1.
Contava Félix de Azúa que durante uma greve de lixeiros
que cobriu Paris com detritos, ratazanas e um “fumo excrementício que emanava
das montanhas de matéria putrefacta em decomposição”, Beckett telefonava todos
os dias a Cioran para darem um pequeno passeio, comentando com “exaltação
juvenil” que “nunca Paris tinha estado tão bonita” [1]. Cinquenta anos depois, dificilmente se poderia
imaginar um passeio pelo centro de Paris nessas condições. Os grandes projectos
de “regeneração” urbana – os termos médicos não enganam – lançados desde então,
não só foram operações eficazes de higienização, limpeza e controlo social,
como constituíram um mecanismo fundamental de valorização da propriedade
imobiliária. Hoje, as ratazanas foram substituídas pelos tuk tuks e a “matéria putrefacta” das ruas foi convertida nos toxic assets dos mercados financeiros.
1.
Félix de Azúa, “Un refugiado en casa”,
El País, 1995.
Em
Portugal, por uma lei histórica que faz com que estes processos aconteçam mais
tarde e de forma condensada, tivemos a oportunidade de nos cruzar
simultaneamente com ratazanas e tuk tuks.
Essa sobreposição histórica foi, ironicamente, o segredo do sucesso de Lisboa e
Porto, ao oferecer no século XXI a possibilidade inaudita de conhecer uma
cidade europeia que ainda não estava colonizada pela economia do turismo e da
gentrificação. Mas não foi só a degradação e o esvaziamento dos centros
históricos que ocorreu desfasadamente (anos oitenta e noventa), o próprio
movimento de “regresso à baixa” – para utilizar a formulação da Porto 2001,
Capital Europeia da Cultura – ocorreu apenas nesta última década e em condições
históricas específicas.
A
transformação radical das zonas centrais do Porto e de Lisboa, nos últimos anos,
explica-se pela convergência de quatro factores. Primeiro, a longa crise
estrutural do tecido económico e produtivo das cidades. Segundo, a aposta
decisiva na indústria do turismo que levou, sobretudo no Porto, a uma
estratégia de reabilitação urbana sustentada no investimento privado e baseada
numa lógica kitsch e fachadista cujo modelo era o “parque
temático”. Terceiro, as políticas de austeridade e as iniciativas legislativas
do NRAU (Novo Regime de Arrendamento Urbano) e do programa de Vistos Gold, que
contribuíram tanto para uma entrada significativa de capital estrangeiro em
Portugal, como para a liberalização do mercado imobiliário (fim do congelamento
das rendas, facilitação de despejos, contratos com ciclos de duração mais
curtos). Quarto, a emergência de plataformas online (airbnb e uniplaces) cuja extraordinária
rentabilidade foi usada por agregados afectados pela crise, mas sobretudo, por
investidores imobiliários que adquiriram edifícios inteiros para serem
transformados em alojamento local.
Se estes factores nos ajudam a identificar a
especificidade das actuais transformações urbanas em Portugal, eles também são
úteis para reconhecer a complexa correlação de factores políticos e económicos
em jogo. O que a crise financeira global de 2008 e a implementação de um
programa de austeridade em Portugal (2011-2014) afirmaram, entre nós, foi a
consolidação definitiva de uma “racionalidade política neoliberal” [2] cujos pressupostos são radicalmente diferentes
daqueles que mobilizaram o modelo de cidade social-democrata que vingou desde o
pós-guerra no Ocidente. Neste sentido, o que este texto pretende colocar como
hipótese é que o turismo, mas também a gentrificação, longe de serem fenómenos
meramente isolados, reduzidos às suas consequências mais imediatas, são apenas
a face mais visível de uma transformação estrutural das cidades e das suas
formas de vida na época do neoliberalismo e da finança. Ora, que nas manifestações pelo direito à
habitação, que se têm multiplicado por Porto e Lisboa, se chegue a reivindicar
a defesa do habitante enquanto principal “activo” (asset) das cidades, diz muito, não apenas dos termos em que o
debate se coloca, mas como a nossa linguagem e o nosso horizonte político,
estão também eles (e não apenas as nossas cidades) totalmente capturados pela
máquina financeira.
2. Pierre Dardot e Christian Laval, La nouvelle raison du
monde: essai sur la société néolibérale, Paris, La Découverte, 2009.
2.
Os
anos setenta assinalaram a exaustão das fundações económicas do modelo fordista
de produção. A dificuldade em retirar mais-valia do trabalho levou a uma
procura crescente de lucro fora dos processos produtivos, isto é, na finança. O
crescimento da taxa de lucro foi, aliás, a grande obsessão das políticas
económicas desde então, reduzindo os custos do trabalho (precarização,
automatização, deslocalização) e desmantelando as regulações contra a
especulação monetária. A suspensão do acordo Bretton Woods (1971) e a
impossibilidade de regular a dívida pública através dos mecanismos monetários
tradicionais levaram à expansão definitiva dos mercados financeiros.
Não é possível compreender os pressupostos e a evolução
dessa racionalidade política neoliberal sem compreender o processo de
financeirização da economia, em curso desde o final dos anos setenta. O
neoliberalismo é a composição política e social de um sistema onde a “finança é
consubstancial à própria produção de
bens e serviços” [3], isto é, está
presente em todos os momentos do ciclo económico. A acumulação de capital é
feita através de novos mecanismos de captura de valor fora dos processos
produtivos clássicos, sobretudo através de renda e dívida: “os lucros tornam-se
renda” [4].
3. Christian Marazzi, The Violence of Financial Capitalism,
Los Angeles, Semiotext(e), 2011, p. 28.
4. Carlo
Vercellone, cit. in Marazzi, op. cit., p. 32. Pode-se falar de renda sempre que há obtenção de
rendimento através de processos não produtivos (o caso da propriedade
imobiliária). Mas se há um “devir-renda do lucro”, como escreve Marazzi, é
porque esta é a nova forma de acumulação do capital na era da finança, ligada à
emergência de novos processos de produção de valor (produção imaterial e
trabalho cognitivo). Poder-se-á definir a finança como a proliferação e a
generalização de novas formas de extrair renda: da propriedade imobiliária à
propriedade intelectual, dos sistemas de crédito à privatização de serviços
públicos. A finança é a conversão da totalidade da vida (biológica e social) em
possibilidade de renda.
Por isso, o neoliberalismo não é tanto a crença segundo a
qual os mercados abertos, competitivos e não-regulados, são o mecanismo óptimo
de desenvolvimento económico, mas uma verdadeira “utopia da exploração
ilimitada” [5] que pressupõe
uma disseminação das formas de extracção de renda e de produção de dívida a
todos os domínios da vida e da produção social. O neoliberalismo não deixa o
Estado fora da economia, mas activa o Estado em nome da economia. Ora, não só
foram as dívidas nacionais uma criação e um mecanismo fundamental de expansão
do capital financeiro, como o neoliberalismo é um “enorme mecanismo de gestão
das dívidas privadas e públicas” [6]. Uma “economia
da dívida”, como defende Maurizio Lazzarato, cujo paradigma não é a idílica
troca comercial entre proprietários livres e iguais, mas antes o dispositivo da
dívida que se fundamenta numa relação assimétrica de poder e de submissão do
devedor relativamente ao credor.
[7]
5. Pierre Bourdieu,
Acts of Resistance: against the Tyranny
of the Market, Nova Iorque, Free Press, 1998.
6.Maurizio
Lazzarato, The Making of the Indebted Man,
Los Angeles, Semiotext(e), 2011, p. 23.
7. Id., ibid., p. 33.
A título de exemplo é esclarecedor observar como o real estate, logo a partir da década de
setenta, vai ser o eixo fundamental da expansão do mercado global de capitais,
testando toda uma nova articulação política entre Estado, finança e corpo
social. A retórica da casa própria, como o novo grande sonho da classe média,
foi um dispositivo político-moral que legitimou não só a construção de um sistema
financeiro de habitação – fazendo desta um valioso mecanismo de extracção de
renda e dívida –, como permitiu criar um consenso em torno do desmantelamento
das políticas de habitação públicas e dos próprios instrumentos de segurança
social, fazendo da habitação o “bastião” da protecção da família e das suas
poupanças fora do controlo do Estado. Ao mesmo tempo, a criação dos sistemas financeiros
de habitação acompanhou um conjunto de políticas urbanas que limitaram o
controlo da intervenção pública sobre a organização da cidade e do território,
flexibilizando e multiplicando o papel dos promotores imobiliários e dos
intermediários financeiros.[8] Assim se pode
compreender a importância dos chamados processos de “regeneração” urbana, ao
responderem tanto a necessidades de valorização do capital investido, como em
manter o ritmo de crescimento dos preços do mercado imobiliário, o que era
fundamental para a sobrevivência do próprio sistema.
8. Como escreve Raquel Rolnik, o caso dos EUA mostra o carácter
falacioso dos pressupostos neoliberais: não só não reduzem os gastos públicos
como os direccionam para os sectores da renda alta através de isenções fiscais
na compra de habitação. Raquel Rolnik, Guerra dos Lugares. A colonização da Terra e da moradia na Era das Finanças, São Paulo,
Boitempo Editorial, 2015, p. 68.
Assim,
os sistemas financeiros de habitação não só fizeram da casa um produto
financeiro altamente lucrativo como integraram o Estado e a vida social no
fluxo global de capitais, testando produtos financeiros cada vez mais complexos
e sofisticados como os subprime: que
apenas revelaram o grau de penetração do capital financeiro na gestão
biopolítica dos indivíduos ao integrarem, dentro dos seus circuitos de
extracção de renda, os sectores mais pobres da população. O capitalismo popular
dos pequenos proprietários da política thatcheriana – que fez da habitação a
sua grande arma – era, afinal, o capitalismo popular dos novos sujeitos
endividados. O “right to buy” era, então, o “right
to be indebted”.
É neste
sentido que se pode dizer que o neoliberalismo é, acima de tudo, um quadro
institucional que operacionaliza, legitima e reproduz uma máquina de poder de
exploração cuja função é assegurar a expansão da finança através de mecanismos
sofisticados e complexos de extracção de renda e dívida: capturando novos mercados,
assimilando novos activos, e, por fim, inscrevendo a um nível cada vez mais
profundo o Estado (privatização dos serviços públicos) e os indivíduos
(privatização da reprodução e da produção social). A finança, diria, hoje,
Proudhon, é um roubo.
No
entanto, se estamos perante uma máquina de poder é porque aquilo que está em
jogo é a produção de um sujeito neoliberal. A finança é um processo de
subjectivação e, por isso, de poder. Neste sentido, a precariedade laboral não
é um efeito temporário de uma qualquer crise, mas a afirmação da crise e da
insegurança social como paradigma, através da lógica de auto-exploração do
empreendedorismo e da precarização generalizada: subordinando a totalidade da
vida à forma do lucro, da rentabilização e da concorrência.
3.
Se
podemos falar de uma metrópole neoliberal não é apenas porque o neoliberalismo
reproduz uma espacialização própria – ligada aos seus processos financeiros –,
mas porque este põe em marcha toda uma nova economia política da urbanização
que desarticula a relação entre os três eixos fundamentais que produziram a
cidade social-democrata: modelo político (Estado social e políticas
keynesianas), modelo de produção (fordismo) e modelo de configuração
territorial (Estado-nação).
Primeiro, na cidade social-democrata as políticas
keynesianas providenciavam uma arquitectura regulatória que articulava as
dinâmicas espaciais capitalistas, procurando estabilizar e dissimular os
conflitos e contradições endémicas do capitalismo. Ao mesmo tempo, os processos
ligados à reprodução social (habitação, serviços públicos, infra-estruturas)
eram uma peça fundamental da produção da cidade. Ora, a financeirização da
economia teve duas consequências: por um lado, acabou com todas as políticas
que procuravam promover a equidade social e espacial, por outro lado, a
reprodução social organizada a partir do Estado deixou de ser o elemento
preponderante da definição da escala urbana.
[9] Exemplo
disso foi a supressão das políticas públicas que viam a habitação como um bem
social e as alterações legislativas que fizeram da urbanização um mecanismo
fundamental de expansão do capital financeiro através de operações imobiliárias
em escala cada vez maior. O Estado passa, assim, de regulador a agente
consumado dos interesses dos mercados, promovendo processos de privatização e
gentrificação, gerando desigualdades sócio espaciais cada vez mais acentuadas.
Assim, as instituições democráticas não só se encontram totalmente absorvidas
pela lógica de funcionamento do mercado e da concorrência, como estão
absolutamente capturadas pelo ciclo infinito de reprodução de dívida soberana e
pelas dependências de capital estrangeiro cujos fluxos offshore não conseguem controlar. Podemos, por isso, dizer que a
metrópole neoliberal corresponde ao momento em que os mecanismos da reprodução
social saem da esfera do Estado e integram plenamente os sistemas financeiros
enquanto função essencial do seu negócio.
9. Neil Brenner, Jamie
Peck e Nik Theodore, “Urbanismo neoliberal. La ciudad y el imperio de los
mercados” (2011), in El Mercado contra la
ciudad, (ed.) Observatorio Metropolitano de Madrid, Madrid, Traficante de
sueños, 2015, p. 211-244.
Segundo, o desenvolvimento do mercado de capitais e das
novas formas de produção de valor alteraram radicalmente o papel das cidades.
Se, hoje, a metrópole é o lugar da
produção e não a fábrica, como argumenta Antonio Negri, isso não acontece
apenas pela multiplicação das novas formas de trabalho cognitivo e da produção
imaterial, mas porque a própria “vida dos cidadãos está inteiramente absorvida
no mecanismo da produção” [10], mas sobretudo,
da finança. A metrópole neoliberal é, assim, uma gigantesca máquina de
multiplicação de capital financeiro, uma estrutura espacial integrada e
organizada, que visa operacionalizar e tornar eficientes os mecanismos de
extracção de valor (através de dívida e renda). Por exemplo, o que são a
gentrificação e o turismo urbano senão processos onde está em causa a multiplicação
do valor de uma mercadoria (a cidade ou parte dela) através de outros meios (branding e marketing), produzindo um
capital simbólico e cultural que oferece lucros gigantescos sem grandes custos
para os proprietários – já que as operações de “regeneração” são desencadeadas pelo
Estado em nome de todos. Mas a construção dos sistemas financeiros de habitação
é, também, um exemplo elucidativo. Ao submeter o acesso à habitação a “modelos
matemáticos de risco (...), onde o direito social à habitação está
artificialmente subordinado ao direito privado de realizar lucro” [11], a casa transforma-se num activo financeiro de
fundos imobiliários a ser rentabilizado no jogo infinito da especulação.
Note-se que estes são processos que a crescente desregulação fez acelerar e
cuja consequência – como aliás se vê no Porto e em Lisboa – é deixar edifícios
desabitados, nas zonas de maior especulação, à espera de sucessivas valorizações.
Algo que, longe de ser paradoxal, apenas revela a “dialéctica do absurdo” dos
processos financeiros que, hoje, produzem a forma urbana. É uma espécie burnout urbano, onde um edifício é submetido
a uma espécie de exploração especulativa intensiva no mais curto período de
tempo. Com alguma ironia, poderíamos dizer que a nova unidade de produção
urbana já não é o tradicional prédio de rendimento – que durante décadas
produziu o tecido urbano de Porto e Lisboa –, mas o prédio de alto-rendimento. Nem
esse apóstolo da “poética do espaço” que era Gaston Bachelard ficaria
indiferente a uma tal transformação da habitação na era da finança.
10. Antonio Negri,
“Metropolis and Multitude”, From the
Factory to the Metropolis, Cambridge, Polity Press, 2018, p. 57.
11. Christian
Marazzi, op. cit., p. 40.
Assim,
como vimos, não é apenas a “produção de espaço” – para usar um termo de Henri
Lefebvre – que está nas mãos dos sistemas financeiros, mas a própria produção
do espaço é, aqui, um elemento-chave da reprodutibilidade dos processos
financeiros. Mas isso significa que a financeirização da cidade corresponde,
assim, à financeirização da forma de vida do sujeito neoliberal. Neste sentido,
na metrópole neoliberal a vida biológica e social dos indivíduos está integrada
e, mais, está directamente indexada, como nunca antes, aos circuitos globais do
capital e aos seus ritmos intempestivos. A vida é o capital, o capital é a
vida. A metrópole é o devir finança das formas de vida. O homem na época da sua reprodutibilidade financeira.
Terceiro, o modo de produção fordista e o quadro político
keynesiano estabilizava-se num conjunto de relações de escala (país, região,
cidade). Por outras palavras, tinha uma territorialização própria que o
neoliberalismo vem perturbar. A escala metropolitana é mais definida pela
correlação global do que nacional. Veja-se como as cidades competem
ansiosamente entre si pela captação de “investimento estrangeiro”, assimilando
integralmente a linguagem e a gestão corporativa. As cidades já não são,
apenas, mercadorias vendidas no mercado global dos “best european
destinations”, elas têm de ser “marcas”
[12],
isto é, empresas.
12. A criação da marca “Porto.” é a esse nível
paradigmática, assim como a campanha anónima “Morto.” (lançada pelas ruas da
cidade) que torna evidente os efeitos das políticas urbanas municipais às mãos
do turismo e da especulação imobiliária.
Mas há, ainda, um outro factor fundamental a definir
decisivamente a escala e a violência estrutural dos actuais processos de
transformação das cidades. Se a burguesia, como escreve Franco “Bifo” Berardi,
“era uma classe fortemente territorializada (a classe do bourg, da cidade)”, “ligada a activos materiais” e “vinculada a um
território e a uma comunidade”, pelo contrário, a nova “classe financeira (...)
não tem qualquer vínculo com o território ou a produção material, porque o seu
poder é totalmente fundado na abstracção total da finança digital” [13]. A
financeirização do capital marca, assim, o “fim da velha burguesia” e abre a
porta à existência de um espaço cuja unidade mínima de produção é o algoritmo.
Não está apenas em causa a redução do território à linguagem contratual da
finança ou à unidimensionalidade do seu valor económico, mas o facto de a
finança fazer do território, no seu todo, uma abstracção “dromótica” [14], virtual e contabilizável. A abstracção financeira é a abstracção
social: “a redução da vida social às implicações dos
algoritmos financeiros” [15], a
sua conversão em puro automatismo. Na metrópole, parafraseando Berardi, “não há
inimigos (...), apenas implicações matemáticas, concatenações sociais
automáticas que não se podem desmantelar ou evitar”. [16]
13. Franco “Bifo”
Berardi, The Uprising. On Poetry and
Finance, Los Angeles, Semiotext(e), 2012, p. 51.
14. O termo “dromótico” deve-se a Paul Virilio, que
estabelece uma correlação entre velocidade (em grego, “dromos” significa
corrida), poder e espaço: «A velocidade é o próprio poder». Paulo Virilio, Cibermundo: A Política do Pior, Lisboa,
Teorema, 2000, p. 16.
15. Franco “Bifo” Berardi, op.cit., p. 31.
16. Id., ibid., p.
80.
O
neoliberalismo articula, assim, de forma fundamentalmente distinta um modelo
político de governação (os mercados), um modelo económico (capitalismo
financeiro) e um modelo espacial (metrópole). E se o neoliberalismo é o quadro
político e institucional que legitima e operacionaliza os mecanismos de
extracção da finança, a metrópole é um dispositivo espacial de
desterritorialização que integra e captura a totalidade da produção social e da
vida biológica nos circuitos abstractos e privatizadores da finança. Uma
máquina de exploração do comum, multiplicando capital à custa da reprodução das
desigualdades sociais e espaciais.
Por isso, a metrópole neoliberal corresponde, assim, à
afirmação de um paradigma de poder biopolítico, que substitui a política pela
economia enquanto modo de governação, fazendo do território um vasto campo
logístico e financeiro, constituindo uma forma de vida reduzida à sua dimensão
económica (como capital humano condenado à rentabilidade infinita do corpo e da
inteligência) e à sua dimensão estritamente biológica (a reprodução infinita
das suas condições de vida). A trilogia que, durante tanto tempo, serviu para
descrever um certo paradigma de cidade – a polis
(a política: autonomia e forma de governo), a civitas (cidadania: estatuto político do seu grupo social) e a urbs (edificação e infra-estrutura) –
está, hoje, obsoleta. Na metrópole neoliberal há apenas urbs: infra-estrutura e capital humano precarizado e desqualificado
politicamente. A divisa dessa metrópole, para cuja oração matinal estamos todos
mobilizados, já não seria aquele ecuménico “Urbi
et Orbi”, mas o “Urbi et Uber”. [17]
17. “Urbi et Orbi”, a bênção de Páscoa e Natal do Papa
no Vaticano é convocada para um jogo de palavras com o nome da empresa uber, cujo modelo de negócio é
paradigmático das relações laborais na era da finança.
4.
Não
será assim tão surpreendente, pois, que seja o trauma da perda a mobilizar os debates actuais em torno da cidade.
Ironicamente, a ansiedade pelo “autêntico”, a valorização das culturais locais,
a reivindicação das identidades perdidas, são à vez palavras de ordem contra os
efeitos do turismo e o segredo maior do seu sucesso. Em certo sentido, a
economia do turismo urbano alimenta-se das ruínas da cidade. E por mais que se
admita que um turista não é um habitante, aquilo que os une é a mesma condição
de expropriação – ou, talvez, de despejo – relativamente a um quotidiano que,
para ambos, se tornou tão estranho como insuportável. Mas se o modelo
social-democrata domina ainda o discurso sobre a cidade, ele é também o
paradigma dominante em torno do qual circula toda a política. Noções como
“cidadania”, “espaço público”, “democracia”, peças-chave da retórica humanista
que cobriu as contradições da cidade social-democrata liberal, estão, hoje, mais
do que nunca, esvaziadas de sentido político. A sua função serve apenas para dissimular
a imensa acumulação de toxic assets
que domina o actual modo de produção do capitalismo financeiro.
A pressão da economia do turismo, os processos de
gentrificação e a especulação imobiliária, têm tido efeitos evidentes e
violentos sobre as populações, mas estes são apenas os produtos derivados –para usar uma linguagem apropriadamente
financeira – de uma radical alteração da forma da cidade e da forma de vida
debaixo do neoliberalismo. Neste sentido, não há propriamente uma crítica da
gentrificação ou da turistificação, mas apenas uma crítica do devir finança da cidade e das suas formas de vida: isto
é, uma crítica que abandone todas as tendências moralizadoras da finança e que
exponha a violência estrutural intrínseca aos seus processos de “acumulação por
despossessão” [18]. E se é verdade que o neoliberalismo é, de facto, um
movimento cujo pressuposto assenta numa “anulação do demos” [19],
isto é, o apagamento de toda e qualquer noção de comum e dos elementos base da
democracia, então, percebemos que aquilo que está em causa é política e
socialmente decisivo.
18. David Harvey, Rebel Cities, Londres, Verso, 2013, p.
54.
19. Wendy Brown, Undoing the Demos. Neoliberalism’s Stealth
Revolution, Nova Iorque, Zone Books, 2015.
•
Nota da edição
Texto originalmente
publicado na revista Electra nº 3, num dossier temático dedicado ao turismo.
Imagem
2.
“Neoliberalism begins at home”, Campanha de Margaret Thatcher a favor do “Right
to Buy” (anos 80).
3. A financeirização da economia americana
(1973-2015)
4. Demolição do Robin Hood Gardens,
complexo de Habitação social projectado pelos arquitectos ingleses Peter e
Alison Smithson, construído em 1972 e demolido entre 2017 e 2019. Ao fundo,
entre os escombros a sede do Banco HSBC.
5. Publicidade ao programa português
dos Vistos Gold.
6. “Isto é uma casa, não aposte”. Crise
americana do subprime de 2007-2008, Detroit, 2009.
7. A abstracção algorítmica da
finança
Pedro Levi Bismarck
(Porto, 1983). Arquitecto licenciado pela Faculdade
de Arquitectura da Universidade do Porto (2008). Foi monitor e Assistente
Convidado nesta Faculdade e é investigador do Centro de Estudos de Arquitectura
e Urbanismo (CEAU-FAUP), onde desenvolve a sua tese de doutoramento. É editor da
Revista Punkto (www.revistapunkto) e co-editor (com Ana
Catarina Costa e Paulo Monteiro) do projecto editorial Stones against Diamonds. Escreve regularmente sobre arquitectura,
cidade e política em publicações nacionais e internacionais (Jornal Arquitectos, Revista Electra, Re vis
ta, Revista Património, Places Journal,
Quaderns d’arquitectura i urbanisme).
Ficha Técnica
Data de publicação:
09.12.2019
Edição #25 • Outono 2019 •