“Certezas precisam-se!” Eis o anúncio afixado à
porta do mundo. Por estas bandas, há quem se preste ao ridículo clamando por
uma data. “Dêem-nos uma data a que nos agarrar!” Com tanta procura, aumenta a
oferta. O negócio das certezas está em alta – com os seus cálculos,
estatísticas, exponenciais, curvas, planaltos e picos – e há quem queira vender
as suas certezas a saldos: multiplicam-se os gráficos caseiros, mezinhas várias
contra o vírus da incerteza.
Num tempo ávido de certezas, a filosofia – que com a
verdade sempre manteve uma relação diagonal – também é chamada à liça. E os
filósofos têm acorrido: uns de bom-grado, outros porventura a contragosto, mas
julgando-se obrigados a dizer algo, qualquer coisa, nem que seja o que toda a
gente sabe ou julga saber. Há os que entram a matar – e põem, porventura, o pé
na argola – e os que jogam pelo seguro, espraiando-se em lugares comuns. Sobre
os segundos, pouco há a dizer. Já os primeiros podem servir-nos, não apesar mas
por causa do escândalo que provocam, para não ficarmos apenas com respostas que
o não são.
Exige-se da filosofia, mais do que nunca, um certo
distanciamento: que não ceda à pressa em obter respostas. Não que respostas não
sejam precisas. Não que não seja urgente encontrar soluções: médicas,
logísticas, políticas. O tempo urge. Decisões são tomadas. O escrutínio público
é necessário. Denuncia-se, e bem, a necropolítica que não hesita em sacrificar
a ciência (e as vidas que esta pode salvar) no altar da economia; alerta-se, e
bem, para a dimensão global da crise e para a necessidade de solidariedade
internacional; condena-se, e bem, os arroubos autoritários a que o clima de excepção convida.
Tudo isto está certo e pouco importa quem o diz. Ao mesmo tempo, se não
precisamos – e eu creio que não precisamos – da filosofia para perceber tudo
isto, cabe então perguntar: o que pode a filosofia nos tempos que correm? Como
se expressa e em que medida é útil o seu distanciamento na proximidade a que a
intervenção no espaço público obriga?
O erro e a
pergunta de Agamben
Detenho-me nos pronunciamentos recentes de Agamben,
que tanta polémica têm gerado. Antes, porém, de incidir sobre a sua pergunta,
detenho-me no seu erro. Qual foi o erro de Agamben? Quanto a mim, este
consistiu, muito simplesmente, em abordar o problema da pandemia como se
tivesse uma certeza acerca da sua
(não-)gravidade. Foi um erro, porque o filósofo não tinha nem tem como saber
quão grave é a pandemia. Ponto final. Agamben, entretanto, emendou a mão. O último texto que publicou abre
justamente com a indicação de que “as reflexões que se seguem não dizem
respeito à epidemia, mas ao que podemos compreender das reacções dos homens
relativamente a esta”. Agamben prossegue, enunciando a pergunta que me
interessa realçar:
«Trata-se
de reflectir sobre a facilidade com que uma sociedade inteira aceitou sentir-se
contaminada, isolar-se em casa e suspender as suas condições normais de vida,
as suas relações de trabalho, de amizade, de amor e até mesmo as suas
convicções religiosas e políticas. Porque não tiveram lugar, como era possível
imaginar e como habitualmente sucede nestes casos, protestos e oposições?»
Não vou discutir a hipótese sugerida por Agamben: que a “peste”
já existia, ainda que inconscientemente, como desconforto com um modo de vida
profundamente errado. Vou antes considerar a pergunta, que considero certeira.
Dizer de uma pergunta que é certeira pode gerar perplexidade. Afinal, como pode
uma pergunta ser certeira independentemente da resposta? Ora, é exactamente
isso – que uma pergunta pode ser certeira independentemente da resposta, como
creio ser a que Agamben faz neste texto – que gostaria de sublinhar, a fim de
tecer algumas considerações mais gerais sobre o papel da filosofia nos tempos
que correm.
Há perguntas cuja relevância consiste em perspectivar a própria
actividade questionadora não só como “causa” mas também como “consequência”.
Não se trata apenas de discutir o método – se é ou não válido ou coerente – que
conduz à obtenção de respostas. Trata-se, antes disso, de perguntar: que
experiências, que anseios, que traumas, que temores nos levam a fazer uma
pergunta, a privilegiar esta pergunta em detrimento doutra, a responder desta
ou daquela maneira, ou a exigir que para determinada pergunta se encontre
resposta imediata? Logo, trata-se também de perguntar: que questões deixam de
ser levantadas quando toda a atenção está voltada para obter a resposta a uma
única pergunta?
Por estes dias, parece claro que a pergunta “como e quando nos
livraremos da pandemia?” se tornou hegemónica ao ponto de nos fazer esquecer –
ou mesmo de nos fazer querer calar – outras perguntas. Esse não é o menor dos
perigos da situação que enfrentamos. E quem sabe se não é maior do que a
própria pandemia.
É por pôr o dedo nessa ferida – no perigo de nos deixarmos cegar
por esse mono-questionamento – que a pergunta de Agamben é certeira. E é-o, consequentemente,
por sugerir que a única forma de lidarmos de forma lúcida com a pergunta que
nos assalta passa por resistirmos à tentação de desistir de tudo – da
liberdade, do amor e da coragem de fazer outras perguntas – e tudo deixar nas
mãos da primeira entidade, instituição ou discurso que pareça prometer uma
resposta, um antídoto, se não contra o vírus, contra o temor que a incerteza em
relação a ele gera.
É que no coração da pergunta – como e quando nos livraremos da
pandemia? – o medo de não saber, de ainda não saber, de saber tarde de mais,
grita mais alto do que a vontade de conhecimento. A pergunta está assustada. A
pergunta impacienta-se, irrita-se com quem pensa noutra coisa e faz outras
perguntas. Por fim, a pergunta não quer aceitar qualquer resposta.
Ciência e
filosofia
Eis o paradoxo em que mergulhou a doxa mundial. Por um lado, rejeita-se o
obscurantismo e dá-se a palavra à ciência; por outro lado, recusa-se, não sem
dogmatismo, que esta possa ter dúvidas. É preciso ser muito claro neste ponto:
para enfrentar uma pandemia, é, sem dúvida, à ciência que se deve dar a palavra.
Mas esta não fala a uma só voz. Não tem, não tem ainda, não pode ter ainda
certezas. Não só porque não tem como produzir uma vacina da noite para o dia,
mas também porque – eis aquilo em que praticamente ninguém ousa pensar e muito
menos dizer – se divide sobre qual a melhor forma de controlar a pandemia.
É talvez insuportável pensá-lo hoje, mas a verdade é
que não sabemos – não há, lamento muito, consenso entre os cientistas, uns
julgam que sim, outros julgam que não – se a estratégia adoptada na maioria dos
países é, de facto, a mais eficaz. Sugerir isto provoca escândalo. É tão
terrível imaginar que o esforço feito possa ser em vão ou contraproducente, que
evocar essa possibilidade é amiúde interpretado como um ataque à ciência.
Mas não é, antes pelo contrário. É a própria ciência
que tem, que não pode deixar de ter dúvidas e que, por isso, se divide na forma
de procurar ultrapassá-las, testando esta ou aquela hipótese, privilegiando
estes ou aqueles dados. Dizê-lo não é atacar a ciência, mas defendê-la da
pressão que a avidez de certezas gera. Nisso, as perguntas da filosofia, muito
longe de porem a ciência em causa, reclamam para ela uma margem de manobra
fundamental.
Como se o medo
não pudesse tanto
O pânico é como o napalm. Há quem pareça respirar
melhor ao sentir o seu aroma pela manhã: profetas da desgraça para quem a ciência
é um jogo do preço certo; oportunistas da bolsa e das vendas a retalho;
fascistas e atiçadores de cães de guarda – tudo gente para quem o horror, desde
que sirva para recolher os louros de salvador da pátria, levar dinheiro ao
bolso ou pôr o povo na ordem, é motivo de regozijo.
Como o napalm, o pânico espalha-se de modo
devastador. E, tristemente, tem-se revelado mais contagioso do que muitos esperávamos. Das melhores
cabeças emergem conselhos de obediência cega: há que acatar o estado de emergência, há que prestar atenção ao que diz a ciência. Não é o conteúdo, mas o tom
destes reptos – daí realçar os verbos utilizados – que surpreende. E a zanga. A
zanga com o corredor de jardim, a zanga com o carro avistado na ponte. “São
assassinos!” – diz-se. Diz-se e pensa-se. Pois, mesmo em silêncio ou
expressando-se com calma e sensatez, o medo sequestra os seus porta-vozes.
Os tempos que correm são tempos de incerteza. Mas
não de uma incerteza qualquer. Uma incerteza que ameaça de imediato, agora, já,
e sobre a qual, portanto, não há tempo para pensar. Quando a pandemia passar, e
tudo continuar a desmoronar-se, veremos talvez como o maior perigo é a cedência
inconfessada ao medo: pois a vontade de certeza a qualquer preço é também a
hipoteca do pensamento e, com ele, de uma vida digna de ser vivida.
A filosofia existe como se o medo não pudesse tanto.
Eis o escândalo: distancia-se, mesmo em tempos de catástrofe, como se ainda
houvesse tempo para pensar.
•
João
Pedro Cachopo
Formado em musicologia e filosofia, João
Pedro Cachopo é investigador do CESEM e professor convidado na NOVA-FCSH. É o
autor de Verdade e Enigma: Ensaio sobre o
pensamento estético de Adorno (Vendaval, 2013) e co-editou Estética e Política entre as Artes
(Edições 70, 2017) e Rancière and Music
(Edinburgh University Press, 2020).
Ficha Técnica
Data
de publicação: 14.04.2020
Edição
#27 • Primavera 2020 •