A.
Estava eu doente? Recuperei? Foi o meu médico descoberto? Como me esqueci de
tudo?
B.
Agora sei que recuperaste: Saudável é aquele que não se lembra.
F. Nietzche, A Gaia
Ciência, 1882
[Os
vírus] lembram-nos, como o fazia S. Francisco, que nós humanos somos
inseparáveis do mundo natural. Na verdade, não existe “mundo natural”, é uma má
frase, artificial. Há apenas o mundo. A humanidade faz parte do mundo, tal como
fazem os vírus do ébola, as gripes e o HIV, o Nipah e o Hendra e o SARS, tal
como os chimpanzés e os morcegos e as civetas de palmeira e os
gansos-de-cabeça-listada, assim como o próximo vírus assassino –aquele que
ainda não detectamos.
Ou,
como reflecte Quammen após Prosper Balo ter partilhado um bloco de notas
privado com uma lista que incluia os nomes “Apollo”, “Cassandra”, “Afrodita”,
“Ulises”, “Orfeo” e primatas macacos derrubados pelo Ebola: “Pessoas e gorilas,
cavalos e antílopes e porcos, macacos e chimpazés e morcegos e vírus: Estamos
todos juntos nisto.”
Claire Panosian
Dunavan, The Tropical Bookshelf: This
Zoonotic World, 2013
Vivemos numa economia de risco, que criou uma
sociedade de risco.
O risco está desigualmente distribuído, mas
isto parece ser apenas mais uma experiência da vida nas democracias liberais.
Diariamente, tomamos também riscos que pouco têm que ver com as nossas próprias
escolhas e a nossa própria liberdade: os nossos empregos e o nosso rendimento
são inseguros, os sindicatos já não estão cá para nos proteger, organizarmo-nos
tornou-se perigoso, manifestarmo-nos pode ser fisicamente doloroso e resultar
na perda de partes do corpo ou da nossa liberdade, a nossa renda pode aumentar,
assim como os preços dos bens essenciais (que aumentam mesmo), os nossos
bairros podem tornar-se incomportáveis por causa da gentrificação. E onde
tínhamos bem-estar existe agora austeridade, cortes e mais riscos. Desde a
crise de 2008 sabemos que os bancos jogavam com o nosso dinheiro. Poupar
dinheiro é arriscado, investi-lo também e não o ter atira-nos para uma espiral
de dívida onde qualquer inconveniência se transforma numa desgraça. Contra a
ameaça do terrorismo, os estados-nação inventaram um novo capitalismo de
vigilância baseado no estado de excepção, que cria novos perigos sob o pretexto
de nos proteger. Isto providenciou um antecedente importante para o que está a
acontecer neste momento.
Porque pela primeira vez os estados-nação
decidiram que os seus cidadãos não podem
correr riscos. Em nome do Covid-19, as nossas vidas foram-nos retiradas.
Estamos todos trancados em casa, com o que quer e quem quer que esteja nela: as
crianças com deficiências, os parentes idosos, o marido violento. O
distanciamento social significa que cada mulher está destinada a trabalhos
domésticos infindáveis e exponencialmente mais exposta a sofrer uma lesão ou
uma morte violenta. Cada mulher tem de ensinar em casa os seus filhos e cuidar
de quem necessite, física ou emocionalmente, porque isso é o que ela tem feito
antes de estar trancada e agora já não pode ter sequer ajuda externa. É bonito
ouvir que as pessoas descobrem pérolas quando a situação pré-epidémica,
individual e des-socializada, lhes permite um retiro confortável com uma
família agradável, mas isso não ajuda em nada o resto daquelas entre nós, que
tentavam tudo precisamente para escapar à normalidade que torna estes dias de
confinamento toleráveis. O entretenimento electrónico, mundo precioso de um
simultâneo isolamento e de uma idiotice hipnotizante torna-se útil e até
essencial no momento em que as notícias vomitam o contrário de informação:
contagens de mortos, instruções contraditórias, ausência de factos científicos,
acompanhamento psicológico ou legal relativamente ao que estamos a atravessar.
Apenas ordens para seguir. E é assustadora a quantidade de conteúdo digital que
é agora gratuita –porque era paga em primeiro lugar?
É importante, mas não é fácil, evitar ficar deprimido
e zangado, porque estamos a pagar o preço da austeridade: não podemos ser
curados, não podemos ficar doentes, portanto não podemos viver. “Lá fora, o
caixão, cá dentro, a televisão” [1]
como coloca brilhantemente Vanegeim, somos
ordenados a prosseguir o trabalho remotamente num pesadelo Orwelliano que
despreza completamente a situação biológica do confinamento. Tarefas como
comprar mercearias ou medicação podem demorar cinco vezes mais do que é
costume; tratar das tarefas domésticas e cuidar das crianças ocuparão o resto
do dia, tanto para as mulheres como para os homens. Escrever e concentrarmo-nos
torna-se um desafio. Pensar com clareza sem sair de casa ou sem tocar em alguém
durante semanas terá com certeza um impacto negligenciado na produtividade de
qualquer um: estar ligado à Internet não é garantia de estar em condições de
cumprir, e cumprir o quê exactamente?
Que mundo profissional esperará aqueles que
conseguiram até agora manter os seus empregos, algumas poupanças, e não
acabaram ainda na pobreza profunda? E, porém, a raiva é ilegítima e vergonhosa
quando comparada com as condições de médicos e enfermeiras e daqueles que
perderam pessoas próximas e que não podem sequer despedir-se delas e abraça-las
uma última vez.
Mas como é então possível aceitar que num
mundo globalizado onde os vírus viajam à velocidade da luz de um continente para
o outro, todos os governos estivessem tão mal preparados depois de assistir à
crise em Itália, adiando o distanciamento social em todos os outros países,
proclamando dogmas duvidosos sobre a imunidade de grupo para um vírus cujo
comportamento ainda ninguém compreende, fingindo que este acabaria por
desaparecer ou que todos temos de fazer sacrifícios porque estamos a atravessar
uma guerra? (E porque é que a guerra haveria de estar a começar agora? Isto é
apenas outra batalha, outra carnificina.)
Um capitalismo que tem posto o mundo em risco
de colapsar perante a poluição, a desflorestação, a asfixia dos oceanos, a
incineração de florestas, a exploração brutal de tudo o que vive, chegou de
repente a uma paragem obediente porque os estados-nação assim o dizem. A doença
do planeta, a raiva das Sextas-Feiras Pelo Clima, da Extinction Rebellion, os
custos humanos e económicos das catástrofes naturais não alteraram o business as usual, mas foram ignoradas e
contidas com força militar. Três anos de lutas sangrentas e incessantes por
toda a França deixaram, em Janeiro de 2019, de acordo com o Libération, 144 manifestantes gravemente
feridos (números que aumentaram sem registo, entretanto). Um ferido grave,
clarificam os jornalistas, é definido como tendo “partes do corpo dilaceradas,
órgãos que perderam a sua funcionalidade, ossos fracturados, pés e pernas
penetrados por fragmentos de granadas, queimaduras graves, mas também feridas
abertas na cabeça.” [2]
E, no entanto, experienciamos nestes dias uma
nova temporalidade que é estranhamente familiar para muitos de nós. Lentidão,
baixa produtividade, ensino em casa e ter de preparar as suas próprias
refeições faziam já parte do dia-a-dia da maioria das pessoas que conhecemos. Ficamos
apenas despidos de toda a liberdade para nos encontrarmos, de modo a tornar
esse modo de vida sustentável. O que acontece à empatia durante o confinamento?
O que acontece à empatia com os doentes? Ao luto? O que acontece ao desejo? De
acordo com Preciado, “Nesta nova realidade, aqueles entre nós que perderam o
amor ou que não o chegaram a encontrar a tempo – isto é, antes da grande
mutação do COVID19 – estaríamos condenados a passar o resto das nossas vidas completamente
sozinhos” [3]. E as gerações mais novas, já desconfortáveis com a
realidade não-fotogénica dos corpos, poderiam tornar-se germofóbicas e
habituadas a considerar a fisiologia dos outros uma ameaça revoltante, a
proximidade da sua respiração, as gotículas que pairam no ar enquanto perigos
latentes. Ir ao cinema, ao teatro, viajar por lazer e simplesmente viver uma
vida colectiva poderão perder para sempre o seu apelo, sob efeito induzido de
uma hipocondria de massas.
3. Paul
B. Preciado, “The Losers Conspiracy,” Artforum, 26 de Março de 2020.
Em “Why Social Distancing Won’t Work for Us”,
OluTimehin Adegbeye descreve alegremente a vida quotidiana em Lagos:
instalações partilhadas, cozinhas e casas de banho partilhadas, multidões que
passam as noites no exterior, transportes públicos sobrelotados. “Sim, o
distanciamento social é uma solução de confinamento válida para o novo coronavírus”,
escreve. “Mas é uma solução que não compreende uma realidade extremamente
generalizada em África: as pessoas sobrevivem com dificuldades ao
aproximarem-se enquanto comunidade de cuidados, e não ao afastarem-se e
retirarem-se no individualismo.” [4]
4. OluTimehin Adegbeye, “Why Social
Distancing Won’t Work for Us”, The
Correspondent.
Há de facto algo repugnante em salvar a
própria vida utilizando aparelhagem de protecção improvisada para nos
aventurarmos num mundo em que é preciso mantermo-nos afastados dois metros de
qualquer transeunte, ou de qualquer pessoa num supermercado.
Como Agamben notou correctamente, é uma vida
reduzida à sobrevivência animalesca: “Os humanos
estão tão habituados a viver numa condição de crise e emergência permanente que
já não se apercebem que a sua vida foi reduzida a uma condição puramente
biológica, e que perdeu qualquer dimensão, não só social e política, mas também
humana e afetiva.” [5]
5. Giorgio Agamben,
“Chiarimenti,” Quodlibet (versão portuguesa em Situação).
Entretanto, a relação biológica entre
humanos explodiu; se a empatia não viaja através de nós, as doenças sim, cruzam
os nossos corpos e estilhaçam quaisquer ilusões de separação. A continuidade
que recusamos ver de uma classe para
outra, dos homens para as mulheres para os trans, é fisiológica. A comunidade
humana marxiana revela a sua fundação biológica, sem fronteiras e sem classes.
As bolsas separadas, cuidadosamente construídas para excluir pessoas da
sociedade, revelam a total continuidade com as nossas vidas: o hospital, a
prisão, o campo de refugiados, fazem parte do tecido partilhado do mundo. Terá
o Covid-19 sublinhado a fragilidade da condição humana e da necessidade
universal de ser cuidado e amado? A BBC reportou desde Idlib uma conversa com
uma residente do campo: “Sejamos sinceros: não temos água corrente, não podemos
lavar as nossas mãos.”
O regime de abstração científica tem sido
extremamente desapontante na tentativa de se informar correctamente sobre o
Covid-19. Um vírus que pode ser inesperadamente fatal, ligeiro nalguns casos e,
noutros, totalmente assintomático soa como uma má piada. No início da terceira
semana de confinamento, o materialismo mágico começou a fazer totalmente
sentido. Precisávamos de um entendimento sinestésico, físico e emocional do que
se estava a desenrolar. O próprio nó entre os nossos corpos e as plantas que
floresciam lá fora era a chave para o pânico: enquanto civilização, estamos a
comportar-nos de um modo que leva a natureza a ser mecanicamente frutífera,
surdos em relação às suas mensagens, enigmas, sinais que ressoam profundamente
com os nossos organismos e de outras espécies. Os céus limpos sobre Wuhan, as
águas turquesa do canal de Veneza e os os golfinhos perto de Cagliari são
manifestações de mudança momentânea de hábitos humanos, mas também o são os
animais selvagens que invadem os nossos quintais e os gatos e cães vadios
esfomeados que ficaram sem lixo para consumir. O que comemos esteve vivo, mesmo
se formos vegetarianos. “Deveríamos exigir”, afirma Rob Wallace numa entrevista
recente, “que os sistemas alimentares fossem socializados de tal forma que os
agentes patogénicos perigosos fossem impedidos de emergir, antes de mais.”
Enquanto não o fizermos, “os danos serão tão extensivos que se convertêssemos
esses custos em balanços empresariais, o agronegócio como o conhecemos seria
terminado para sempre.” [6]
6. Interview with Rob Wallace, “Where Did Coronavirus Come from, and Where
Will It Take Us?,” Uneven Earth, 12 Março de 2020.
Claire Panosian Dunavan escreveu em 2013:
«Não há como negar o nosso fascínio do século XXI – tão
incisivo como auto-protector – com as infecções zoonóticas emergentes. A minha
epifania aconteceu ao ler o livro de Karl Taro Greenfeld sobre o SARS. Na minha
análise para o Los Angeles Times “China Syndrome: The True Story of 21st
Century First Great Epidemic”, procurei descrever as fronteiras frágeis
entre a vida humana, animal e viral: “Imaginem a província de Guangdong, por
volta de 2002 – terra da sorte e da prosperidade”, começava eu. “’Enriquecer é
glorioso’, havia proclamado Deng Xiaoping anos antes, abrindo a porta a uma nova
era de empreendimentos. Agora, no sul da China, a música retumba, os telemóveis
tocam, o fumo dos cigarros desdobra-se, e magnatas cheios de dinheiro consomem
todo o tipo de carne exótica, da bossa do camelo à orelha do pangolim. A paixão
crescente por ‘Sabores Selvagens’ fez despontar um comércio florescente. Em
armazéns abarrotados, matadouros e cozinhas de restaurantes pegajosos de
entranhas e excreções, centenas de criaturas enjauladas são destinadas a jantar
afluentes que aguardam ansiosamente o seu destino.” Bem-vindos ao tumultuoso terreno fértil da síndrome respiratória aguda
grave, uma infecção que em breve saltará das espécies animais para as pessoas.»
[7]
7. Claire Panosian Dunavan, “The Zoontic World,” American Journal
of Tropical Medicine and Hygiene 88, no. 4.
As epidemias têm uma estrutura narrativa, dão
origem a lendas e histórias com sinais e sintomas para decifrar. Os efeitos que
têm em cada pessoa são histórias com finais felizes ou, então, que acabam com o
final de tudo. Temos um “historial” de certa condição ou vulnerabilidade. É ao
manter a memória do primeiro encontro
com o vírus que o organismo se torna imune.
Em 1936, René Lerich –por altura da hecatombe
da Gripe Espanhola– declarou que a saúde é o silêncio dos órgãos. Portanto
escutamos.
E o corpo, desconhecedor da pandemia, não
fala, não está a construir defesas, não vê nada a chegar. Nós também não. Nem o
paciente zero, assintomático e contagioso, viajante inocente espalhando a morte
e a dor ao longo do seu caminho. Assim como o macho tóxico faz ao longo da sua
vida emocional.
Ele não se apercebeu, terá de facto causado
aquilo?
•
Claire Fontaine
Claire Fontaine é
um colectivo artístico sediado em Paris, fundado em 2004 por Fulvia Carnevale e
James Thornhill. Trabalhando em néon, vídeo, escultura, pintura e texto, o seu
trabalho pode ser descrito como uma interrogação contínua da incapacidade
política e da crise da singularidade que parece definir a sociedade
contemporânea.
Imagem
Claire Fontaine, I
do it because it’s right, 2014.
Nota da edição
Ficha Técnica
Data de publicação: 22.04.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •