“C’est la guerre...” - Os políticos e os
comentadores apressaram-se a etiquetar com contornos bélicos o impacto do novo
coronavírus nas infraestruturas de reprodução da vida social, política e
económica dos estados modernos. Perante um “inimigo invisível”, a sociedade
cerrou fileiras, escolheu os seus soldados (os profissionais de saúde, os
funcionários do estado, os trabalhadores logísticos) e reuniu-se em torno dos
seus líderes políticos, unanimemente tidos enquanto os únicos capazes de conduzir
o navio para além do alcance deste adamastor microscópico.
Os telejornais que semanalmente
nos mostravam exemplos de novos e corajosos “empreendedores”, de pessoas que
eram capazes de arrancar a qualquer consideração social e colectiva o seu
desejo de lucro e riqueza, de pessoas para quem “a sociedade” apenas “não
existia”, mostram agora as mesmas caras a redireccionar o seu capital produtivo
para as novas e urgentes necessidades da pandemia. A profusão de apps de
compras online e merditas para melhor espalhar compota na torrada deu lugar a
um socialismo dos meios de protecção. Na SIC notícias, os betos fazem-se filmar
nas suas fábricas, laborando com os seus operários na produção de viseiras
transparentes.
A publicidade, antes incógnita
no meio da selva metropolitana de imagens e ecrãs, “politizou-se” e passou a
falar dos eventos do mundo real, deixando de apresentar a realidade paralela do
eterno presente do mundo das mercadorias. As grandes superfícies comerciais
agradecem aos “seus colaboradores”, como se estes tivessem alguma escolha para
lá do trabalho ou da miséria. Os seus pósteres, expostos nas ruas desertas e
abandonadas, fazem lembrar cartazes de wanted deixados ao vento e ao pó
nos velhos westerns ou a anacrónica iconografia soviética a envelhecer
nas paredes das aldeias evacuadas da Ucrânia. Numa intuição talvez ainda
silenciosa e privada, é já óbvio para todos que a pastoral económica que todos
os dias nos é enfiada goela abaixo é um boneco animado a correr no vazio, e que
o apelo consensual de que “vai tudo ficar bem” é apenas um auspício sombrio da
crise que vem.
Todas as narrativas de
glória e de legitimação do poder político e económico encontraram o seu
corolário na ideia de que “estamos todos juntos no mesmo barco”. Uns, em casa,
na primeira linha das contradições económicas, psicológicas e sociais destas
vidas que vivemos, outros, para o bem dos primeiros, na primeira linha da
manutenção da possibilidade de uma vida em sociedade. Ou remamos todos ou vamos
todos ao fundo, os de cima e os de baixo, o capitão e o moço de convés, o
passageiro refastelado na suite e o escravo acorrentado na galé. A realidade
por trás de todo o entusiasmo começa a ser óbvia para todos: só estamos todos
no mesmo barco porque para que ele ultrapasse a tempestade e chegue a bom porto,
os de cima necessitam do trabalho e do sacrifício dos de baixo. A escolha que
nos é apresentada torna-se clara: não é entre confinamento e liberdade, entre
isolamento e imunidade, entre iniciativa privada e sentido de estado, pelo
contrário, trata-se simplesmente de escolher onde é que vais ser sacrificado pela
economia, se na tempestade, se na praia.
Se se torna necessário
um olhar e uma intuição capaz de ver para lá dos discursos de unidade nacional,
também é necessário perceber que, ao contrário do que seria imediatamente
aparente, o que dizem as empresas, o poder e os media não surge enquanto
mentira, enquanto conspiração, enquanto simples areia atirada para os olhos. Pelo
contrário, esta operação de propaganda cristaliza-se enquanto parte de um
processo de captura e aproveitamento de um movimento informal e difuso, mas
real, de solidariedade generalizada, que emerge de modo espontâneo e disperso
onde menos se espera. Por outras palavras, para que a crise não expluda na cara
de quem a gere, para que a crise possa ser aproveitada para materializar
dinâmicas de reorganização do poder e do capital já antes em curso, o poder
necessita de ser capaz de gerir não apenas as questões de saúde pública, não
apenas as questões de vitalidade económica, mas sobretudo as questões políticas
e sociais que emergem ao redor de qualquer alteração brusca nos modos de vida.
A interrupção vertiginosa de todos os dispositivos de reprodução social – a
escola, o trabalho, a organização social e afectiva da metrópole, o
funcionamento regular dos mecanismos soberanos de representação e governo –
corre o risco de libertar as forças contidas nos pactos sociais que sustentam a
estabilidade do sistema.
Este movimento real de
solidariedade expressa-se, de modo imediato e inconsciente, nos pequenos gestos
de empatia que surgem cada dia nas redes sociais e nos telejornais enquanto
“boa acção do dia”: a construção de máscaras para os vizinhos, os anúncios de
vão de escada onde os mais novos se propõe fazer compras para os mais velhos,
etc. Apesar do que têm de fugaz, efémero, e talvez até superficial, estes
pequenos gestos desenham o traço que percorre o que há de comum nas várias
instâncias de apoio mútuo que vão surgindo: a desmonetarização dos processos
de cuidado. Se uma das tendências global do capitalismo é a progressiva
comercialização de todas as relações sociais, então estes gestos invertem esse
processo: relações que previamente eram mediadas por dinheiro deixam de o ser,
passando a ser mediadas por um sentido comum de comunidade e amizade
Este processo
embrionário e informal de comunitarização do cuidado é extremamente perigoso
para o capital porque corre o risco de passar da bonomia dos gestos individuais
para a radicalidade dos gestos colectivos. O risco político inerente à situação
presente é que as iniciativas espontâneas de solidariedade ganhem consciência
de que em si poderiam constituir uma outra forma de organizar não só as
relações sociais, mas também as relações de produção e as relações de luta. Os
gestos de apoio mútuo, a cumplicidade que encontramos uns nos outros, o modo como
entendemos na necessidade de um cuidado comum um sentido diferente para o vazio
que se instalou nas nossas vida, podem deixar de constituir um pequeno gesto
individual para passar a constituir uma dinâmica de discussão prática de que
vidas queremos viver e que comunidades queremos construir no colapso que se
avizinha.
É por isso que todos os supermercados se
apressam a divulgar serviços de entregas de produtos a casa e que os pivots de
SIC se derretem a divulgar as notas dos vizinhos: porque estão cientes do risco
inerente à possibilidade de que esses gestos ganhem consciência de si, porque
estão cientes de que ou o sistema encontra modo de encaixar esses gestos dentro
das dinâmicas de reprodução da ordem vigente ou corre o risco de que estes
ganhem uma dinâmica para além da solidariedade.
É esse mesmo processo de
comunização que ocorre, de modo mais consciente, mais organizado, mas também
mais experimental, numa série de iniciativas autónomas que se desenham para lá
das esferas exclusivamente estatais ou privadas. Estas encontram óbvias
expressões nas esferas da militância e do activismo, mas não só. Se nas últimas
semanas surgiram uma mão cheia de iniciativas nos meios activistas – as
cantinas que surgiram em vários centros sociais das áreas metropolitanas de
Lisboa e do Porto e as brigadas de apoio cujos cartazes e grupos virtuais
pululam um pouco por todo o lado – também começaram a surgir notícias dos
processos semelhantes, mas menos publicitados, nos territórios periféricos dos
grandes centros urbanos, entre comunidades já a braços com situações de
excepção económica e política que antecediam o estado de emergência.
Estes exemplos não são senão
a materialização concreta de processos potenciais e difusos, latentes à
aceleração da história que vivemos. O gesto político necessário, neste momento,
é o de fomentar não só mais momentos de encontro e de desenvolvimento desses
gestos de solidariedade, mas conseguir que dentro deles seja operada uma
transição que transforme a caridade numa amizade política – que transforme as
relações comunitárias desenvolvidas na entreajuda numa potência comum capaz de
fazer com que as relações horizontais estabelecidas sem a mediação do dinheiro
se possam afirmar politicamente, enquanto potência política comum. O programa
possível é de uma comunitarização e radicalização dos processos de cuidado
comum, é defender a esfera do cuidado enquanto oposta às esferas da economia e
da política institucionais, às esferas da gestão quantitativa e palaciana da
nossa sobrevivência. Essa comunitarização e radicalização encontra a sua
possibilidade de concretização na capacidade que tivermos de dar uma orientação
antagonista ao poder que construímos todos juntos, na colocação desse poder em
sentido contrário e oposto aos que querem reconstruir um domínio do capitalismo
sobre as ruínas das nossas vidas.
Esse processo poderá
passar, em primeiro lugar, por conseguir opor as dinâmicas sociais de apoio
mútuo e de cuidado radical às instâncias comerciais que lucram com a
quarentena. Não faz sentido que milhares de pessoas estejam a oferecer o seu
tempo, o seu esforço, os seus conhecimentos, as suas habilidades e a sua
compaixão enquanto as gigantescas empresas de distribuição de alimentos vêm
aumentar exponencialmente os seus lucros devido ao confinamento das populações
à esfera doméstica. Não faz sentido estarmos a ajudar uns aos outros sem ser
pagos quando poderíamos estar a ajudar uns aos outros sem pagar. É necessário que
o grande comércio que permanece aberto comece a subsidiar as iniciativas
autónomas de apoio mútuo, e que essas iniciativas comecem a desenvolver as
estruturas necessárias para gerir de forma comum, horizontal e grátis o cuidado
que precisamos. Não se tratar de pedir ao Pingo Doce e ao Continente umas latas
de feijão para depois tirar umas fotos com os gerentes do supermercado,
trata-se de fazer quem que lucra com a crise pague caro e pague tudo.
De facto, estamos mais
juntos. Mas não estamos todos juntos. Pelo contrário: quanto mais encontramos
amigos e companheiros mais capacidade temos de perceber quem são os nossos
adversários. Os gestos e as redes de cuidado e de mútuo que estamos a construir
não são caridade nem são assistencialismo, são os primeiros passos de relações
sociais não mediadas por dinheiro que temos de direccionar precisamente contra
quem lucra com a nossa miséria. É esse processo que nos permitirá começar a
responder, juntos, a esta crise pandémica e às várias crises que
vivemos, questionando a própria forma como desejamos viver.
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Comuna de Arroios
A Comuna de Arroios é o nome que
encontrámos para dar a uma série de iniciativas informais de cuidado autónomo
em curso na zona de Arroios em Lisboa. Assina este texto não enquanto
organização formal, mas enquanto expressão temporária e parcial de um processo
de auto-organização em curso, que em muito transcende as pessoas que escreveram
estas linhas.
Ficha técnica
Data de publicação: 24.04.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •