Há
alguns anos, foi acrescentada uma pequena barraca à casa da minha avó.
Acrescentaram-se algumas tábuas sobra as vigas e entre essas tábuas e o telhado
existia um pequeno sótão, que nunca era ocupado a não ser por ratos e
ratazanas... Não existiam entradas para o ar ou para a luz. O meu tio Phillip,
que era carpinteiro, tinha habilmente construído um alçapão escondido, que
comunicava com os arrumos... Foi para este buraco que fui atraída mal entrei na
casa. O ar era sufocante; a escuridão era total. Tinha sido estendida uma cama
no chão... Os ratos e as ratazanas corriam sobre a minha cama; mas estava
cansada, e dormi um sono como o dos miseráveis, assim que uma tempestade passou
sobre eles...
Foi assim que Harriet
Jacobs descreveu o seu retiro na
autobiografia publicada em 1861. Baseando-se em Jacobs, Simone Leigh
convidou-nos a transformar esse retiro num símbolo de fortitude, resiliência e
de agenciamento para mulheres negras. Reflectindo sobre as palavras deste
convite poderoso, gostaria de pensar sobre as práticas históricas de
dissimulação e de retirada levadas a cabo pelos povos negros para protecção das
suas vidas, para reunir força, para sobreviver, para inventar formas de criar
laços e famílias, e de preservar o amor num mundo desamado – um mundo que
transformou a morte de pessoas negras em mercadoria. Quando tinha catorze anos
organizei uma série de caminhadas com um grupo de amigos, que duraram duas ou
três semanas, pelas montanhas onde vivia na ilha da Reunião, uma colónia
francesa desde o século dezoito e, posteriormente, um território ultramarino
Francês, desde 1946. Queria descobrir um mundo que carrega consigo os nomes malgaxe
dos quilombolas que rejeitavam os nomes com que os senhores de escravos os
tinham marcado, enquanto objectos de comércio. Estes atribuíam a si próprios
nomes que expressavam recusa e sonhos de liberdade: Tsimendef (de Tsi Mandevi, que significa “não sou
escravo”), Mafate (de Mahafaty, que
significa “aquele que mata”), Dimitile (da palavra malgaxe para “vigia”),
Tsilaos (de Tsy ilaozana, que
significa “um espaço que não se abandona”), ou Anchaing e Heva. Por sua vez,
como um rosário criado na esperança de afastar o mundo negro da liberdade,
foram atribuídos às cidades costeiras nomes que contam igualmente a história de
cumplicidade entre o poder colonial e a igreja Católica: Saint Paul, Saint
Pierre, Sainte Suzanne, Sainte Denis, Sainte Marie, etc.
Apesar de séculos de silêncio
imposto sobre as lutas contra a escravidão e a escravatura, ao inscrever os
seus nomes na ilha os quilombolas mantiveram a sua presença viva, mantiveram a
sua marca mais forte do que o negacionismo colonial. Esta era a história que eu
procurava enquanto caminhávamos por trilhos empoleirados, imaginando as
mulheres e os homens que haviam escapado às plantações, deixando para trás o
mundo do trabalho forçado, da servidão, da brutalidade, da morte. Vendo-o sem serem
vistos. Talhando espaços de liberdade num mundo organizado pela falta de
liberdade dos negros; um mundo que proclamava não existir alternativa à
escravização das mulheres e dos homens negros, que isto era tão natural como o
dia e a noite.
O abandono, fosse por
horas, dias ou décadas, rompia com esta naturalização e afirmava existir uma
alternativa. Observando desde o topo das montanhas, os quilombolas faziam
sentir a sua presença; a sua simples existência ameaçava a ordem colonial. O
poder colonial levava a cabo uma longa guerra contra eles recorrendo a
caçadores que cortavam as suas orelhas para provar que estes tinham sido
mortos, ou trazendo-os de volta para um castigo público: torturados,
desmembrados, marcados na cara, enforcados, queimados vivos. Porém, estes nunca
se renderam do seu retiro.
A história dos
quilombolas, que me foi ensinada em casa, foi a minha primeira lição sobre a
criação de espaços de liberdade, apesar do facto de existir uma ideologia que
reduzia os corpos negros a mercadorias e tornava a lógica do assassinato numa
norma e numa política de extinção. Aprendi ainda que criar espaços de liberdade
dependia da paciência e de uma espécie de coragem rara, que as mulheres negras
demonstraram historicamente. As suas histórias iluminam outra temporalidade
para além da temporalidade masculina e ocidental do progresso, da derrota,
vitória, e triunfo sobre a matéria, de todos os processos que são entendidos
através da submissão imposta, da destruição de todo e qualquer obstáculo, numa
palavra, da devastação. Nos espaços e nos lugares onde a supremacia branca
requere a performance de rituais diários de humilhação, de adestramento dos
corpos e de todos os tipos de matéria, a prática de reivindicar um retiro
significa criar as suas próprias formas de liberdade, de resistência,
perseverança, fortitude, assim como de esperteza; significa aprender a fazer-se
de estúpido, surdo e cego para recolher informação e distrair aqueles no poder.
Quando penso na brecha
criada pelo retiro, penso na doméstica escravizada que tinha de permanecer
silenciosamente por detrás da sua senhora, que tinha de vesti-la e despi-la,
lavá-la e cuidar das suas crianças, sempre tomada por estúpida e imbecil, mas
que observava e aprendia sobre a sua vaidade, a sua presunção e a sua maldade,
tudo isso mascarado por um véu de fraqueza e fragilidade. Ela pretendia não
ver, mas via, ela pretendia não ouvir, enquanto recolhia os factos. Penso
também na história intelectual das revoltas de escravos, tal como relatada pelo
historiador Julius S.Scott em The Common
Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution (2019),
que conta a história das redes intercontinentais e inter-ilhas nas Caraíbas que
permitiram ligar as comunidades escravizadas e assegurar a transmissão rápida
de motins e insurreições.
Como as feministas
negras demonstraram continuamente ao longo de anos, se o sujeito universal da
historia da classe trabalhadora é o homem branco, o da classe trabalhadora
negra é sempre o homem negro. No entanto, a economia da escravatura e do seu
comércio foram fundadas sobre a capacidade dos corpos das mulheres negras para
reproduzir o capital. Em África, as mulheres carregaram no seu corpo, durante
séculos, crianças que eram posteriormente roubadas, capturadas, e atiradas para
o turbilhão do comércio de escravos. Nas colónias europeias, as mulheres negras
eram violadas para alimentar a indústria da criação de escravos. Os úteros das
mulheres negras foram transformados em capital e as suas crianças transformadas
em moeda. A acumulação primitiva assentava sobre a produção de terrenos
devastados e dos corpos descartáveis das pessoas de cor. Toda a pirâmide da
economia transnacional assentava sobre a exploração dos úteros das mulheres
negras e a extracção do seu trabalho. A violação era não só uma demonstração do
poder masculino branco, como era também um elemento central no processo de
acumulação do capital. Os negros eram proibidos de estabelecer laços e criar
famílias, enquanto que o modelo burguês da família patriarcal branca era
exaltado.
A escravidão e o
colonialismo devastaram terras e pessoas. Eles destruíram as palavras culturais
e naturais dos povos indígenas e transformaram alguns humanos em lixo. O
tráfico de escravos acarretava imundície, desolação e morte. Os navios negreiros
eram um espaço de putrefacção, fezes, sangue, e carne apodrecida pelos grilhões
da escravidão. Quando um odor nauseabundo dava à costa, as pessoas sabiam que
um navio negreiro se aproximava. A raça tornou-se um código para designar
pessoas e paisagens que podiam ser devastadas. A carne e os ossos dos corpos
negros e indígenas misturavam-se com a terra nas plantações e nas minas de
prata e de ouro. A ideia Ocidental de que o continente Africano era uma fonte
ilimitada de trabalho barato andava de mão dada com a concepção Ocidental da
natureza como algo ilimitado, que existe para servir o “Homem”, isto é, o homem
branco e Cristão, de modo a satisfazer a sua ganância e o apetite insaciável
por ouro, prata, café, açúcar, algodão. A Natureza tinha de ser dominada e
disciplinada, fabricada para o prazer do burguês branco.
A
economia extractivista é baseada numa economia de exaustão da terra, dos corpos
negros e mestiços, da água e do ar. Em A
Billion Black Anthropocenes or None (2019), Kathryn Yusoff examina como a
gramática da geologia é fundacional para estabelecer as economias
extractivistas da vida subjectiva e da terra sob o colonialismo e a escravidão.
Existe uma solidariedade
material e temporal entre a inscrição da raça no Antropoceno e a actual
descrição de sujeitos que são apanhados entre o endurecimento das fronteiras
geopolíticas e na desestratificação material do território...
Os passos em direcção a uma
noção mais expansiva de humanidade devem ser dados com cuidado. Não podem ser
baseados na suposição que a emancipação é possível uma vez que os “outros
racializados” e as suas vozes sejam finalmente incluídas na realização desta
universalidade, mas sim baseados no reconhecimento de que estes “Outros” estão
desde logo inscritos na fundação da formulação do universal como um espaço
privilegiado de subjectivização. [1]
1. Kathryn
Yusoff, A Billion Black Anthropocenes or None (University
of Minnesota Press, 2019), p. 62; p. 50.
Hoje
em dia, as alterações climáticas têm sido discutidas nos termos de uma crise,
tornando necessária uma limpeza do planeta; mas por quem e para quem será o
planeta limpo? Ar puro, água limpa e espaço limpo foram sempre distribuídos ao
longo de linhas segregadoras. A divisão espacial colonial/racial prefigurou o
mundo no qual vivemos: para os ricos, ficam os parques verdejantes e
branqueados, a água limpa, os espaços
de lazer, os pássaros e as flores; e os pobres, negros e mestiços ficam com a
água suja, o ar poluído, o solo poluído. Nesta velha e nova configuração, como é que teorizamos o trabalho das mulheres
negras nas indústrias da limpeza e dos cuidados?
Com
este texto, pretendo considerar como o trabalho de limpar e cuidar,
historicamente ligado à mulher negra, está a ser organizado sob o actual regime
do patriarcado e do neoliberalismo, que professa que cada indivíduo possui
capital que deve aprender a frutificar, e que esta capacidade de empreendimento
permite que qualquer pessoa possa transcender a raça, o género, a sexualidade,
e a sua origem, desde que a lógica do
neoliberalismo seja adoptada. O que nos leva a outra questão: como
desenvolvemos uma política de visibilidade
e invisibilidade, tanto para lutar abertamente como para construir espaços
de retirada, longe do constante olhar racista e sexista da vigilância e do controlo
do Estado?
Como escrevi
anteriormente este ano:
Diariamente, em
todos os centros urbanos do mundo, milhares de mulheres negras e mestiças,
invisíveis, “abrem” a cidade. Limpam os espaços necessários para que o
neo-patriarcado, o capitalismo neo-liberal e a finança possam funcionar...
Normalmente, [estas mulheres] viajam longas horas de manhã cedo ou noite
dentro, e o seu trabalho é mal pago e considerado não qualificado... Um segundo
grupo, que partilha com o primeiro uma intersecção de classe, raça e género,
vai para as casas da classe média cozinhar, limpar, e tomar conta das crianças
e dos velhos, para que os seus empregadores possam ir trabalhar para os espaços
que o primeiro grupo de mulheres limpou. [2]
Há
muito que as feministas negras estudam a racialização e feminização do trabalho
doméstico, e mostraram que a reivindicação das feministas brancas por trabalho
fora do lar demonstra o seu preconceito classista e racial, antes de tudo
porque as mulheres negras sempre trabalharam e, em segundo lugar, porque as
suas aspirações não poderiam ser realizadas sem que as mulheres negras tomassem
conta das suas crianças, das suas casas, do lixo, da roupa suja, da comida.
Enquanto
limpar e cuidar se tem tornado uma indústria em crescimento, à medida que as
superfícies dos espaços de negócios têm aumentado em todo o mundo, o trabalho
necessário para manter estes espaços deve ser mantido invisível. O trabalho, os
corpos, a exaustão – todos devem ser mantidos escondidos. Mulheres que limpam
os hotéis Europeus alegam que estão proibidas de beber água quando limpam os
quartos; não podem usar os quartos de banho; estão proibidas de falar para os
hóspedes ou de falarem entre si. Os danos causados aos seus corpos e à sua
saúde – aos seus joelhos, aos seus punhos, às suas costas; a inalação de
químicos, suportarem objectos pesados – não são considerados relacionados com o
trabalho. A violação é frequente e generalizada.
Nesta
economia simbólica e material, as vidas das mulheres negras e mestiças foram
tornadas precárias e vulneráveis, mas a fabricação da sua superfluidade anda de
mão dada com a necessidade da sua existência e da sua presença como cuidadoras
e trabalhadoras da limpeza. É-lhes permitido entrar nas casas privadas e nos
espaços de trabalho. Mas outros membros destas comunidades supérfluas – tais
como as famílias e os vizinhos destas trabalhadoras – devem ficar atrás dos
portões, a não ser que estejam dispostos a correr o risco de serem mortos pelo
Estado e pela violência policial, entre outras formas de militarização dos espaços
verdes e espaços públicos, pelo bem dos ricos. Para estes trabalhadores, a
permissão especial para entrar é baseada na necessidade do seu trabalho e na
sua invisibilidade.
Quando
as mulheres de cor entram pelos portões das nossas cidades e dos seus edifícios
vigiados, muito frequentemente, elas fazem-no enquanto espectros. Mulheres negras e mestiças podem circular pela cidade
branca, mas muitas vezes como uma presença apagada. As suas lutas são,
portanto, fundamentais, visto que aglomeram temas como a migração, a raça, o
género, a riqueza, numa dialéctica entre limpo/sujo, num mundo neoliberal em
tempos de “crise”. A crítica das economias da exaustão e da extracção, e a
questão das necessidades da limpeza e dos cuidados, deve ser ligada. Quando
fazem greve, a partir de um posto de observação privilegiado, estas formulam
uma crítica de um mundo em que a medida da riqueza assenta na produção lixo,
degradação e desperdício. Fred Magdoff e Chris Williams argumentaram que o lixo
é “um sinal do sucesso do capitalismo”, mas a luta das mulheres negras contra
os modos como o trabalho de limpeza/cuidados é organizado e racializado
contribui para a emancipação de todos.
O
trabalho das feministas negras tem sido essencial para desvelar a fundação
racial da reprodução social da limpeza e dos cuidados. Na era actual, que vê
uma nova política racial da limpeza produzida pela ansiedade gerada em torno
daquilo a que os meios de comunicação chamam crise climática, as sociedades
humanas não poderão sobreviver sem esse trabalho de limpeza e de cuidado.
Contudo,
este trabalho sempre foi considerado secundário e reservado às mulheres negras
e mestiças. Estas, com o vasto conhecimento que construíram a partir do que
observaram por décadas e ao longo de séculos de prática, sabem exactamente o
que uma política decolonial de limpeza e de cuidado (isto é, de reparação) pode
ser: uma limpeza e reparação descolonizadora da devastação que foi causada no
passado.
•
Françoise Vergès
Académica independente, professora e activista feminista
decolonial. Entre mais de uma dezena de títulos, publicou recentemente “Un féminisme décolonial” (2019), nas
Éditions La Fabrique.
imagens
1. Cerimónia
e dança no Brasil, Zacharias Wagenaer, c. 1630.
2. Leilão de escravos, c.1853.
3.
Gone with the wind (frame), Victor
Fleming, 1939.
Nota de edição
O texto original de
Françoise Vergès foi publicado no jornal E-Flux
#105, em Dezembro de 2019. A presente tradução para a língua portuguesa foi
realizada por Maria Rebelo e João Paupério.
Nota dos tradutores
Numa altura em que o ‘abandono’
e a ‘desobediência radical’ do jogador profissional de futebol Moussa Marega – que
preferiu não continuar a jogar após uma série de insultos racistas colectivos e
reiterados – surgem como uma brecha de oportunidade por onde se poderá reabrir
uma reflexão profunda sobre a dimensão estrutural do racismo na sociedade
contemporânea, a tradução deste texto pretende contribuir para esse debate ao
desvelar a natureza de um processo que não é apenas cultural, como muitas vezes
se faz crer, mas que tem dimensões históricas e raízes indissociáveis da
ideologia dominante e da economia politica do sistema actualmente em vigor.
Ficha Técnica
Data de publicação: 27.02.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •