A polémica em torno do Teatro Municipal
do Porto e da gestão do seu director, Tiago Guedes, na sequência dos textos e
das denúncias de Regina Guimarães, de Tiago Correia e de Sara Barros Leitão,
permite-nos avançar no sentido de uma reflexão que não se esgota neste caso
particular, antes pelo contrário, parece-me uma constante no que diz respeito a
um grande número de instituições da área da cultura, mas não só.
Aquilo que está em causa,
tanto no espectáculo de Tiago Correia como de Sara Barros Leitão, é o facto de
ambos procurarem construir um discurso crítico que visa as próprias
instituições que os programaram. No primeiro caso, «Turismo», trata-se de uma reflexão
em torno dos efeitos (negativos) das políticas de turismo promovidas pela
Câmara Municipal do Porto, mas também, através do texto de Regina Guimarães, de
uma crítica ao papel «instrumental» que a cultura desempenhou no processo de
afirmação e legitimação da marca «Porto Ponto». No segundo caso,
«(des)ocupação», tratava-se de uma reflexão crítica em torno da própria
instituição do TMP (cujo exemplo paradigmático da tensão em torno deste
projecto foi o «Salão dos Recusados» que se propunha a mapear os artistas cujas
propostas tinham sido recusadas durante os últimos anos).
Independentemente dos vários
intervenientes terem entretanto reconhecido que a não publicação do texto de
Regina Guimarães constituiu um erro, aquilo que parece evidente é que continua
a existir uma grande dificuldade por parte das instituições (e não se trata
apenas do TMP) não só em aceitar a crítica (e a auto-crítica), mas em
reconhecê-la como parte intrínseca, integrante e fundamental da sua função pública
e da sua condição democrática.
O que é particularmente
interessante na intervenção de Rui Moreira sobre esta questão é o modo como
defendendo a pluralidade do TMP não deixa de reconhecer que algumas escolhas
da programação vão «aos limites da nossa tolerância» ou até da «decência» (referindo-se
a comentários de outros deputados municipais). Uma formulação cuja subtileza
não está apenas no facto de nos relembrar que há realmente «limites», sem que
seja preciso definir quais são; mas no facto de investir esses limites de toda
uma carga moral e moralizante – «tolerância» e «decência» – que é, na verdade, uma forma de os despolitizar,
ou melhor, uma forma de neutralizar a função de (auto-)crítica que impende
sobre a própria instituição.
Algo de semelhante se passou em
Serralves com as fotografias de Mapplethorpe e com as pressões da
administradora Ana Pinho junto do ex-director João Ribas, no sentido de retirar
da exposição um conjunto de fotografias que, também elas, dizia-se, passavam
todos os limites da «decência» e da «tolerância» (argumentário que, aliás,
Pacheco Pereira fez o favor de levar até ao ponto de paródia). E se alguma
coisa une estes dois episódios foi, precisamente, a dificuldade que estas
instituições demonstraram em gerir a sua (auto-)crítica perante a revelação
súbita dos seus próprios e inconfessáveis limites. Mas também não deixa de ser
curioso que isto aconteça em duas instituições cuja marca pessoal é manifesta:
no caso de Ana Pinho, assumindo um papel claramente «interventivo» na gestão
cultural do Museu de Arte Contemporânea; no caso de Rui Moreira, fazendo da
cultura um sector estratégico do seu mandato (note-se, aliás, que desde a morte
de Paulo Cunha e Silva, Rui Moreira acumulou as funções de vereador da cultura).
De qualquer modo, aquilo que
podemos observar em muitas instituições é não apenas a sua dificuldade
estrutural em aceitar e mobilizar um discurso crítico-de-si, mas sobretudo como
as tácticas de poder e de gestão (ainda para mais num mundo onde a precariedade
laboral é cada vez mais a regra) procuram a todo o custo neutralizar os vários
exercícios de crítica através dos pequenos medos, das pequenas chantagens, dos
pequenos silêncios. Em muitos casos, as lógicas de luta interna dentro das
instituições muito rapidamente fizeram esquecer a sua dimensão pública. Em
muitos casos, essas instituições deixaram de assegurar mecanismos importantes
de participação e igualdade democrática, impondo hierarquias rígidas,
protocolos burocráticos e direcções centralizadas, em nome da eficiência e da
gestão financeira – por exemplo, o caso das Universidades.
Ora, o capitalismo desde cedo
percebeu que a esfera da cultura (e da arte) seria tanto o palco de gestão das
suas próprias contradições e do conflito social, como o palco de gestão da
liberdade de expressão. Mas isso significou estabelecer todo um conjunto de
limites específicos. Esses limites são objecto permanente de uma batalha pelo
seu controlo, mas também pela sua dissolução. E como é óbvio, qualquer gesto de
atravessamento desses limites representa sempre um perigo: há sempre um
conflito novo que se abre, há sempre uma potência nova que se liberta, um
acontecimento que é dado a ver e que se torna compreensível. Se há uma
afinidade entre arte e democracia é essa: uma condição que se define não na imposição
de um consenso, mas na exposição de um dissenso – enquanto espaço de
abertura de um potencial de conflito.
Afinal de contas, parece
interessante que Sara Barros Leitão admita plenamente a contradição de um
projecto que se propunha a uma «ocupação» legal
do Teatro Rivoli. Não deixa de ser irónico, porém, que este projecto tenha
acabado por cumprir o seu propósito crítico na medida em que não foi levado a cabo.
Enfim, os acontecimentos a que
vamos assistindo, um pouco por todo o lado, evidenciam duas
«crises». Por um lado, uma progressiva crise de democracia das instituições e
dos seus processos de crítica e auto-crítica, que se consubstancia numa
rarefacção de libertação de espaços de existência plurais e potencialmente
conflituais dentro e contra as estruturas de poder. Por outro lado, uma crise do
modelo de cultura que as instituições mobilizam actualmente, cada vez mais
esvaziado e empobrecido pela fórmula do entretenimento (sobretudo na era do
turismo de massas) e pelas lógicas da gestão financeira das bilheteiras: que
envolvem muito branding, muito sponsor e muito marketing. Em
todo o caso, tudo isto traduz a não-disponibilidade e a incapacidade crescente das
instituições para mobilizar um discurso de crítica que vise expor realmente os
conflitos que atravessam o corpo social e a violência das actuais políticas neoliberais,
que vise interpelar o contínuo policiamento moral desses limites e o próprio
papel e posição das instituições em todos esses processos. Será sempre excesso
de boa vontade acreditar numa autonomia da cultura perante as estruturas de poder.
E não podemos ter ilusões relativamente ao papel que estas instituições
cumprem, também em democracia, especialmente em democracia.
Desse ponto de vista, tanto Regina
Guimarães como Sara Barros Leitão expuseram bem as ambiguidades e as
contradições que marcaram o regresso da cultura ao Porto depois dos anos de
chumbo de Rui Rio, recordando aquilo que não poderia deixar de ser recordado:
que a prática artística, ainda que na sua candura mais pura, não acaba nunca nos
limites daquilo que se definiu ser o campo da cultura. Talvez a virtude de Rui
Moreira esteja em saber isso melhor que muitos artistas.
Por outro lado, mesmo considerando
o papel burguês – para usar a terminologia mais correcta – destas instituições,
não podemos deixar de lutar por elas, isto é, de reconhecer que elas próprias
são pontos estratégicos de uma batalha onde o que está em jogo é a definição
dos limites da própria democracia perante o capitalismo. É óbvio que esse movimento
embora generalizado não é absoluto e que as instituições são feitas por um
conjunto diversificado de pessoas cuja capacidade de abrir espaços nos limites
das instituições é, por vezes, surpreendente. É um sinal ténue que nem tudo
está perdido, mas a sua excepcionalidade é também um sinal de perigo.
•
Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador
no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de
Arquitectura da Universidade do Porto).
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Ficha Técnica
Data de publicação:
12.02.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •