Geometria e angústia • Pedro Levi Bismarck





1.
Nada foi tantas vezes decretado morto na história da cidade como o arranha-céus, desde as primeiras construções em Chicago (nas últimas décadas do século XIX) até ao colapso das torres gémeas na sequência dos ataques do 11 de Setembro de 2001, a que o compositor alemão Karlheinz Stockhausen – num daqueles momentos de iluminação pueril que jamais devem ser confessados – chamou “a maior obra de arte de todos os tempos”. Uma afirmação cuja virtude está menos na sua crueldade do que na capacidade de identificar o arranha-céus enquanto unidade fundamental daquilo que poderíamos chamar a “dialéctica do absurdo” (para usar o título de um artigo do historiador Manfredo Tafuri) que é a metrópole na era do capitalismo, onde construção e destruição não são mais do que momentos inseparáveis do ciclo infinito de produção, acumulação, espectáculo e crise.

Quem melhor representou esse affair permanente entre arranha-céus e metrópole foi Rem Koolhaas no seu Manifesto Retroactivo em defesa do “manhattanism” e da “cultura da congestão”. Na capa da primeira edição de Delirious New York (1978), um desenho de Madelon Vriesendorp mostrava em flagrant delit dois arranha-céus, o Empire State Building e o Chrysler Building, surpreendidos na cama pelo Rockfeller Center. Observando a cena de frente, através de um grande janelão, como audiência desse espectáculo que é a metrópole, está, claro, a grande Manhattan.

Se, por um lado, o arranha-céus é o objecto sublime onde se condensam os valores do individualismo empreendedor do sonho americano, por outro lado, ele não é mais que a resolução arquitectónica de um problema colocado pela organização capitalista da metrópole. Neste sentido, o arranha-céus não é apenas expressão, mas instrumento da economia: uma verdadeira machine à capitaliser: uma máquina vertical de reprodução diabólica de espaço e, obviamente, de capital.  Parafraseando Guy Debord, poderíamos dizer que a metrópole é o capital em tal grau de acumulação que se torna arranha-céus.

No entanto, se a tabula rasa das cidades americanas aceitava naturalmente a reprodutibilidade do arranha-céus – já que este não é mais que a projecção vertical da grelha –, na Europa a inscrição da chamada “construção em altura” constituía a chegada iminente de um futuro para o qual a burguesia não estava preparada. Sintoma óbvio é o manifesto lançado, em 1887, por um grupo de artistas e intelectuais (Maupassant, Gounod e Garnier) insurgindo-se contra a “inútil e monstruosa” torre Eiffel que ameaçava “desonrar” a cidade de Paris. A torre, como escrevia algures Giorgio Agamben, visível de todo o lado, não só dava um golpe de misericórdia ao carácter labiríntico da cidade, como fazia de Paris a mercadoria mais preciosa exibida na Exposição Universal de 1889.

Uma querele que anunciava as polémicas que vão entreter o debate europeu a partir de 1920. Por um lado, a “construção em altura” apresentava-se como um elemento funcional fundamental, por outro lado, colocava problemas de circulação e congestão que não se ajustavam ao tecido urbano das cidades europeias, formadas por uma infinita acumulação de estratos históricos. De qualquer modo, o arranha-céus, ao romper com essa correlação histórica, transformava-se no sinal mais evidente do processo de dissolução da cidade burguesa e o espelho de uma metrópole capitalista em crescimento acelerado: desumanizada, irracional, reprodutora de capital e miséria, representada de forma paradigmática no filme Metropolis, de Fritz Lang, em 1927.

A questão de fundo que atravessava (e atravessa) este debate é o conflito entre as necessidades de expansão de capital que a metrópole oferece (mas também necessita) e as exigências de organização de sistemas urbanos, cada vez mais complexos, que não podem bloquear o investimento (a produção de mais-valia), mas também não podem permitir a sua expansão ilimitada à custa da sua própria dissolução enquanto estrutura produtiva e funcional. Para os grandes defensores do planeamento a torre foi sempre um obstáculo insuperável a uma organização racional da cidade, um elemento antieconómico, absurdo e arbitrário, expressão da utopia capitalista da auto-planificação e de um urbanismo de mão invisível dirigido unicamente pelas leis do mercado.

O chamado “índex arranha-céus” que coloca, lado a lado, o número de arranha-céus construídos e as crises financeiras dos últimos cem anos não é mais do que a constatação de uma relação efectiva: o Empire State Building (1931) foi inaugurado em plena Grande Depressão, após o crash da bolsa de Wall Street, em 1929; o World Trade Center foi inaugurado no meio do choque petrolífero de 1973; a torre Burj Khalifa (2010), no Dubai, foi inaugurada durante a última crise financeira global. Não se trata, simplesmente, de definir uma relação entre especulação imobiliária e ciclos de negócio, mas do papel gerador das bolhas imobiliárias nas crises financeiras: “As skyscrapers rise, markets fall”, podia ler-se numa notícia da CNN. A dialéctica do absurdo dos arranha-céus não é mais que a dialéctica do absurdo do próprio capitalismo: a reprodução contínua e cíclica dos movimentos de acumulação e despossessão, ascensão e queda, ecstasy e crash. Ou, como escrevia Federico García Lorca, no diário da sua viagem a Nova Iorque em 1929: “arquitectura extra-humana e ritmo furioso. Geometria e angústia.”

2.
Talvez, assim, seja possível reconhecer como a “construção em altura” se transformou nas cidades europeias num verdadeiro problema arquitectónico onde, ao contrário das suas congéneres americanas, a torre assumiu uma condição de ruptura e excepcionalidade relativamente à malha urbana consolidada e condensou em si todo um conjunto de questões funcionais, políticas, morais e estéticas. Lisboa não é excepção e, talvez, por isso, é maior a lista das torres que ficaram por realizar do que as realmente construídas. Basta recordar as três torres de Álvaro Siza para Alcântara (2003) ou o arranha-céus projectado por Norman Foster para a Avenida 24 de Julho (2004). Sem esquecer todo o registo polémico que envolveu a construção das Amoreiras, em 1985.
Um dos mais recentes objectos de controvérsia é a Torre em Picoas (FPM41), projectada por Barbas Lopes Arquitectos e que tem como promotor a Edifício 41 (antes denominada Torre da Cidade) e que pertence ao fundo FLIT, Fundo Lazer Imobiliário e Turismo, gerido pela ECS, Sociedade de Capital de Risco. O edifício de escritórios, com 17 andares e uma superfície total de cerca de 22.500 m2, ocupa um conjunto de quatro lotes no gaveto da Avenida Fontes Pereira de Melo com a Avenida 5 de Outubro e inclui uma intervenção urbana nas zonas adjacentes, assim como a criação de uma praça entre a Maternidade Alfredo da Costa e a Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves.

O projecto de arquitectura – vencedor de um concurso de ideias lançado pelo promotor em colaboração com a Câmara Municipal de Lisboa – tem a virtude de reconhecer e dialogar criticamente com a complexidade inerente a um programa deste tipo numa zona da cidade marcada pela malha urbana regular das “Avenidas Novas”. A isto não será estranho, o compromisso público e disciplinar dos fundadores deste atelier, Patrícia Barbas e, sobretudo, Diogo Seixas Lopes, autor, professor e curador, cujo desaparecimento constituiu uma perda irreparável.  A memória descritiva que acompanha o projecto é exemplar no modo como define critérios de racionalidade capazes de legitimar uma proposta que responde às exigências comerciais do promotor, mas, simultaneamente, procura intervir de forma estruturante no espaço urbano. A posição paradigmática assumida pelos arquitectos é de mediadores, reconhecendo a “forte expressão pública” da torre e a tarefa urbana de “reconquista do espaço público de Lisboa”, qualificando-o e redesenhando-o de forma a responder às transformações funcionais de uma zona considerada como Prime Central Business District. “Torre” e “praça” são, por isso, dois elementos intrínsecos e complementares da proposta, reflectindo-se mutuamente: a arquitectura e a cidade, o privado e o público.

Em pano de fundo, reconhece-se a ambição de um programa social-democrata: a relação harmoniosa e integrada entre intervenção empreendedora privada e políticas públicas, capazes tanto em captar investimento como em definir os mecanismos legais, urbanos e arquitectónicos aptos a enquadrá-lo e a controlá-lo. Mas trata-se, igualmente, da afirmação do arquitecto como agente público produtor de cidade (e não como mero construtor privado), do promotor como agente social responsável e, por fim, do poder público como entidade que actua em nome do bem comum. O desígnio racionalista de organização dessas forças está bem patente no desenho rigoroso do edifício, na sua composição interna e na relação com as linhas estruturantes da malha urbana. Mas esse desígnio insinua-se, igualmente, na lógica construtiva marcada pela economia do desenho e pelo ritmo quase obsessivo da modulação da fachada, que, na sua nudez, parece querer expor o edifício tal qual. No entanto, a afinidade miesiana sugerida não é senão aparente, já que os módulos da fachada não são tanto a revelação da lógica construtiva do edifício, mas uma pele que oculta a sua estrutura.

Ora, é precisamente na utilização dos módulos em vidro espelhado e alumínio bronze que o edifício revela a incapacidade de (re)conciliar as diferentes forças em acção. Todo o esforço racional do projecto é neutralizado por um ambíguo jogo de efeitos entre opacidade total (do alumínio) e espelhamento absoluto (do vidro). Se o objectivo do vidro espelhado parece ser o de suavizar a volumetria do edifício, camuflando-o, na verdade, ele não faz mais que expor a difícil relação entre torre e cidade.  Mas o paradoxo do espelho é que ele reflecte a realidade apenas para não se revelar a si próprio, produzindo um efeito de impenetrabilidade que não cessa de nos sugerir, tal como em Alice do Outro Lado do Espelho – o conto de Lewis Carroll –, que há sempre um Outro Lado, um mundo inexplorado de fantasia, ao qual nunca nos é concedida a possibilidade de aceder. Ora, se o vidro era, de facto, a grande utopia da arquitectura moderna, no seu desejo de transparência e igualdade, podemos dizer que o vidro espelhado, por sua vez, é a grande utopia da corporate architecture: dissimular a sua presença, tornar impenetráveis os seus mecanismos, colocar-se fora da esfera profana da cidade.

A opção pelo espelho assume que a mediação entre torre e cidade, isto é, entre privado e público, só pode ser realizável através de um permanente jogo de espelhos e que a ambição social-democrata, de racionalização das forças do capital na construção do espaço de todos, acaba irremediavelmente convertida num teatro de sombras, de simulacros e simulações, onde os processos políticos e económicos que produzem a cidade se tornam impenetráveis (por espelhamento ou por opacidade). Neste sentido, poder-se-á dizer que a linguagem racionalista e rigorosa do projecto cumpre a função ideológica de oferecer aos ciclos económicos – marcados pelo movimento permanente entre boom e crise – uma imagem de ordem, uma geometria, que dissimula a irracionalidade e a angústia inerente à sua lógica especulativa. Por outro lado, a simetria e a clareza poética entre público e privado não se coaduna com a realidade dos processos que circulam ambiguamente entre estas duas esferas: o infinito entre-tecer legislativo dos regulamentos, o jargão técnico-místico dos “cálculos de edificabilidade”, das “atribuições de crédito de construção”, das permutas e privatizações de terrenos, mas também, toda a mise en abyme de promotores, empresas, fundos imobiliários e sociedades de capital de risco, sediadas um pouco por todo o mundo e que tornam estes processos indiscerníveis, mesmo para o observador mais atento.

3.
Em suma, o compromisso dos arquitectos em reivindicar uma condição pública da sua tarefa de participação na produção da cidade é, hoje, uma tarefa urgente. Mas essa exigência não poderá ser realizada seguindo os pressupostos que fabricaram a cidade europeia social-democrata do pós-guerra. Desde logo, porque a crise financeira de 2008 significou a consolidação de um modelo económico e político neoliberal que assenta no desmantelamento dessas condições: a privatização de serviços e instituições públicas, a perda de capacidade do Estado em mediar e regular os fluxos cada vez mais globais de capital, sem esquecer a precariedade social e laboral generalizada.

Do outro lado das políticas urbanas de uma Lisboa alegremente cosmopolita está a incapacidade das instituições públicas em gerir os efeitos da alteração funcional da cidade às mãos da economia do turismo e, sobretudo, a incapacidade em conter processos de gentrificação e especulação imobiliária, onde a habitação se converteu – seguindo toda a lógica neoliberal – em pouco mais que um activo financeiro, debaixo de uma gestão de espaço e vida urbana desigual e desqualificada politicamente, cada vez mais exposta à geometria e à angústia dessa infinita dialéctica do absurdo que é, ainda hoje, a metrópole.


Nota da edição
Este texto foi publicado originariamente na Revista Electra nº2, Junho 2018.

imagem
Fotografia de Rita Barbosa.

Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto.

Ficha Técnica
Data de publicação: 08.07.2019
Edição #24 • Verão •