Quem,
no final da semana passada, acompanhou através dos jornais italianos online o
pânico que se instalou por causa da acelerada expansão, nas regiões do norte da
Itália, do novo coronavírus, pôde assistir a uma viragem brusca no teor e no
tom das notícias. De um dia para o outro, sem que nada se tenha alterado quanto
ao curso do contágio, os títulos (pelo menos, os dos dois maiores diários
italianos, o Corriere della Sera e o La Repubblica passaram a ser muito mais
tranquilizadores e até de incitamento à retomada da vida normal.
Os
leitores perceberam de certeza que essa alteração se devia a uma decisão
editorial, calculada perante os efeitos muito negativos que a comunicação
social estava a ter, instilando o medo e induzindo uma quebra total dos gestos
e dos hábitos quotidianos dos cidadãos. Os jornais perceberam (não era difícil
perceber, mas podiam ter insistido, em nome da liberdade e da necessidade de
informar, que são os argumentos geralmente utilizados quando já não há matéria
informativa, mas apenas ruído e redundância) que estavam a praticar actos, mais
do que a descrever uma situação: estavam a praticar o acto de alarmar e a
produzir exactamente o cenário contra o qual queriam fornecer, através de
notícias e alertas, os meios de imunização. No Corriere della Sera, esta
situação paradoxal foi motivo de um editorial publicado no dia a seguir à
viragem. Era uma reflexão destinada a suscitar a compreensão ou até a
cumplicidade dos leitores, sobre o desafio com que os jornalistas estavam
confrontados: por um lado tinham o dever de informar acerca do que se estava a
passar, mas por outro lado o cumprimento desse dever estava a potencializar o
alarme social e a elevar a níveis devastadores a dimensão do contágio e a
perigosidade do vírus.
A
Itália funcionou, neste caso, como uma versão abreviada e intensificada daquilo
a que estamos a assistir numa escala planetária: a hipertrofia dos mecanismos
de segurança que caracteriza cada vez mais as sociedades contemporâneas, de
modo a garantir uma imunidade que se tornou uma verdadeira obsessão
biopolítica, não tem nada que ver com a proporção dos perigos. Em vez de se
adequar a protecção ao nível de risco efectivo, tende-se a adequar a percepção
do risco à crescente necessidade de protecção, fazendo então precisamente da
proteccção um dos maiores riscos. É isso que temos visto em acção. A partir de
um certo nível, a fixação paranóica na imunidade e a ânsia de protecção
tornam-se, em si mesmas, um risco face às exigências da vida social e
colectiva. Como muito bem sabemos, no âmbito biológico o aumento indiscriminado
de imunização pode produzir doenças auto-imunes que atacam o próprio corpo que
querem proteger. Não é de agora esta evidência de que a imunização tem um
aspecto paradoxal, na medida em que para obter o resultado esperado, a
protecção da vida, deve usar indirectamente meios que negam a vida. De maneira
análoga, um excesso de dispositivos securitários pode constituir um perigo para
a segurança.
Não
é difícil perceber que é isto que se está a passar com a difusão de um vírus
que, pelo que sabemos até agora, não é inócuo, tem uma grande capacidade de
propagação, mas tem um fraco índice letal e, em circunstâncias normais, é
aniquilado pelos tratamentos com alguma rapidez. Mas o surto, activando
palavras como “vírus” e “contágio”, que fazem parte de um vocabulário
extremamente poderoso nas suas evocações, estava destinado a produzir sérios
efeitos, a expandir-se como uma infecção contagiosa que ganha vida fora dos
corpos que a alojam e avança com uma energia outorgada pela dinâmica
biopolítica, na qual podemos descortinar um duplo processo: a politização da
biologia e a biologização da política. Ingénuo seria pensar que se trata de um
efeito exclusivo dos media, que estes são os exclusivos autores de um estado de
excepção que não conhece soberanias nacionais. Em conformidade com a lógica dos
media, numa perfeita unidade, funciona a biopolítica que responde ao nosso
desejo de imunidade, tanto num sentido médico-biológico como num sentido
jurídico-político. Imunidade, sobretudo, contra o que vem de fora, contra os vírus
contraídos no estrangeiro ou que entram em território nacional transportados
por estrangeiros.
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António Guerreiro
É ensaísta e crítico do Público/Ípsilon
e editor da Revista Electra. Publicou um volume de ensaios, O Acento Agudo do Presente (Cotovia,
2000) e, mais recentemente, O demónio das
imagens. Sobre Aby Warburg (Língua Morta, 2018). Tem colaboração dispersa
em revistas e volumes colectivos e editou, com Olga Pombo e António Franco
Alexandre, Enciclopédia e Hipertexto (Editora Duarte
Reis, 2006). Fundou com José Gil, Silvina Rodrigues Lopes a revista Elipse. Walter Benjamin e
Aby Warburg (sobre os quais tem vários artigos publicados) são os dois pontos
fortes do seu trabalho nos últimos anos.
Nota da edição
Este artigo foi publicado no Jornal
Público, suplemento Ípsilon, na edição de 6 de Março de 2020.
Imagem
Doppelgänger, Didier Fiúza Faustino, 2011.
Ficha Técnica
Data de publicação:
10.03.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •