Elogio da indecência – instituições, cultura, crítica • Pedro Levi Bismarck




A polémica em torno do Teatro Municipal do Porto e da gestão do seu director, Tiago Guedes, na sequência dos textos e das denúncias de Regina Guimarães, de Tiago Correia e de Sara Barros Leitão, permite-nos avançar no sentido de uma reflexão que não se esgota neste caso particular, antes pelo contrário, parece-me uma constante no que diz respeito a um grande número de instituições da área da cultura, mas não só.
Aquilo que está em causa, tanto no espectáculo de Tiago Correia como de Sara Barros Leitão, é o facto de ambos procurarem construir um discurso crítico que visa as próprias instituições que os programaram. No primeiro caso, «Turismo», trata-se de uma reflexão em torno dos efeitos (negativos) das políticas de turismo promovidas pela Câmara Municipal do Porto, mas também, através do texto de Regina Guimarães, de uma crítica ao papel «instrumental» que a cultura desempenhou no processo de afirmação e legitimação da marca «Porto Ponto». No segundo caso, «(des)ocupação», tratava-se de uma reflexão crítica em torno da própria instituição do TMP (cujo exemplo paradigmático da tensão em torno deste projecto foi o «Salão dos Recusados» que se propunha a mapear os artistas cujas propostas tinham sido recusadas durante os últimos anos).
Independentemente dos vários intervenientes terem entretanto reconhecido que a não publicação do texto de Regina Guimarães constituiu um erro, aquilo que parece evidente é que continua a existir uma grande dificuldade por parte das instituições (e não se trata apenas do TMP) não só em aceitar a crítica (e a auto-crítica), mas em reconhecê-la como parte intrínseca, integrante e fundamental da sua função pública e da sua condição democrática.
O que é particularmente interessante na intervenção de Rui Moreira sobre esta questão é o modo como defendendo a pluralidade do TMP não deixa de reconhecer que algumas escolhas da programação vão «aos limites da nossa tolerância» ou até da «decência» (referindo-se a comentários de outros deputados municipais). Uma formulação cuja subtileza não está apenas no facto de nos relembrar que há realmente «limites», sem que seja preciso definir quais são; mas no facto de investir esses limites de toda uma carga moral e moralizante  «tolerância» e «decência»que é, na verdade, uma forma de os despolitizar, ou melhor, uma forma de neutralizar a função de (auto-)crítica que impende sobre a própria instituição.
Algo de semelhante se passou em Serralves com as fotografias de Mapplethorpe e com as pressões da administradora Ana Pinho junto do ex-director João Ribas, no sentido de retirar da exposição um conjunto de fotografias que, também elas, dizia-se, passavam todos os limites da «decência» e da «tolerância» (argumentário que, aliás, Pacheco Pereira fez o favor de levar até ao ponto de paródia). E se alguma coisa une estes dois episódios foi, precisamente, a dificuldade que estas instituições demonstraram em gerir a sua (auto-)crítica perante a revelação súbita dos seus próprios e inconfessáveis limites. Mas também não deixa de ser curioso que isto aconteça em duas instituições cuja marca pessoal é manifesta: no caso de Ana Pinho, assumindo um papel claramente «interventivo» na gestão cultural do Museu de Arte Contemporânea; no caso de Rui Moreira, fazendo da cultura um sector estratégico do seu mandato (note-se, aliás, que desde a morte de Paulo Cunha e Silva, Rui Moreira acumulou as funções de vereador da cultura).
De qualquer modo, aquilo que podemos observar em muitas instituições é não apenas a sua dificuldade estrutural em aceitar e mobilizar um discurso crítico-de-si, mas sobretudo como as tácticas de poder e de gestão (ainda para mais num mundo onde a precariedade laboral é cada vez mais a regra) procuram a todo o custo neutralizar os vários exercícios de crítica através dos pequenos medos, das pequenas chantagens, dos pequenos silêncios. Em muitos casos, as lógicas de luta interna dentro das instituições muito rapidamente fizeram esquecer a sua dimensão pública. Em muitos casos, essas instituições deixaram de assegurar mecanismos importantes de participação e igualdade democrática, impondo hierarquias rígidas, protocolos burocráticos e direcções centralizadas, em nome da eficiência e da gestão financeira – por exemplo, o caso das Universidades.
Ora, o capitalismo desde cedo percebeu que a esfera da cultura (e da arte) seria tanto o palco de gestão das suas próprias contradições e do conflito social, como o palco de gestão da liberdade de expressão. Mas isso significou estabelecer todo um conjunto de limites específicos. Esses limites são objecto permanente de uma batalha pelo seu controlo, mas também pela sua dissolução. E como é óbvio, qualquer gesto de atravessamento desses limites representa sempre um perigo: há sempre um conflito novo que se abre, há sempre uma potência nova que se liberta, um acontecimento que é dado a ver e que se torna compreensível. Se há uma afinidade entre arte e democracia é essa: uma condição que se define não na imposição de um consenso, mas na exposição de um dissenso – enquanto espaço de abertura de um potencial de conflito.
Afinal de contas, parece interessante que Sara Barros Leitão admita plenamente a contradição de um projecto que se propunha a uma «ocupação» legal do Teatro Rivoli. Não deixa de ser irónico, porém, que este projecto tenha acabado por cumprir o seu propósito crítico na medida em que não foi levado a cabo.
Enfim, os acontecimentos a que vamos assistindo, um pouco por todo o lado, evidenciam duas «crises». Por um lado, uma progressiva crise de democracia das instituições e dos seus processos de crítica e auto-crítica, que se consubstancia numa rarefacção de libertação de espaços de existência plurais e potencialmente conflituais dentro e contra as estruturas de poder. Por outro lado, uma crise do modelo de cultura que as instituições mobilizam actualmente, cada vez mais esvaziado e empobrecido pela fórmula do entretenimento (sobretudo na era do turismo de massas) e pelas lógicas da gestão financeira das bilheteiras: que envolvem muito branding, muito sponsor e muito marketing. Em todo o caso, tudo isto traduz a não-disponibilidade e a incapacidade crescente das instituições para mobilizar um discurso de crítica que vise expor realmente os conflitos que atravessam o corpo social e a violência das actuais políticas neoliberais, que vise interpelar o contínuo policiamento moral desses limites e o próprio papel e posição das instituições em todos esses processos. Será sempre excesso de boa vontade acreditar numa autonomia da cultura perante as estruturas de poder. E não podemos ter ilusões relativamente ao papel que estas instituições cumprem, também em democracia, especialmente em democracia.
Desse ponto de vista, tanto Regina Guimarães como Sara Barros Leitão expuseram bem as ambiguidades e as contradições que marcaram o regresso da cultura ao Porto depois dos anos de chumbo de Rui Rio, recordando aquilo que não poderia deixar de ser recordado: que a prática artística, ainda que na sua candura mais pura, não acaba nunca nos limites daquilo que se definiu ser o campo da cultura. Talvez a virtude de Rui Moreira esteja em saber isso melhor que muitos artistas.
Por outro lado, mesmo considerando o papel burguês – para usar a terminologia mais correcta – destas instituições, não podemos deixar de lutar por elas, isto é, de reconhecer que elas próprias são pontos estratégicos de uma batalha onde o que está em jogo é a definição dos limites da própria democracia perante o capitalismo. É óbvio que esse movimento embora generalizado não é absoluto e que as instituições são feitas por um conjunto diversificado de pessoas cuja capacidade de abrir espaços nos limites das instituições é, por vezes, surpreendente. É um sinal ténue que nem tudo está perdido, mas a sua excepcionalidade é também um sinal de perigo.


Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

Imagem
Exposição, Corpo Político, Ismael Monticelli, 2019.

Ficha Técnica
Data de publicação: 12.02.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •