Temos assistido, dentro e fora do Partido [Comunista
Português], a um recentramento da Questão da Habitação na ordem do dia da
discussão política, cujo diagnóstico acertado a que temos chegado é o de que
esta questão é também e essencialmente uma questão do direito à Cidade.
Decorrente da situação de absoluta emergência, percebe-se de modo evidente nas
duas grandes metrópoles, onde se concentra 74% do total nacional de situações
de carência habitacional, o aprofundamento
de processos de radical exclusão, inclusivamente das camadas proletárias que
iam mantendo a sua capacidade de permanência no centro dessas cidades. Em
consequência de processos de brutal acumulação especulativa, fortemente
alicerçada em políticas fiscais e de ordenamento dos últimos e actual Governo –
com a contundente Lei Cristas, os vistos Gold, a isenção de impostos para
Fundos de Investimento Imobiliário… – e alimentando-se da explosão da indústria
do turismo, temos chegado a uma situação insuportável e de iminente convulsão
marcada por contradições insanáveis. Na cidade do Porto há 12 casas vazias por
cada família carenciada, num panorama nacional em que uns ridículos 2% do
parque habitacional é detido pelo Estado em formato de habitação social, justificando um
generalizado sentimento de revolta nas populações.
Há efectivamente um caminho essencial a ser percorrido na
definição de políticas públicas de apoio ao arrendamento, de regulação do
mercado de alojamento e turismo, de reestruturação, preservação e
diversificação do tecido económico das nossas cidades e justa integração da
indústria do turismo nesse tecido, de repressão da matriz liberal de
investimento imobiliário. Há, no entanto, um caminho que urge aprofundar e ao
qual a Arquitectura poderá fornecer perspectivas cruciais ao seu entendimento e
que diz respeito aos processos de produção da habitação. Entender a questão da
habitação de uma perspectiva arquitectónica permite ultrapassar esse limite da
decisão pública e chegar ao âmago da sua vocação política, da sua capacidade
transformadora: a questão da sua forma. Ou seja, ultrapassando esse limiar
imediato do paralelismo historicista e estético que tente associar determinados
preceitos formais a programas políticos, há antes de mais que entender em que
sentido a forma arquitectónica assume compromissos em confronto com o contexto
em que intervém.
Tal como não pode existir uma
Economia política de classe, mas uma crítica de classe à Economia política,
também não é possível criar uma estética, uma arte, uma arquitectura de classe,
mas apenas uma crítica de classe à estética, à arte, à arquitectura, à cidade. [1]
1. Manfredo Tafuri, Projecto
e Utopia: arquitectura e desenvolvimento
do capitalismo, Lisboa, Presença, 1985, p. 121.
Enquanto organismo que representa e simultaneamente
programa e incorpora o sistema que a alimenta, a Cidade tem essa capacidade de
amplificar e reflectir com exactidão qualquer traço e contradição das relações
de dominação que a produzem. A Cidade assume-se dessa forma como tema crucial
da Arquitectura Moderna na sua busca por relevância social e política, no
rescaldo de revoluções industriais e do advento da economia planificada,
tentando superar a profunda angústia e desencanto face à constatação mais que
evidente que à Arquitectura nada mais restará ser que uma organizadora de meios
de produção plenamente incorporada nos mecanismos e relações de dominação
vigentes. Será essa inelutável busca que marcará algumas das mais interessantes
e simultaneamente angustiantes experiências em habitação, autênticos
laboratórios absolutamente absorvidos pelo sistema capitalista.
Desenvolvida por Le Corbusier em 1914 como contributo
para o esforço de reconstrução do Pós-Guerra, a Maison Dom-Ino adquiriu condição de absoluta intemporalidade. Uma
síntese absoluta de uma arquitectura como engrenagem ao serviço do sistema de
produção dominante, tornou-se o modelo que possibilitou a democratização e
universalização do objecto arquitectónico. Liberta-se do chão pelas suas
fundações em betão, sobrepõe tabuleiros de livre ocupação, recua pilares
permitindo livre composição da fachada e trata autonomamente a caixa de escadas
possibilitando a sua relocalização. É uma ode à construção privada (cujo
estímulo se prevê na nossa Constituição como uma das respostas ao problema da
habitação) e é por isso o esqueleto que podemos reconhecer em praticamente toda
a construção do séc. XX – dos arranha-céus na metrópole à casa de emigrante no
“rural” transmontano.
Reinventando o esquema Dom-Ino, Aravena consolidou um
outro modelo de emergência habitacional com base nos mesmos princípios. Na
Quinta Monroy, a ELEMENTAL propõe algo “revolucionário”. Decorrente de um programa assistencialista com um
ridículo financiamento governamental de $7500 por família constrói-se apenas
metade de uma casa (a metade mais complexa: a da estrutura Dom-Ino equipada com
instalações básicas) e relega-se à iniciativa privada a sua expansão. Significa
juntar o melhor de dois mundos: aliar o financiamento público da iniciativa
privada à fomentação da auto-construção como resolução da carência habitacional
(também prevista na nossa Constituição).
É um movimento genial que garante em simultâneo a
propaganda de um certo Estado Social e simultaneamente encarrega as camadas
proletárias da concretização do seu próprio direito à Habitação, vinculando-as
ainda ao mercado de especulação imobiliária como proprietários de pleno direito
e dever. Um autêntico manifesto arquitectónico ao programa da “democracia de
proprietários” da insuspeita Thatcher, travestido de experimentação de “espaços
em potência”, “flexibilidade tipológica”, “apropriações de espaço”, “redução da
linguagem ao que ela quiser ser” … Uma narrativa que vai fazendo escola e cujo
silêncio parece advir, em sentido oposto aos silêncios ensurdecedores de Aldo
Rossi, de nada ter a dizer.
Essa mesma escola encontrou nesta era de “ajustamento” em
que vivemos ecos tremendos. A implementação de uma certa “linguagem de
austeridade” ganhou terreno nas práticas menos subversivas que se possa
imaginar e isso será prova indelével do seu objectivo de legitimação que, à
boleia de uma tarefa “radical” de redução da arquitectura à sua essência de
experimentação espacial de novos modos de habitar, nada mais é que
implementação de uma política de suficientarismo.
Pier
Vittorio Aureli é certamente um dos mais brilhantes críticos e simultaneamente
propositores dessa mesma escola. A proposta dos DOGMA para uma Communal Villa é
uma representação absoluta desse projecto e um assustador prenúncio do que pode
significar habitar em poucos anos. A “casa” reduz-se a um bloco
infra-estrutural que garante um domicílio mínimo (esvaziado de áreas
produtivas), o espaço (re)produtivo (de cozinha e escritório) é compartilhado –
estendendo-se o imperativo de cooperação e rentabilidade ao próprio trabalho
reprodutivo. A arquitectura já não serve o propósito de impor ao espaço
doméstico o princípio de absoluta adaptabilidade pelo que é descartada em favor
do design de mobiliário, da mesma forma que se impõe ao trabalhador a absoluta
“flexibilidade” pela dissolução da sua segurança laboral. [2]
2. Pier
Vittorio Aureli, The Possibility of an
Absolute Architecture, Cambridge/London, The MIT Press, 2011, p. 20.
Há
efectivamente um movimento no sentido de reduzir a habitação ao seu exclusivo
carácter reprodutivo: o descanso reduz-se unicamente ao quarto e a sala cada
vez mais se funde com a ideia de escritório. A dissolução do tempo de lazer, a
reboque das novas tecnologias que diluem a percepção entre tempo produtivo e de
descanso (até que ponto nos “desligamos” e até que ponto navegar na internet
deixará de ser produtivo…), leva inevitavelmente à dissolução dos próprios
espaços que lhe estão consignados. Já no
início do século XX Adolf Loos se indignava com o desaparecimento do
dispositivo de “cozinha-sala” da habitação operária, argumentando que separar
esses dois espaços representava uma assimilação coerciva da cultura burguesa
por parte do operariado. Para a classe trabalhadora a cozinha e a sala eram um
só espaço (re)produtivo, onde se cozinhava o que se produzia e a sala burguesa
um dispositivo de afirmação da posse e da cultura de representação bacoca. [3]
3. Walter
BENJAMIN, «Moscow», Walter Benjamin:
Selected Writings, Volume 2, Part2, 1931-34, Cambridge, Belknap Press of
Harvard University Press, 1999.
Mas
se é verdade que esse processo é indissociável da progressiva proletarização
das populações, reside então nele também uma potencialidade revolucionária – à
semelhança da diagnosticada por Engels face às condições da habitação operária
inglesa e à sua progressiva libertação da propriedade privada. O mínimo não deixa de ser insuficiente, mas
apenas enquanto não for de todos. A experiência da pobreza no sentido em que a
colocava Benjamin pode abrir caminho à alteração radical de modos de viver e
habitar, nos quais a colectivização antecipada por Aureli [4] possa ser a base
para a justa distribuição não da riqueza, mas da pobreza, como defendia Brecht
em relação ao comunismo. Precisamente daquela que falava Benjamin e Brecht que
só nos pode levar “a começar tudo de novo, a voltar ao princípio, a saber viver
com pouco, a construir algo com esse pouco”. [5]
Onde existe perigo, cresce também aquilo que salva. [6]
4. Pier Vittorio Aureli, Less is Enough, Moscovo. Strelka Press,
2013, p. 39.
5. Walter Benjamin, «Experiência e Pobreza», O Anjo da História, Lisboa, Autêntica,
2013.
6. Friedrich Hölderlin cit in Pier
Vittorio AURELI, Less is Enough,
Moscovo, Strelka Press, 2013, p. 51.
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Diogo Silva
Diogo Pereira da Silva (1989) é
arquitecto, formado na FAUP, trabalha em arquitectura no Atelierdacosta (Póvoa
de Varzim).
Nota do autor
Este artigo foi originalmente publicado
na revista Diagonal (n.o 1, III série), revista do Sector Intelectual do Porto
do Partido Comunista Português, em Setembro de 2018. É objectivo do texto
colocar politicamente à discussão a questão da promoção de Habitação para Todos
partindo do questionamento dos seus processos produtivos. Importa, no entanto,
esclarecer que dada a limitação de espaço disponibilizado e a natureza cultural
e profissionalmente diversa do público-alvo da Diagonal, o texto aponta de
forma relativamente superficial questões de natureza disciplinar que mereceriam
outro aprofundamento, mas que acreditamos não encontrar pertinência nesse
espaço. Propondo-se este texto fazer uma introdução à crítica da ideologia
arquitectónica na produção de Habitação, focamo-nos aqui numa perspectiva
eminentemente centrada na questão da forma arquitectónica, remetendo para texto
ulterior o questionamento da própria construção da ideologia, do papel do autor
e da decisão política.
Imagens
1. Le Corbusier,
Maison Dom-Ino, 1914-15.
2. Elemental, Quinta Monroy, 2004.
3. Dogma, Communal Villa, 2015.
Ficha Técnica
Data de publicação: 22.10.2019
Edição #25 • Outono 2019 •