O que pode a filosofia nos tempos que correm? • João Pedro Cachopo




“Certezas precisam-se!” Eis o anúncio afixado à porta do mundo. Por estas bandas, há quem se preste ao ridículo clamando por uma data. “Dêem-nos uma data a que nos agarrar!” Com tanta procura, aumenta a oferta. O negócio das certezas está em alta – com os seus cálculos, estatísticas, exponenciais, curvas, planaltos e picos – e há quem queira vender as suas certezas a saldos: multiplicam-se os gráficos caseiros, mezinhas várias contra o vírus da incerteza.
Num tempo ávido de certezas, a filosofia – que com a verdade sempre manteve uma relação diagonal – também é chamada à liça. E os filósofos têm acorrido: uns de bom-grado, outros porventura a contragosto, mas julgando-se obrigados a dizer algo, qualquer coisa, nem que seja o que toda a gente sabe ou julga saber. Há os que entram a matar – e põem, porventura, o pé na argola – e os que jogam pelo seguro, espraiando-se em lugares comuns. Sobre os segundos, pouco há a dizer. Já os primeiros podem servir-nos, não apesar mas por causa do escândalo que provocam, para não ficarmos apenas com respostas que o não são.
Exige-se da filosofia, mais do que nunca, um certo distanciamento: que não ceda à pressa em obter respostas. Não que respostas não sejam precisas. Não que não seja urgente encontrar soluções: médicas, logísticas, políticas. O tempo urge. Decisões são tomadas. O escrutínio público é necessário. Denuncia-se, e bem, a necropolítica que não hesita em sacrificar a ciência (e as vidas que esta pode salvar) no altar da economia; alerta-se, e bem, para a dimensão global da crise e para a necessidade de solidariedade internacional; condena-se, e bem, os arroubos autoritários a que o clima de excepção convida. Tudo isto está certo e pouco importa quem o diz. Ao mesmo tempo, se não precisamos – e eu creio que não precisamos – da filosofia para perceber tudo isto, cabe então perguntar: o que pode a filosofia nos tempos que correm? Como se expressa e em que medida é útil o seu distanciamento na proximidade a que a intervenção no espaço público obriga?

O erro e a pergunta de Agamben
Detenho-me nos pronunciamentos recentes de Agamben, que tanta polémica têm gerado. Antes, porém, de incidir sobre a sua pergunta, detenho-me no seu erro. Qual foi o erro de Agamben? Quanto a mim, este consistiu, muito simplesmente, em abordar o problema da pandemia como se tivesse uma certeza acerca da sua (não-)gravidade. Foi um erro, porque o filósofo não tinha nem tem como saber quão grave é a pandemia. Ponto final. Agamben, entretanto, emendou a mão. O último texto que publicou abre justamente com a indicação de que “as reflexões que se seguem não dizem respeito à epidemia, mas ao que podemos compreender das reacções dos homens relativamente a esta”. Agamben prossegue, enunciando a pergunta que me interessa realçar:
«Trata-se de reflectir sobre a facilidade com que uma sociedade inteira aceitou sentir-se contaminada, isolar-se em casa e suspender as suas condições normais de vida, as suas relações de trabalho, de amizade, de amor e até mesmo as suas convicções religiosas e políticas. Porque não tiveram lugar, como era possível imaginar e como habitualmente sucede nestes casos, protestos e oposições?»
Não vou discutir a hipótese sugerida por Agamben: que a “peste” já existia, ainda que inconscientemente, como desconforto com um modo de vida profundamente errado. Vou antes considerar a pergunta, que considero certeira. Dizer de uma pergunta que é certeira pode gerar perplexidade. Afinal, como pode uma pergunta ser certeira independentemente da resposta? Ora, é exactamente isso – que uma pergunta pode ser certeira independentemente da resposta, como creio ser a que Agamben faz neste texto – que gostaria de sublinhar, a fim de tecer algumas considerações mais gerais sobre o papel da filosofia nos tempos que correm.
Há perguntas cuja relevância consiste em perspectivar a própria actividade questionadora não só como “causa” mas também como “consequência”. Não se trata apenas de discutir o método – se é ou não válido ou coerente – que conduz à obtenção de respostas. Trata-se, antes disso, de perguntar: que experiências, que anseios, que traumas, que temores nos levam a fazer uma pergunta, a privilegiar esta pergunta em detrimento doutra, a responder desta ou daquela maneira, ou a exigir que para determinada pergunta se encontre resposta imediata? Logo, trata-se também de perguntar: que questões deixam de ser levantadas quando toda a atenção está voltada para obter a resposta a uma única pergunta?
Por estes dias, parece claro que a pergunta “como e quando nos livraremos da pandemia?” se tornou hegemónica ao ponto de nos fazer esquecer – ou mesmo de nos fazer querer calar – outras perguntas. Esse não é o menor dos perigos da situação que enfrentamos. E quem sabe se não é maior do que a própria pandemia.
É por pôr o dedo nessa ferida – no perigo de nos deixarmos cegar por esse mono-questionamento – que a pergunta de Agamben é certeira. E é-o, consequentemente, por sugerir que a única forma de lidarmos de forma lúcida com a pergunta que nos assalta passa por resistirmos à tentação de desistir de tudo – da liberdade, do amor e da coragem de fazer outras perguntas – e tudo deixar nas mãos da primeira entidade, instituição ou discurso que pareça prometer uma resposta, um antídoto, se não contra o vírus, contra o temor que a incerteza em relação a ele gera.
É que no coração da pergunta – como e quando nos livraremos da pandemia? – o medo de não saber, de ainda não saber, de saber tarde de mais, grita mais alto do que a vontade de conhecimento. A pergunta está assustada. A pergunta impacienta-se, irrita-se com quem pensa noutra coisa e faz outras perguntas. Por fim, a pergunta não quer aceitar qualquer resposta.

Ciência e filosofia
Eis o paradoxo em que mergulhou a doxa mundial. Por um lado, rejeita-se o obscurantismo e dá-se a palavra à ciência; por outro lado, recusa-se, não sem dogmatismo, que esta possa ter dúvidas. É preciso ser muito claro neste ponto: para enfrentar uma pandemia, é, sem dúvida, à ciência que se deve dar a palavra. Mas esta não fala a uma só voz. Não tem, não tem ainda, não pode ter ainda certezas. Não só porque não tem como produzir uma vacina da noite para o dia, mas também porque – eis aquilo em que praticamente ninguém ousa pensar e muito menos dizer – se divide sobre qual a melhor forma de controlar a pandemia.
É talvez insuportável pensá-lo hoje, mas a verdade é que não sabemos – não há, lamento muito, consenso entre os cientistas, uns julgam que sim, outros julgam que não – se a estratégia adoptada na maioria dos países é, de facto, a mais eficaz. Sugerir isto provoca escândalo. É tão terrível imaginar que o esforço feito possa ser em vão ou contraproducente, que evocar essa possibilidade é amiúde interpretado como um ataque à ciência.
Mas não é, antes pelo contrário. É a própria ciência que tem, que não pode deixar de ter dúvidas e que, por isso, se divide na forma de procurar ultrapassá-las, testando esta ou aquela hipótese, privilegiando estes ou aqueles dados. Dizê-lo não é atacar a ciência, mas defendê-la da pressão que a avidez de certezas gera. Nisso, as perguntas da filosofia, muito longe de porem a ciência em causa, reclamam para ela uma margem de manobra fundamental.

Como se o medo não pudesse tanto
O pânico é como o napalm. Há quem pareça respirar melhor ao sentir o seu aroma pela manhã: profetas da desgraça para quem a ciência é um jogo do preço certo; oportunistas da bolsa e das vendas a retalho; fascistas e atiçadores de cães de guarda – tudo gente para quem o horror, desde que sirva para recolher os louros de salvador da pátria, levar dinheiro ao bolso ou pôr o povo na ordem, é motivo de regozijo.
Como o napalm, o pânico espalha-se de modo devastador. E, tristemente, tem-se revelado mais contagioso do que muitos esperávamos. Das melhores cabeças emergem conselhos de obediência cega: há que acatar o estado de emergência, há que prestar atenção ao que diz a ciência. Não é o conteúdo, mas o tom destes reptos – daí realçar os verbos utilizados – que surpreende. E a zanga. A zanga com o corredor de jardim, a zanga com o carro avistado na ponte. “São assassinos!” – diz-se. Diz-se e pensa-se. Pois, mesmo em silêncio ou expressando-se com calma e sensatez, o medo sequestra os seus porta-vozes.
Os tempos que correm são tempos de incerteza. Mas não de uma incerteza qualquer. Uma incerteza que ameaça de imediato, agora, já, e sobre a qual, portanto, não há tempo para pensar. Quando a pandemia passar, e tudo continuar a desmoronar-se, veremos talvez como o maior perigo é a cedência inconfessada ao medo: pois a vontade de certeza a qualquer preço é também a hipoteca do pensamento e, com ele, de uma vida digna de ser vivida.
A filosofia existe como se o medo não pudesse tanto. Eis o escândalo: distancia-se, mesmo em tempos de catástrofe, como se ainda houvesse tempo para pensar.


João Pedro Cachopo
Formado em musicologia e filosofia, João Pedro Cachopo é investigador do CESEM e professor convidado na NOVA-FCSH. É o autor de Verdade e Enigma: Ensaio sobre o pensamento estético de Adorno (Vendaval, 2013) e co-editou Estética e Política entre as Artes (Edições 70, 2017) e Rancière and Music (Edinburgh University Press, 2020).

Ficha Técnica
Data de publicação: 14.04.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •
Caderno #8 • Epidemos