O adultério feminino – e, com ele, a
personagem da mulher adúltera – é um tema recorrente da literatura do século
XIX. Mesmo entre nós: pense-se no Primo Bazílio e até em Os Maias,
de Eça, mas também em várias novelas de Camilo, dentre as quais, por exemplo, Os
brilhantes do brasileiro. Mas as duas figuras de adúltera que mais se
destacam nesse horizonte literário são, sem dúvida, a Madame Bovary de
Flaubert e a Anna Karenina de Tolstoi, só rivalizáveis na celebridade,
como tipo romanesco da infidelidade feminina, pela Lady Chatterley criada, já
no século XX, por D. H. Lawrence. Não por acaso, as duas obras-primas, a de
Flaubert e a de Tolstoi (mas também, e até mais ainda, pela carga erótica
explícita, a de Lawrence), foram sucessivas vezes transpostas para o cinema,
até por parte de grandes realizadores. A de Flaubert, que é aquela que aqui nos
interessa, conheceu cinematizações por autores como Jean Renoir (1933),
Vincente Minnelli (1949), Claude Chabrol (1991) e, mais recentemente, Sophie
Barthes (2014). A esta lista poderíamos acrescentar, de algum modo, Oliveira, o
«nosso» Oliveira, por via de Vale Abraão (2003), adaptação da homónima
«reescrita» moderna do romance flaubertiano por Agustina Bessa-Luís, que
preserva muitos dos traços do texto «modernizado», não só o meio provinciano (aqui,
a região duriense, o alto Douro), como até os nomes próprios da principal
personagem feminina e do marido, Ema e Carlos, e a profissão (médico) e vocação
temperamental para o desastre conjugal deste último.
A queda no adultério de Madame Bovary,
e o seu destino tão trágico como o da heroína adúltera de Tolstoi, explica-se
por razões concretas quer sociológicas quer psicológicas manifestas no romance.
Entre essas razões, e desde logo, o próprio Monsieur Bovary. Também ele, muito
mais do que intervir como uma uma mera personagem secundária, representa um
tipo literário. Constitui a figura flaubertiana exemplar do marido enganado,
traído, e traído antes de mais por si mesmo, pela sua mediocridade e
ingenuidade, pela confiança sem reservas na mulher, como se tivesse nascido para
encarnar essa sua triste condição conjugal. Aliás, Charles Bovary, ele próprio
tão trágico quanto ridículo, insere-se a meio caminho, até mesmo como tipo,
numa formidável linhagem literária de cocus, de maridos vitimados,
iniciada no século XVII com Sganarelle, o «cornudo imaginário» de Molière
(versão puramente cómica, buffa, desse tipo de marido), e que culmina, a
nosso ver, com Trussótski, o «eterno marido» de Dostoievski, versão trágica
pura. Ao contrário do falso cornudo de Molière e do Charles Bovary de Flaubert,
a personagem de Dostoievski é uma alma sensível e inteligente, tudo menos
irrisória. Mas, também ela, uma alma fraca, de uma fraqueza que a condena, como
Charles Bovary, à confiança ilimitada na mulher e nos outros homens, à vocação
para o logro, para a condição de marido «eterno» que, mesmo depois da morte da
mulher e da descoberta, já viúvo, das suas infidelidades, o leva a procurar os
antigos amantes dela, não por vontade de vingança mas por curiosidade pelo
fascínio outrora exercido por eles sobre ela: a continuação do amor por outros
meios… Charles Bovary é da estirpe de Sganarelle pelo lado ridículo, mas também
já da de Trussótski pelo lado trágico. No entanto, nem ele por si só nem, com
ele, todas as razões de ordem psicológica ou sociológica que se possam invocar
explicam a figura da Bovary, esse extraordinário tipo da Adúltera criado por
Flaubert. Essa figura está para lá, ou para cá como se preferir, de todas essas
razões, de toda a razoabilidade (isto é, e neste caso, da explicabilidade
sociopsicológica), como a generalidade das grandes criações literárias. Eis o
que tentaremos sumariamente explicar a propósito da versão cinematográfica de
Claude Chabrol que em seguida veremos.
A versão de Chabrol, exemplar filme de
época, é talvez, num certo sentido, a mais fidedigna das múltiplas versões
fílmicas do romance de Flaubert, a mais rente ao texto flaubertiano, com a sua
rigorosa reconstituição da época descrita no texto e a filmagem nos próprios
locais da narrativa. E há Isabelle Huppert, formidável actriz, no papel de Ema
Bovary. Não será este, decerto, o papel da vida da actriz, mas, para muitos
cinéfilos, a Bovary terá, para sempre, o rosto da Huppert. Toda a dimensão
histórica, sociológica e psicológica do romance e das personagens está
restituída, como em nenhuma outra das cinematizações, no filme de Chabrol. É
uma espécie de tradução audiovisual literal das palavras do romance. Só
que, como nas outras referidas adaptações de Madame Bovary ao cinema, o
filme de Chabrol falhou, do nosso ponto de vista, o principal. Falhou o
espírito do romance adaptado, aquilo que está além das suas palavras, além da
sua textualidade ou linguagem, falhou a original perceptualidade aberta na
literatura por Flaubert, esse além-língua sensível mas inexplicável que é o
plano comum das artes e também, paradoxalmente, das artes literárias (e paradoxalmente
porque se trata, neste caso, de artes que têm na linguagem, ou, de cada vez,
numa língua dada, o seu único material). Milan Kundera, eminente romancista
contemporâneo, define o romance como uma prática de descoberta e de exploração
de diferentes aspectos e possibilidades da existência humana. Seria essa, seria
isso, segundo ele, a essência da arte do romance: o romance como forma
específica de conhecimento irredutível à ciência e à filosofia, ao conhecimento
lógico-racional, forma de iluminação, tanto nas dimensões reais ou existentes
como noutras possíveis ou existenciáveis (por exemplo, Kafka, o mundo de Kafka),
da vida concreta dos homens. «Descobrir aquilo que só um romance pode descobrir
é a única razão de ser de um romance. O romance que não descobre uma porção até
então desconhecida da existência é imoral». Mas Kundera acrescenta que esse
plano da existência humana concreta em que o romance exploratoriamente se
instala, e que, incoincidente com o plano da nossa consciência e dos nossos projectos
existenciais, é o plano de fundo das vidas de todos nós, é um plano
propriamente alógico, da ordem do incalculável, «sem razão», sine ratione,
que escapa essencialmente, e como que está do lado do avesso, do princípio de
razão enunciado no século XVII pelo filósofo Leibniz. «Tudo tem uma razão»,
todos os existentes e todos os acontecimentos, todos os contingentes e todas as
contingências, afirma esse princípio. Ora, a arte do romance, como diz Kundera,
é a sucessiva redescoberta da invalidade desse princípio no plano da
existencialidade humana. De tal modo que, a haver um princípio em que a grande
literatura, no seu conjunto, pudesse reconhecer-se, seria o contra-princípio, o
princípio explicitamente anti-Leibniz, de «razão insuficiente» que Musil fez a
sua personagem Ulrich, o Homem sem
Qualidades, formular nestes termos: «na nossa vida real, quero dizer, na
nossa vida pessoal assim como na nossa vida histórica e pública, nunca se
realiza senão aquilo que não tem uma razão válida». É, repita-se, o princípio,
ou o antiprincípio, do nosso mundo vivido, da vida de cada um de nós. Ele não
destrona o princípio leibniziano de razão. Antes afirma que há um domínio, que
é o da existência humana, em que ele não se aplica. Afirma, em suma, a desrazão
ou o sem-razão como o nosso fundo existencial, a essencial inexplicabilidade da
nossa «vida real», a densidade enigmática da vida. E, de facto, todos sentimos
mais ou menos que a nossa vida excede as nossas razões e explicações, o nosso
eu e as suas justificações. A vida acontece, e acontece-nos, sem se justificar,
sem precisar de ser justificada, antes é ela que nos justifica, que tudo
justifica. O que nos permite voltar à Madame Bovary de Flaubert.
O próprio Kundera indica a dimensão da
existência humana introduzida por Flaubert na literatura: a quotidianidade. E,
com efeito, o tempo, nessa sua dimensão de tempo vivido quotidiano distinta de
outras exploradas por outros grandes escritores (por exemplo, o «tempo perdido»
em Proust, o fugaz momento presente em Joyce), é a genuína substância, o
verdadeiro objecto, da arte de Flaubert. Naquela que é, a nosso ver, a sua
obra-prima, A educação sentimental, há os famosos «brancos» na narração,
os bruscos saltos, mudanças ou acelerações do tempo sublinhados por Proust no seu
magistral ensaio sobre o estilo flaubertiano e que, desembaraçando assim o
tempo da dependência das peripécias narradas, lhe dão um carácter activo,
restituem como nunca antes de Flaubert na literatura a «impressão do Tempo»
(Proust). Já não uma apresentação indirecta do tempo, já não o tempo induzido,
derivado, da sucessão diegética das acções e situações descritas, mas a
presença do tempo por si, a sensação do tempo puro, e como instância
determinante da qual decorre o sentido dos sentimentos, acções e reacções das
personagens romanescas. E é já essa a novidade de Madame Bovary, essa
força do tempo como tempo quotidiano e, mais exactamente, como tédio: não o
tédio como mero sentimento subjectivo, mas como fenda íntima rasgada no eu, e
no interior de Ema, pela potência do tempo, o tédio como cisão interior,
subjectivamente insuturável, suscitada, neste caso, pela espessura ou
viscosidade objectiva do tempo de província, da quotidianidade rural como tempo
petrificado. É a força desse tempo, força propriamente ontológica antes de se interiorizar
como afecção psicológica, que, impregnando Ema, infectando-lhe corpo e alma,
vai traçar pouco a pouco a sua «história», o seu devir, o seu trágico destino.
«Para Ema Bovary, o horizonte estreita-se a tal ponto que parece um
gradeamento. As aventuras encontram-se do outro lado e a nostalgia é
insuportável. No tédio da quotidianidade os sonhos e os devaneios ganham em
importância. O infinito perdido do mundo exterior é substituído pelo infinito
da alma» (Kundera). E a perdição de Ema, a vertente da sua degradação, tão
irresistível quanto inexplicável para ela própria, não é senão o seu
progressivo afundamento no abismo, cavado pelo tédio, que separa a infinitude
do seu mundo interior da insuportável finitude do mundo exterior.
Ora, é justamente essa força do tédio,
ou do quotidiano, esse tempo viscoso como presença abstracta mas que tudo
envolve no mundo de Ema e lhe determina o destino, que parece estar ausente das
várias transcrições cinematográficas do romance de Flaubert, todas elas demasiado
polarizadas na letra do texto e não no seu espírito. (Renoir, o primeiro a
cinematizar Madame Bovary, estava, no entanto, consciente desta
diferença, de tal forma que considerava esse romance, apesar da sua tentativa,
infilmável). Falta talvez uma versão, porventura mais longa do que as existentes,
que multiplicasse os tempos mortos, que plasmasse um tempo espessado, densificado,
que fizesse sentir nas imagens do filme a pressão do tempo de que falava
Tarkovski. Oliveira, na sua adaptação da moderna Bovary de Agustina, foi
quem disso mais se aproximou. Em todo o caso, dentre as versões já filmadas, a
de Chabrol tem, como dissemos, o mérito de, na literalidade da sua tradução
audiovisual do texto, ser a mais rigorosa, a mais fidedigna, e por isso vo-la
propor como o filme a ver nesta sessão.
•
Nota da edição
Texto de
apresentação do filme Madame Bovary, de Claude Chabrol, na Jornada «Práticas e
memórias de exclusão: o romance de adultério do século XIX» do Instituto de
Literatura Comparada Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, na FLUP, em 21/11/2019.
Imagem
Carl Holsøe, Waiting by the window.
Sousa Dias
Nasceu no
Porto em 1956. Filósofo. Professor. Publicou, entre outros livros, Questão de estilo, O que é poesia? e Grandeza de
Marx – Por uma política do
impossível. Em Outubro, lançou o livro Anti-doxa.
A filosofia na era da comunicação.
Ficha Técnica
Data de publicação:
03.12.2019
Edição #25 • Outono 2019 •