Vigiar e produzir – Michel Foucault e a economia política da punição • Ricardo Noronha





I
Publicado em 1975, Vigia e punir condensa as pesquisas e reflexões desenvolvidas por Michel Foucault ao longo do seu envolvimento no Grupo de Informação sobre as Prisões, entre 1971 e 1973. É também uma materialização, porventura a primeira apresentada ao grande público, do método genealógico cujos traços gerais Foucault havia apresentado em 1971:
A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela opõe-se, pelo contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela opõe-se à pesquisa da "origem". […] A genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma grande continuidade para além da dispersão do esquecimento. […] Seguir o filão complexo da proveniência é, pelo contrário, manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios - ou ao contrário, as inversões completas - os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos - não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente. […] A genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações. […] Em certo sentido, a peça representada nesse teatro sem lugar é sempre a mesma: é aquela que repete indefinidamente os dominadores e os dominados. […] Trata-se de fazer da história uma contramemória e de desdobrar consequentemente toda uma outra forma de tempo. […] A genealogia é a história como um carnaval organizado. [1]

Em mais do que um sentido, Vigiar e punir é o corolário do processo pelo qual Foucault se distanciou de uma visão da história feita de continuidades e sucessões pacíficas, para lhe contrapor uma outra, dependente dos acasos da luta e das relações de força, por via dos quais a violência dos vencedores se teria periodicamente instituído num sistema de regras, dando vida a sucessivas formas de dominação. É precisamente por aí que Foucault inicia o seu estudo da prisão:
Contudo, o estudo desta microfísica [do poder] pressupõe que o poder que nela se exerce não seja concebido como uma propriedade mas como uma estratégia, que os seus efeitos de domínio não sejam atribuídos a uma «apropriação», mas a disposições, a manobras, a tácticas, a técnicas, a funcionamentos; pressupõe que nele se decifre uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, e não um privilégio que se possa deter; que se lhe dê como modelo a batalha perpétua, e não o contrato que opera uma cedência ou a conquista que se apodera de um domínio. [2]

Ao propor que se olhe para as relações de poder a partir do modelo da batalha perpétua, Foucault convoca o tema da guerra, que irá retomar no Collège de France um ano mais tarde, no curso intitulado É preciso defender a sociedade, e que estava já presente em A sociedade punitiva (1972-73), o curso que serviu de esboço a Vigiar e Punir. Elegendo a guerra – e mais concretamente a guerra civil – enquanto matriz das relações de poder, Foucault procurou desenvolver aquilo que designou enquanto "a hipótese Nietzsche". A essa luz,  o Direito converte-se no instrumento de uma guerra permanente, levada a cabo pelos grupos dominantes contra os grupos dominados, cujo ruído de fundo se tornaria necessário aprender a escutar, mesmo lá onde menos se esperaria poder ouvi-lo. Por outro lado, ao assumir a guerra enquanto modelo geral da dominação, o olhar que Foucault projeta sobre a prisão deve forçosamente deslocar-se das instâncias jurídicas para o domínio das técnicas e das operações praticadas sobre os corpos, com a ambição de captar essa "microfísica do poder" cujo desenvolvimento constitui uma condição de possibilidade do sujeito da modernidade.
1. Michel Foucault, Microfísica do poder (São Paulo: Graal, 2004), 16, 23, 24, 34.
2. Foucault, Vigiar e punir (Lisboa: Edições 70, 2018), 34.

II
Aquilo de que se ocupa Foucault, neste livro que Deleuze classificou como uma “divina comédia das punições” [3], é o desvendar de um mistério. Na passagem do século XVIII ao século XIX, argumenta, coexistem três modalidades punitivas distintas: o direito soberano do Príncipe, os projectos de reforma do Código Penal e o encarceramento dos criminosos. Mas, assinala Foucault, quando se atinge os meados do século XIX, só uma destas modalidades constitui um paradigma moderno, civilizado e aceitável de punição. Porque razão terá uma passagem tão acentuada tido lugar num espaço de tempo tão curto – e o que é que isso nos pode dizer acerca das prisões enquanto instituição moderna – é a principal interrogação a que este livro vem responder. Abrindo com uma descrição detalhada da execução pública de um criminoso em 1757 – Robert-François Damiens, que atentara contra a vida do Rei Louis XV e foi esquartejado na Place de La Gréve, em Paris – Foucault propõe-se explicar a substituição do suplício por outras modalidades de punição, teoricamente mais eficazes e menos dispendiosas, no quadro do que designará como uma "nova economia do castigo". Trata-se de um programa de investigação ambicioso, porquanto o nascimento da prisão participa, conforme veremos, de um movimento histórico mais amplo e mais profundo, situado entre 1760 e 1840, durante o qual teriam emergido novas modalidades de intervenção sobre o corpo. Mais do que uma simples substituição, sugere Foucault, ter-se-ia então verificado um deslocamento do próprio objeto da operação punitiva, através da emergência de novos saberes e de novas tecnologias de poder, relativamente aos quais a prisão se irá revelar um campo de aplicação privilegiado e, simultaneamente,  um instrumento de aperfeiçoamento contínuo. Ao avançar o conceito de "poder disciplinar", Foucault opta por estabelecer um parentesco entre a forma-prisão e um conjunto de instituições com as quais aquela partilhava uma mesma economia do tempo e do espaço: o exército, a escola, o hospital e a fábrica. E, inevitavelmente, o nosso olhar sobre o conjunto dessas instituições nunca mais será o mesmo depois de lermos o que ele tem para nos contar a seu respeito.
3. Gilles Deleuze, Foucault  (Lisboa: Vega, 1987), 45.



III
Longe de corresponder a um mero resquício de barbarismo despótico, a prática do suplício estava intimamente associada ao entendimento do processo penal enquanto uma "máquina de produzir verdade",  através da qual se procurava fazer falar o corpo do acusado por via da tortura:
Sofrimento, confronto e verdade estão  interligados na prática da tortura: trabalham em comum o corpo do paciente. […] No século XVIII, a tortura judicial funciona nesta estranha economia, onde o ritual que produz a verdade acompanha o ritual que impõe a punição. O corpo interrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão da verdade. […] O corpo várias vezes supliciado assegura a síntese da realidade dos factos e da verdade da investigação, do crime e do castigo. [4]

O suplício não era apenas uma peça entre outras na grande engrenagem do aparelho judicial. Enquanto espetáculo ritualizado, assente numa  "arte quantitativa do sofrimento", a mecânica do suplício encontrava-se estritamente associada ao poder do príncipe, e os efeitos que através dela se visava alcançar eram inseparáveis do contexto das revoltas e guerras civis que haviam atravessado o século XVII. O suplício público nascera da necessidade imperiosa de encenar, através de rituais punitivos estritamente codificados, o exercício de um poder desmesurado do soberano sobre os corpos dos seus súbditos rebeldes. No âmbito da soberania absoluta, tal como concebida por autores como Jean Bodin ou Giovanni Botero, as funções de ordem pública não estavam totalmente separadas das funções de guerra, pelo que qualquer gesto de desobediência contra o Príncipe era encarado enquanto prelúdio de uma revolta que, no seu princípio, se apresentava indistinta da guerra civil. O suplício correspondia por isso a uma economia do castigo muito precisa, na qual o príncipe se empenhava em identificar os seus inimigos e a exibir face a eles, perante o olhar fascinado dos restantes súbditos, uma força de magnitude incomparavelmente superior. A função performativa deste dispêndio excessivo –  quase sumptuoso – da violência tinha um propósito preventivo: ao esquartejar em público um regicida, o príncipe esconjurava a ameaça da sedição, fazendo do seu próprio corpo um objeto inviolável, na precisa medida em que exibia a vulnerabilidade do corpo alheio. O suplício era uma parte não despicienda da armadura simbólica que o soberano envergava para se defender dos que contra ele conspiravam.
4. Michel Foucault, Vigiar e punir, 52-57.

IV
Um dos principais argumentos avançados por Foucault ao longo de Vigiar e punir é que a busca de um novo entendimento das práticas penais foi uma resposta à crise da economia punitiva característica do Antigo Regime. As execuções e os atos de tortura em público originavam frequentemente revoltas e distúrbios, relacionados com a identificação popular face aos condenados, mas davam também por vezes lugar a indultos e perdões judiciais, uma vez que os juízes e magistrados consideravam existir uma manifesta desproporção entre a severidade das penas e a gravidade dos crimes. Tornou-se por isso necessário conceber novas formas de castigo, que assegurassem o respeito pela lei e acautelassem a majestade do soberano, sem incorrer no risco de contribuir para a emergência de novas revoltas. Foucault resumirá o problema de maneira bastante clara, ao sublinhar que cada modalidade punitiva pressupõe diferentes tipos de subjetivação, correspondentes a diferentes táticas de governo:
De forma muito resumida, pode dizer-se que, no direito monárquico, a punição é um cerimonial de soberania; utilizar as marcas rituais da vingança que aplica sobre o corpo do condenado; e, aos olhos dos espectadores, exerce um efeito de terror tanto mais intenso porquanto descontínuo, irregular e sempre acima das suas próprias leis, a presença física do soberano e do seu poder. No projeto dos juristas reformadores, a punição é um processo para requalificar os indivíduos enquanto sujeitos de direito; utiliza não marcas, mas signos, conjuntos codificados de representações, cuja circulação rápida e a aceitação mais universal possível devem ser asseguradas pelo castigo. Por último, no projecto de instituição prisional que então se elabora, a punição é uma técnica de coerção dos indivíduos; utiliza processos de adestramento dos corpos – não dos signos – com os traços que deixa, na forma de hábitos, no comportamento; e pressupõe a aplicação de um poder específico de gestão da pena. […] O corpo que se suplicia, a alma cujas representações são manipuladas, o corpo adestrado: temos aqui três séries de elementos que caracterizam os três dispositivos que se confrontam na segunda metade do século XVIII. [5]

Foi a progressiva ineficácia do suplício, e não uma alteração ao nível da sensibilidade das elites, que levou um conjunto de juristas influenciados pelo Iluminismo a procurar alternativas. É nos textos desses juristas –homens como Beccaria, Servan, Dupaty e outros – que irá emergir, ao longo do século XVIII, aquilo Foucault designará enquanto uma "penalidade do incorporal", ela própria associada a um deslocamento do objeto da operação punitiva:
Sob a designação de crimes e delitos, continuam a ser julgados objetos jurídicos definidos pelo Código, mas, ao mesmo tempo, julgam-se paixões, instintos, anomalias, enfermidades, inadaptações, efeitos do meio ambiente ou da hereditariedade; punem-se agressões, mas através destas pune-se também a agressividade; violações, mas simultaneamente perversões; assassínios que são também pulsões e desejos. [6]

Este deslocamento é por sua vez inseparável da emergência de um novo regime de verdade, associado à prática forense e possibilitado pelo encontro entre novos saberes punitivos e novas técnicas de dominação. Já não são apenas os aspetos propriamente jurídicos que estão em causa no momento de ditar uma sentença judicial, uma vez que a operação penal se socorre crescentemente de elementos e personagens extrajurídicos, seja para determinar causalidades ou para delimitar a normalidade de um determinado comportamento, seja para avaliar mudanças ou prever desenlaces futuros. Para que os seus efeitos se vejam multiplicados e a sua legitimidade permaneça indiscutível – num momento histórico em que a secularização subtrai progressivamente ao poder temporal o seu suporte teológico – a justiça ver-se-á forçada a requalificar-se pelo saber. Foucault avançará a partir dessa constatação um enunciado inconfundível: "não há relação de poder sem constituição relativa de um campo de saber, nem saber que não pressuponha e não constitua simultaneamente relações de poder". [7]
5. Michel Foucault, Vigiar e punir, 152-153.
6. Michel Foucault, Vigiar e punir, 24.
7. Michel Foucault, Vigiar e punir, 35.



V
A conceção de uma nova economia punitiva tornava-se tanto mais urgente quanto se desenrolava então igualmente uma transformação significativa ao nível daquilo que Foucault designa como "ilegalidades populares". Entre o final do século XVIII e o princípio do século XIX, assiste-se à passagem de um paradigma de ilegalidade centrado no conflito entre diferentes esferas de direitos, característico do Antigo Regime e relativamente tolerado pelas instâncias judiciais, a uma "ilegalidade dos bens", estreitamente associada ao desenvolvimento da produção e ao aumento e concentração das riquezas. Isso irá exigir métodos mais rigorosos de vigilância e um policiamento mais apertado da população. No quadro de uma "valorização jurídica e moral mais intensa das relações de propriedade", tornar-se-á imperioso aplicar de maneira mais eficaz, mais constante e mais rigorosa o poder de punir, de forma a garantir um "controlo penal mais apertado do corpo social". Para assegurar o funcionamento pleno das relações de propriedade, no quadro da nova economia política capitalista, é necessária uma justiça mais perspicaz e mais afinada, capaz de penetrar mais fundo no terreno dos comportamentos sociais. Para tornar funcional uma acumulação de capital que exige também uma acumulação de corpos, torna-se necessário substituir a antiga economia punitiva – caracterizada por uma "multiplicidade confusa e lacunar das instâncias", que originava "castigos ostensivos nas suas manifestações e inconsistentes na sua aplicação" – por novas estratégias e técnicas, caracterizadas pela continuidade e pela permanência. Foucault irá encontrar uma fonte particularmente útil nos escritos de Patrick Colquhoun, um comerciante escocês que exerceu funções de magistrado em Londres, na transição do século XVIII para o Século XIX, antes de se tornar superintendente da polícia fluvial. Nos seus relatórios sobre a delinquência na zona ribeirinha da cidade, Colquhoun identifica um conjunto de problemas resultantes da acumulação de capital: o desenvolvimento dos portos, o aparecimento de grandes armazéns de mercadorias, a organização de oficinas de grandes dimensões onde matérias-primas e ferramentas se encontravam ao alcance de uma multidão de indivíduos aos quais não pertenciam. De modo a fazer face aos riscos que esta concentração de bens apresenta, para atalhar a sua vulnerabilidade face a uma ilegalidade popular cada vez mais especializada (mas que nem por isso deixava de gozar de uma simpatia relativamente alargada), Colquhoun defende a necessidade de substituir os corpos repressivos do Antigo Regime por novas modalidades de controlo social. É nessa encruzilhada histórica que a reforma da penalidade irá emergir, dirigida, por um lado, à eliminação das práticas punitivas que emanavam do poder ilimitado do soberano e, por outro, à tolerância para com as ilegalidades populares, profundamente incrustada nas instâncias judiciais do Antigo Regime. Na segunda metade do século XVIII, em França, assistimos a argumentos que correm na mesma direção. O magistrado e fisiocrata Le Trosne argumentará, a propósito da vagabundagem (até aí em larga medida tolerada), que a propriedade deve ser protegida da ameaça que constitui a existência de uma população ambulante e ociosa, desprovida de meios para assegurar a sua própria subsistência e, por isso mesmo, apostada em fazê-lo à custa dos meios alheios. O vagabundo é, segundo Le Trosne, "infinitamente mais perigoso para a sociedade" do que o lobo, por cuja cabeça se oferecem 10 libras de recompensa, pelo que devem ser reunidos os meios para lhe fazer frente, limitando-lhe a liberdade, controlando-lhe os movimentos e prescrevendo-lhe um trabalho que o torne útil à sociedade. Como assinala Foucault, "a luta pela delimitação do poder de punir articula-se diretamente com a exigência de se submeter o ilegalismo popular a um controlo mais apertado e mais constante" [8]. Eficaz no que toca a defender a coroa das ameaças de sedição, o suplício é incapaz de assegurar uma proteção adequada à propriedade dos seus súbditos. Para esse efeito, a justiça deve chamar a si funções mais ambiciosas, instrumentos mais eficazes, um alcance mais generalizado. Já não se trata meramente de punir, mas também de prevenir o gesto que exige a punição. 
8. Michel Foucault, Vigiar e punir, 103.

VI
Apesar de se deter longamente nos projetos dos reformadores do código penal, Foucault faz questão de sublinhar que eles pouco nos dizem acerca da emergência da forma-prisão. O seu interesse pelos textos dos juristas resulta antes do facto de a penalidade encontrar aí um novo princípio de legitimação, ao converter o criminoso em inimigo da sociedade: "O direito de punir passou da vingança do soberano para a defesa da sociedade"[9] . É neste quadro que irá emergir aquilo que Foucault denominará como uma "semiotécnica da punição". Nos Códigos Penais adotados em vários países europeus, entre o final do século XVIII e o princípio do século XIX, a punição passou a estruturar-se em torno de um princípio de cálculo, uma avaliação minuciosa dos custos e benefícios de cada ação. Através da codificação exaustiva dos delitos e das penas, por via da qual o exemplo deixava de ser um ritual para se converter num "signo que serve de obstáculo", procurava-se delimitar da maneira mais rigorosa possível o poder de punir, subordinando-o a um "horizonte de certeza e verdade" produzido no âmbito do julgamento. Simultaneamente, organizava-se um campo de prevenção dos delitos, por via daquilo a que Foucault chamou "tecnologia da representação", ou seja, a circulação incessante de discursos e signos que estabeleciam uma correlação entre os atos ilícitos e a inevitabilidade da respetiva punição. Através desta nova economia punitiva, os reformadores pretendiam assegurar o funcionamento harmonioso de uma sociedade concebida em moldes iluministas. A justiça devia produzir cidadãos ordeiros, indivíduos virtuosos, sujeitos racionais.  Quando olhamos para as modalidades punitivas avançadas por estes reformadores, no entanto, a ausência da prisão torna-se imediata e conspicuamente evidente. Com efeito, após ter assinalado a crise do suplício enquanto prática punitiva, Foucault argumentará que a mesma não foi resolvida a favor dos projetos de reforma penal, mas antes reconfigurada no âmbito da emergência do poder disciplinar. 
9. Michel Foucault, Vigiar e punir, 105.



VII
Apesar de a semiotécnica da punição ter permanecido no horizonte dos magistrados e dos juízes ao longo de todo o século XIX, uma fenomenologia inteiramente distinta do crime – e dos seus sujeitos – conduziria ao nascimento da prisão e a uma nova tecnologia política do corpo. Foucault chama a atenção para o facto de a prisão ter sido encarada pela maioria dos intelectuais, ao longo do século XVIII, enquanto o instrumento por excelência do despotismo, o lugar onde se encerravam os espíritos-livres para os impedir de se manifestarem em público. É a reconfiguração do calabouço em máquina punitiva e disciplinar que irá ocupar o que resta do seu estudo sobre o nascimento das prisões. Pratica-se dentro das prisões, tal como pretendiam os reformadores, uma "economia calculada das punições". Mas esta obedece agora a propósitos específicos muito distintos e, mais importante, mobiliza um conjunto de técnicas diferentes daquelas que eram prescritas nos Códigos Penais. O Rasphuis de Amsterdão, fundado em 1596, é identificado por Foucault enquanto o ponto de emergência dos novos modelos de encarceramento que viriam a constituir o paradigma dominante no século XIX. Caracterizado pelo emprego estrito do tempo, por variados sistemas de interdições e obrigações, bem como por uma vigilância contínua, acompanhada de exortações e leituras espirituais, o Rasphuis corresponde, segundo Foucault, ao ponto de encontro "entre a teoria, característica do século XVI, de uma transformação pedagógica e espiritual dos indivíduos por meio de um exercício contínuo, e as técnicas penitenciárias imaginadas na segunda metade do século XVIII". [10]
Simultaneamente, no quadro de uma busca teológica de regeneração através da introspeção, procura-se transformar os criminosos numa força de trabalho produtiva, combinando a coerção e a pedagogia, de forma a reconstituí-los enquanto homus oeconomicus. A prisão torna-se um "observatório permanente", um "aparelho de conhecimento". Toda uma tecnologia do corpo é aí desenvolvida, não já através de "jogos de representações", mas antes de "formas de coerção, esquemas de condicionalismo aplicados e repetidos", suportados em novos saberes acerca do sujeito-encarcerado. Ela contribui, à sua maneira, para o alastramento das técnicas concebidas para disciplinar os corpos, crescentemente identificados enquanto uma matéria passível de ser manipulada, modelada, subjugada, forçada a obedecer:
Estes métodos que permitem o controlo minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante das suas forças e que lhes impõem uma relação de docilidade, podem ser designados por «disciplinas». Desde há muito que existem numerosos processos disciplinares –nos conventos, nos exércitos e também nas oficinas. No entanto, nos séculos XVII e XVIII, as disciplinas tornaram-se fórmulas gerais de domínio. [11]

Desse ponto de vista, o encarceramento revelou-se uma táctica de governo essencial. A prisão produzirá o delinquente, da mesma forma que o hospital produzirá o doente, o exército o soldado, a escola o aluno e a fábrica o trabalhador.
10. Michel Foucault, Vigiar e punir, 141.
11. Michel Foucault, Vigiar e punir , 159.

VIII
No quadro do poder disciplinar, o corpo torna-se alvo de múltiplos investimentos,  como uma máquina cuja força pode ser multiplicada e cujas habilidades podem ser desenvolvidas, através de "todo um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares", condensando uma variedade de processos aperfeiçoados para controlar ou corrigir as suas operações. É essa articulação de técnicas assentes numa "anatomia política do pormenor" que encontrará na prisão um ponto de aplicação privilegiado, mas de modo algum exclusivo. Como Foucault assinala, trata-se de assegurar uma correlação ótima entre docilidade e utilidade:
O momento histórico das disciplinas é quando nasce uma arte do corpo humano, que não visa apenas o desenvolvimento das suas capacidades, nem o aprofundamento da sua sujeição, mas a formação de uma relação que, no mesmo mecanismo, o torna tanto mais obediente quanto mais útil e inversamente. Forma-se então uma política das coerções, que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada dos seus elementos, dos seus gestos e dos seus comportamentos. […] A disciplina fabrica corpos submetidos e exercitados, corpos «dóceis». A disciplina aumenta a força do corpo (em termos económicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). […] Se a exploração económica separa a força e o produto do trabalho, pode dizer-se que a coerção disciplinar estabelece no corpo o laço coercivo entre uma aptidão aumentada e um domínio acrescido. [12]

Através de uma nova arte da distribuição dos indivíduos pelos espaços, de novas formas arquitetónicas simultaneamente funcionais e hierárquicas, como sejam os colégios, os hospitais ou as casernas militares, torna-se possível conhecê-los, dominá-los e utilizá-los como nunca antes. O nascimento da fábrica, enquanto forma específica de organização espacial da produção, é igualmente inseparável desta nova forma de conceber os corpos e as suas potencialidades. Como nos diz Foucault, na "origem da grande indústria encontramos, sob a divisão do processo de produção, a decomposição individualizante da força de trabalho" que as repartições do espaço disciplinar asseguram com uma eficácia até aí desconhecida. Torna-se assim possível assegurar uma espécie muito particular de síntese, um laço coercivo entre o corpo e o aparelho de produção:
Esta combinação cuidadosamente calculada das forças exige um sistema rigoroso de comando. Toda a actividade do indivíduo disciplinado deve ser pontuada e sustentada por injunções cuja eficácia  assenta na brevidade e na clareza; a ordem não tem de ser explicada, nem sequer formulada; é necessário e suficiente que desencadeie o comportamento desejado. […] A táctica, arte de construir, com os corpos localizados, as atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das forças diversas é aumentado pela sua combinação calculada, é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar. [13]

As disciplinas têm como propósito transformar, segundo um conjunto de procedimentos rigorosos, "as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades ordenadas", através da organização metódica do tempo, do estabelecimento de ritmos, da atribuição de ocupações. Define-se, diz Foucault, uma "espécie de esquema anatómico-cronológico do comportamento", por via do qual o poder penetra o corpo, segmentando as atividades e os gestos em operações simples, tendo em vista o seu aperfeiçoamento e a sua aceleração, a eficácia de cada gesto, bem como a relação ótima a estabelecer entre o corpo e o objeto que este manipula. É no quadro das instituições disciplinares que se torna possível corresponder às solicitações cada vez mais ambiciosas da economia política:
À medida que o aparelho de produção se torna mais importante e mais complexo, à medida que aumentam o número dos operários e a divisão do trabalho, as tarefas de controlo tornam-se mais necessárias e mais difíceis. Vigiar passa a ser uma função definida, mas que deve ser parte integrante dos processos de produção; deve estender-se a todo o processo. Torna-se indispensável pessoal especializado, constantemente presente e distinto dos operários. […] A vigilância torna-se um operador económico decisivo, na medida em que é, simultaneamente, uma peça interna do aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar. [14]

Foucault converge aqui com um conjunto de autores que lhe são contemporâneos, como Mário Tronti, E.P. Thompson ou Karl-Heinz Roth, todos eles empenhados, cada um à sua maneira, em desnaturalizar as relações de exploração e dominação que constituem o trabalho assalariado. "Enfim, a grande indústria e a sua ciência não são", escrevia Tronti em 1966, "o prémio para quem vence a luta de classes. São o próprio terreno desta luta"[15]. Sob a aparente tranquilidade da exploração quotidiana, assente num conjunto de técnicas de dominação institucionalizadas ao ponto de se tornarem quase invisíveis, permanece latente a ameaça de uma guerra civil generalizada. É também para esconjurar essa ameaça que a forma-prisão conhecerá sucessivas reconfigurações e se expandirá, no sentido de responder às múltiplas formas de recusa que teimam em bloquear a grande engrenagem da sociedade disciplinar. Ao ponto de se tornar difícil identificar o momento preciso em que esta se converte numa realidade carcerária generalizada e tudo se assemelha à prisão.
12. Michel Foucault, Vigiar e punir , 160.
13. Michel Foucault, Vigiar e punir , 192-194.
14. Michel Foucault, Vigiar e punir, 202-203
15. Mario Tronti, Operários e Capital (Porto: Afrontamento, 1976), 7.



IX
Vigiar e produzir tornaram-se tarefas indissociáveis, peças de uma mesma máquina, condição necessária da acumulação de capital num momento em que todo o trabalho tende a converter-se em trabalho abstrato. É nesse quadro que irá emergir aquilo que Foucault designará por "dispositivo panóptico". Jeremy Bentham, filósofo utilitarista e reformador, inspirara-se nos projetos desenvolvidos pelo seu irmão, Samuel Bentham (um Engenheiro que desenhava oficinas e portos na Rússia), para conceber o Panopticon, um conjunto arquitetónico no qual uma torre, colocada no centro de um edifício circular, permitiria a um único indivíduo monitorizar todo o espaço à sua volta sem ser visto. Um  aparelho capaz de coagir por meio do olhar, concentrando em si um conjunto de "pequenas técnicas de vigilâncias múltiplas e entrecruzadas", o panóptico seria, segundo Foucault, "o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal; o seu funcionamento, livre de qualquer obstáculo, resistência ou conflito, pode ser representado como um puro sistema arquitetónico e ótico: na verdade, é uma figura de tecnologia política que pode e deve ser distinguido de qualquer uso específico." [16].  Por via deste diagrama - essa "máquina abstracta" que constitui, segundo Deleuze, o "mapa dos relacionamentos de força" e da respetiva intensidade e densidade, que "passa a cada instante por todo e qualquer lugar" – a dominação efetuar-se-á segundo "as leis da óptica e da mecânica, segundo todo um jogo de espaços, de linhas, de ecrãs, de feixes, de graus, e sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, à força e à violência." O Panopticon é uma "máquina maravilhosa que, a partir dos mais diferentes desejos, fabrica efeitos homogéneos de poder", garantindo a sujeição dos corpos:
De modo que não é necessário recorrer a meios de força para forçar o condenado ao bom comportamento, o louco à calma, o operário ao trabalho, o aluno à aplicação, o doente à observância dos regulamentos. […] Por isso mesmo, o poder externo pode perder os seus pesos físicos; tende ao incorpóreo; e quanto mais se aproxima desse limite, mais os seus efeitos são constantes, profundos, adquiridos de uma vez por todas, incessantemente repetidos: vitória perpétua que evita qualquer confronto físico e que está sempre previamente decidida. [17]

O panóptico opera simultaneamente enquanto um intensificador de poder e um amplificador de forças. É precisamente isso que o converte num diagrama por excelência do poder disciplinar. Continuação da guerra por outros meios, este corresponde igualmente ao conjunto dos instrumentos e técnicas que permitem esconjurar o seu espectro, reduzindo o exercício da força a um gesto de "normalização" cuja finalidade última é, precisamente, "dominar todas as forças que se formam a partir da própria constituição de uma multiplicidade organizada", neutralizando os "efeitos de contrapoder que dela nascem e que formam resistência ao poder que quer dominá-la: agitações, revoltas, organizações espontâneas, coligações – tudo aquilo que pode decorrer de conjunções horizontais". Operando por via de processos de individualização permanente, as disciplinas permitem, simultaneamente, aumentar a grandeza útil das multiplicidades e diminuir os inconvenientes que delas podem resultar:  
Uma multiplicidade, seja uma oficina ou uma nação, um exército ou uma escola, atinge o limiar da disciplina quando a relação de uma com a outra se torna favorável. Se a descolagem económica do Ocidente começou com os processos que permitiram a acumulação do capital, pode dizer-se, talvez, que os métodos para gerir a acumulação dos homens permitiram uma descolagem política relativamente a formas de poder tradicionais, rituais, dispendiosas, violentas, e que, rapidamente caídas em desuso, foram substituídas por toda uma tecnologia minuciosa e calculada da sujeição. De facto, os dois processos – acumulação dos homens e acumulação do capital – não podem ser separados; não teria sido possível resolver o problema da acumulação dos homens sem o desenvolvimento de um aparelho capaz de os manter e de os utilizar; inversamente, as técnicas que tornam útil a multiplicidade cumulativa dos homens aceleram o movimento de acumulação do capital. A um nível menos geral, as mutações tecnológicas do aparelho de produção, a divisão do trabalho e a elaboração dos procedimentos disciplinares, mantiveram um conjunto de relações muito próximas. Cada uma delas tornou a outra possível e necessária; cada uma serviu de modelo à outra. [18]

Postas as coisas nestes termos, a música que sai das engrenagens disciplinares e se confunde com o movimento incessante dos corpos, a quem marca o ritmo, só se torna plenamente reconhecível nos breves e insólitos momentos em que a revolta, a recusa, a insubordinação vêm paralisar a grande máquina do mundo, assegurando breves momentos de silêncio. A modernidade não seria então outra coisa que não essa incessante interrupção e continuação, na qual a melodia harmoniosa e repetitiva das disciplinas se vê intercalada por sons que os nossos ouvidos não aprenderam ainda a identificar, mas cuja irrupção pode ocorrer a qualquer momento.
16. Foucault, Vigiar e punir, 236.
17. Foucault, Vigiar e punir, 202-203.
18. Foucault, Vigiar e punir, 253.

X
As disciplinas desenvolveram-se com o propósito de reduzir a força política do corpo ao mesmo tempo que se aumentava a sua utilidade. E se o Direito das sociedades modernas fixava limites ao exercício da violência legítima, seria a máquina produzida pelo cruzamento entre as várias disciplinas a sustentar, reforçar e multiplicar a assimetria dos poderes, permitindo superar os limites que lhe eram traçados. "Na genealogia da sociedade moderna e com o domínio de classe que a atravessa", sustenta Foucault, as disciplinas "foram a contrapartida política das normas jurídicas segundo as quais o poder era redistribuído." É nesse contexto que se torna possível compreender o nascimento da prisão, bem como o estatuto primordial que Foucault lhe atribui, o de "máquina de produzir delinquentes". A prisão é o "lugar onde o poder de punir, que já não ousa exercer-se com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar à luz do dia como terapêutica e a sentença inscrever-se entre os discursos do saber." A natureza de classe do sistema judiciário surge com toda a clareza nos capítulos finais de Vigiar e punir, ilustrando novamente a natureza da política enquanto continuação da guerra por outros meios:
Houve uma generalização tripla das ilegalidades populares na viragem do século (e até para além de uma extensão quantitativa que é problemática e que não foi avaliada): trata-se da sua inserção num horizonte político geral, da sua articulação explícita com as lutas sociais; da comunicação entre diferentes formas e níveis de infração. Estes processos não seguiram, por certo, um desenvolvimento pleno; não se formou certamente, no início do século XIX, um ilegalismo maciço, simultaneamente político e social. No entanto, na sua forma esboçada e apesar da sua dispersão, foram suficientemente marcados para servirem de suporte ao grande medo de uma plebe que se julgava inteiramente criminosa e sediciosa, ao mito da classe bárbara, imoral e fora da lei que, do Império à monarquia de Julho, ensombra os discursos dos legisladores, dos filantropos ou dos estudiosos da vida operária. [19]

A vinculação da delinquência a uma classe social transporta-nos diretamente à noção, em voga na primeira metade do século XIX, de "classes perigosas". Será precisamente então que os representantes da burguesia francesa farão questão de explicitar, em plena Câmara de Deputados, que o aparelho judicial é um instrumento de dominação da sua classe sobre uma população crescentemente desprovida dos meios para assegurar a sua própria existência. É também nesse contexto que o parentesco entre a forma-salário e a forma-prisão pode ser claramente enunciada. O domínio – Foucault utiliza, em A sociedade punitiva, o termo "extracção" – sobre o tempo alheio revelar-se-á uma condição indispensável à acumulação de capital. Medida do valor no âmbito da economia política, o tempo converter-se-á gradualmente num terreno privilegiado da luta de classes. Se, seguindo o conselho de Foucault, aprendermos a escutar o bramido da batalha, para nele identificar os múltiplos combates, as vitórias e derrotas que tornaram possível essa forma específica de dominação que é o trabalho assalariado, talvez consigamos identificar, oculta sob a roupagem metafísica do progresso, a genealogia sangrenta do nosso tempo. Entre as múltiplas infâmias que aprendemos a tolerar, a prisão é, apenas e tão só, o lugar onde se condensa tudo o que há de errado naquilo a que chamamos "sociedade".
19. Foucault, Vigiar e punir, 317.


Ricardo Noronha
Ricardo Noronha (1979) é investigador do Instituto de História Contemporânea (NOVA FCSH) e autor de A banca ao serviço do povo: Política e Economia durante o PREC (1974-75).

Ficha Técnica
Data de publicação: 09.10.2019
Edição #25 • Outono 2019 •