com as necessidades do capital, convertendo-o num
factor de rentabilidade permanente dos circuitos abstractos e globais da
finança.
3.
Se, como escrevia Paul B. Preciado, esta pandemia
demonstra como as «políticas de fronteira» se deslocaram da escala do
território para o «nível do corpo individual», é porque este corpo é aquilo que
deve ser a todo o custo protegido, salvaguardado e, sobretudo, vigiado; é
porque ele é o centro de todos esses processos de extracção de mais-valia, de
acumulação de capital e, finalmente, de despossessão. Digamos que essa
vigilância corresponde necessariamente ao grau de produtividade económica e de
reprodutibilidade financeira do corpo, indexando-o a um valor político e
económico directamente contabilizável. E essa é também a razão pela qual esse
corpo e essa vida estão, hoje, como nunca, sob o perigo de serem sacrificados, descartados
como improdutivos (tal como a crise do subprime,
em 2008, descartou desde o início a população negra pobre dos EUA, apanhada nas
malhas do endividamento).
A questão não está apenas no facto do
espaço doméstico se ter convertido agora «no centro da economia do tele-consumo
e da tele-produçã0», como escreve Paul B. Preciado, mas do doméstico ser o
espaço da reprodutibilidade financeira. A ansiedade psicológica causada pela actual
acumulação de tarefas profissionais e domésticas é apenas o aspecto mais
evidente dessa sobreposição dos mecanismos de exploração ligados ao trabalho e à
reprodução num mesmo espaço-tempo. Mas não se trata de lamentar a dissolução da
esfera do privado ou de uma qualquer ideia romântica de casa, mas de reconhecer
como esta casa se tornou na sua romantização o lugar da exploração universal
capitalista, ao mesmo tempo que se transformou no operador político-económico
de uma profunda individualização e imunização social. Neste sentido, é bastante
revelador observar como a arquitectura foi, a partir dos anos 70, uma
tecnologia político-económica essencial na legitimação de uma ideia de casa (e
de propriedade) tanto como bastião da segurança individual e familiar (num
mundo crescentemente inseguro), como locus
de todas aspirações e desejos da classe média, ao mesmo tempo que convertia
essa mesma casa no espaço fundamental de despossessão e exploração do capital. O “right to buy”, o slogan das políticas neoliberais thatcherianas dos anos 80, revelou,
afinal, ser o “right to be indebted”, atirando as famílias para o
circuito inescapável da dívida eterna.
4.
Se há algo que esta epidemia tem revelado
de forma paradigmática é a extensão absoluta desse princípio da privatização da vida, da privatização do corpo, que o capitalismo
e o neoliberalismo levam hoje até às últimas consequências: a conversão da
vida, em todos os seus gestos, em todas as suas funções, em todas as suas
necessidades básicas, vitais e fundamentais, numa função da rentabilidade do
capital financeiro. É por isso que a injunção #stayathome é tão paradoxal: não apenas porque dissimula os níveis
brutais de desigualdade no acesso a uma habitação de qualidade (o que em
Portugal é dramático), mas porque dissimula precisamente a conversão da casa
numa máquina de rentabilidade e de despossessão permanente do corpo.
Por isso, a violência do «estado de
emergência» não está apenas nas restrições às liberdades individuais, mas no
modo objectivo como divide a população (e como mostra as divisões de classe da
população), gerindo-a de acordo com as formas de rentabilidade dos corpos:
mantendo em funcionamento obrigatório os sectores produtivos da economia fora
de casa (com todos os riscos que isso comporta, sem qualquer legislação que
garanta condições de protecção a esses trabalhadores), ao mesmo tempo que assegura
a operacionalização dos mecanismos financeiros dentro de casa (as moratórias
aos arrendamentos ou aos créditos à habitação, que apenas supõem empréstimos,
não são mais que tentativas de manter a máquina financeira em movimento);
expondo, ainda, por fim, o abandono extremo de todos aqueles que a economia
definiu como descartáveis. É essa a expressão evidente do princípio biopolítico
que gere o corpo social: a saúde da população não é senão um factor da gestão
da economia (algo que ficou evidente no modo como vários países, desde a Suécia
aos EUA, têm vindo a gerir os níveis de quarentena, impondo restrições parciais
e procurando balançar as perdas da saúde e as perdas da economia).
Neste sentido, não há que ter dúvidas
que aquilo que irá estar em causa nos próximos meses, como na crise financeira de
2008, será também um processo de redefinição destas divisões sociais do
trabalho produtivo e reprodutivo, de forma a acentuar a precariedade laboral e
a operacionalizar os diferentes mecanismos financeiros de despossessão. Até
porque a precariedade social e laboral significam, precisamente, acelerar e
generalizar novas fontes de renda da finança.
5.
É por tudo isto que se torna difícil
falar, por exemplo, de um serviço de saúde privado mais ou menos ético, mas
apenas supor que nesse modelo de privatização absoluta da vida não há tal coisa
como uma ética, não há ethos – uma
relação do próprio consigo mesmo – que não tenha sido já objecto de expropriação
e que não seja expropriável. Neste sentido, a privatização do corpo significa
que aquilo do qual estamos privados é,
na verdade, a relação com a forma da nossa vida – da qual já nada sabemos, da
qual nada podemos saber. Se esta vida aparece agora, em cada dia, estranha e
intolerável, como escrevia Agamben em Reflexões sobre a peste, é porque o
confinamento revela a vida tal como é:
pura função produtiva ao serviço do capital, enquanto que a reprodução e a
produção social se converteram, hoje, mais do que nunca, em funções absolutas
da finança (e também numa fonte de
rendimento inesgotável das empresas digitais de Silicon valley, acelerando o
processo de conversão de cada utilizador num produtor intensivo de conteúdos
digitais).
O princípio da imunização individual é apenas
um efeito da privatização do corpo. É preciso individualizar o corpo, impor
sobre a vida um confinamento para que a sua função capital seja máxima. É como
se, no final de contas, a expressão «distância social» não fosse mais que o
corolário dessa indistinção que a quarentena torna visível: o momento em que
capital e vida coincidem absolutamente, em que a vida é o capital e o capital é
a vida.
6.
Se é bem verdade que, por esta altura, tornou-se
obrigatório concluir um artigo sobre a actual situação apelando ou
reivindicando a possibilidade de uma outra política, o que é certo é que todos aqueles
que escrevem ou que lêem acabam sempre por se encontrar no mesmo ponto, isto é,
como dizia Gilles Deleuze, diante de uma parede que só pode ser atravessada por
uma prática (e eu acrescentaria) colectiva. E, no entanto, é precisamente esse
modo de organização em comum que permanece ainda uma incógnita e cuja
reinvenção é tão necessária como urgente. Talvez haja algo, de facto, que seja preciso
aprender. De qualquer modo, como
escreveu uma vez Debord: «As teorias não estão feitas senão para morrer na
guerra do tempo».
•
Pedro
Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto,
crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagens
As imagens que acompanham o artigo
são do movimento Ninguém
fica para trás. Seguindo o mote ninguém fica para trás, esta é uma iniciativa
colectiva que tem procurado responder às consequências sociais e económicas devastadoras
da pandemia, exigindo a partir de um caderno reivindicativo objectivo medidas
capazes de garantir, durante o estado de emergência e para além dele, direitos
básicos e fundamentais para uma vida digna.
Ficha Técnica
Data de publicação: 15.04.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •