Vista do espaço, a mina chinesa Bayan Obo, onde 70% dos
minerais raros da Terra são extraídos e refinados, quase parece uma pintura. As
cornucópias das bacias de decantação radioactivas, com milhas de comprimento,
concentram as cores escondidas da Terra: verdes-azulados e ocres minerais do
género dos que um pintor utilizaria para lisonjear os governantes de um império
decadente.
Para responder às exigências do Green New Deal, que
propõe converter a economia dos E.U.A. numa economia sem emissões, alimentada a
energia renovável até 2030, será necessário que muitas mais minas como esta
sejam escavadas na crosta terrestre. Isto porque praticamente todas as fontes
de energia renovável dependem de minerais não-renováveis e, frequentemente, de
difícil acesso: os painéis solares utilizam índio, as turbinas usam neodímio,
as baterias usam lítio, e todos requerem kilotoneladas de aço, alumínio, prata
e cobre. A cadeia de fornecimento das energias renováveis é uma “macaca” em
torno da tabela periódica e em volta ao mundo. Para fabricar um painel solar de
alto rendimento, poderá ser necessário cobre (número atómico 29) do Chile,
índio (49) da Austrália, gálio (31) da China, e selénio (34) da Alemanha.
Muitas das mais eficientes turbinas eólicas de transmissão directa requerem uns
quantos quilos do metal raro neodímio, e há 63kg de lítio numa bateria de um
Tesla.
Não é por acaso que os mineiros foram, durante boa parte
dos séculos XIX e XX, a própria imagem da miséria capitalista – trabalho
exaustivo, perigoso e feio. Le Voreux, “a voraz” –era aquilo que Émile Zola
chamava à mina de carvão em Germinal,
o seu romance sobre a luta de classes numa pequena cidade mineira em França.
Coberta de colunas de fumo do carvão, a mina é simultaneamente labirinto e
minotauro, “agachada como uma besta maléfica no fundo do seu covil... expirando
ofegantemente em bafos cada vez mais lentos e profundos, como se estivesse com
dificuldades para digerir a sua refeição de carne humana”. Os monstros são
produtos da Terra na mitologia clássica, filhos de Gaia, nascidos em caves e
assombrados por uma raça cruel de deuses civilizadores. No capitalismo, no
entanto, o que é monstruoso é a Terra animada por essas energias civilizadoras.
Em troca desses tesouros terrestres – usados para alimentar comboios, navios e
fábricas – toda uma classe de pessoas é atirada aos fossos. A Terra em
aquecimento fervilha com tais monstros inventados por nós – monstros da seca e
da migração, da fome e da tempestade.
Em boa verdade, a energia renovável não é um refúgio. O
pior acidente industrial na história dos Estados Unidos, o incidente de Hawk’s
Nest em 1930, foi um desastre de energia renovável. Escavando uma entrada de
5km para uma central hidroeléctrica da Union Carbide, cinco mil trabalhadores
adoeceram ao acertar num espesso veio de Sílica, que encheu o túnel com uma
poeira branca cegante. Oitocentos acabaram por morrer de silicose. A energia
nunca é “limpa”, como Muriel Rukeyser deixa claro no épico poema documentário
que escreveu sobre Haws’s Nest, “The Book of the Dead”. “Quem corre nos cabos
elétricos?”, pergunta. “Quem fala em cada estrada?” A infraestrutura do mundo
moderno é forjada em sofrimento fundido.
Pontuada por “aldeias mortas” onde as plantações não dão
fruto, a região da Mongólia Interior, onde está situada a mina de Bayan Obo,
regista taxas de cancro ao nível de Chernobil. De resto, essas aldeias já
existem. Muitas mais virão se não fizermos nada em relação às transformações
climáticas. O que importam uma dúzia de aldeias mortas quando metade da terra
poderá tornar-se inabitável? O que importa o céu cinzento da Mongólia Interior
se a alternativa é tornar o céu um branco infinito com aerossóis sulfúricos,
como os cenários desesperados da geoengenharia imaginam? Moralistas, filósofos
de bancada, e menos-malistas poderão tentar convencer-vos de que estas
situações se resumem a uma espécie de impasse do eléctrico: não fazer nada e o
eléctrico acelera linha abaixo em direcção a uma morte em massa; fazer algo e
encaminhar o eléctrico para uma linha onde morra menos gente, mas onde se é mais
activamente responsável por estas mortes. Quando a sobrevivência de milhões ou
até milhares de milhões de pessoas depende deste balanço, umas quantas aldeias mortas
poderão parecer um compromisso aceitável, um pacto verde, um novo pacto. Mas as
transformações climáticas não se resolvem num simples impasse do elétrico. Pelo
contrário, são uma encruzilhada de linhas com mortes em massa a cada esquina.
Não é claro, porém, que consigamos extrair o suficiente
destas matérias do solo, dado o prazo apertado. Zero emissões em 2030
significaria produzir agora, não em cinco ou dez anos. A corrida para
disponibilizar novos fornecimentos será provavelmente feia, enquanto produtores
negligentes batalham para lucrar com os preços em alta, cortando em tudo o que
podem e instalando minas que são perigosas, insalubres e particularmente
poluentes. As minas requerem à partida um investimento massivo, e apresentam
tipicamente um fraco retorno do investimento feito, excepto no caso do tipo de boom de mercadorias que se pode esperar
que o Green New Deal produza. Pode demorar uma época ou mais até que as fontes
estejam desenvolvidas, e outra década até que façam lucro.
Não é tampouco claro em que medida os frutos dessas minas
nos ajudarão a descarbonizar, se o consumo de energia continuar a aumentar. O
facto de uns Estados Unidos incrustados de painéis solares não libertarem gases
de estufa, não significa que essas tecnologias sejam neutras em carbono. É
necessária energia para retirar esses minerais do chão, energia para
transformá-los em baterias e painéis fotovoltaicos e hélices gigantes para
ventoinhas eólicas, energia para substitui-los quando avariam. As próprias
minas são principalmente operadas por veículos movidos por combustíveis
fósseis. Os navios porta-contentores que atravessam o mundo com a carga dos
renováveis consomem tanto combustível que são os responsáveis por 3% das
emissões planetárias. Baterias e motores movidos a energia eléctrica para navios
de carga e aparelhos de construção mal estão no estágio de protótipos. E que
tipo de bateria massiva seria necessário para fazer um navio porta-contentores
atravessar o Pacífico? Talvez um pequeno reactor nuclear fosse melhor?
Contar emissões dentro de fronteiras nacionais, por
outras palavras, é como contar calorias apenas ao pequeno-almoço e almoço. Se
tornar a energia limpa nos E.U.A. fizer outros lugares sujos, é preciso então
acrescentar isso às contas. É certo que a soma do carbono será mais baixa do
que seria doutro modo, mas as reduções poderão não ser tão robustas como
pensado, especialmente se os produtores, ansiosos por lucrar com o jackpot
renovável, fizerem as coisas do modo mais barato e rápido possível, o que hoje
significa queimar combustíveis fósseis. Por outro lado, a reparação ecológica é
custosa de qualquer modo. Querem limpar essas bacias de decantação, enterrar os
resíduos debaixo de terra e evitar que os lençóis freáticos fiquem
contaminados? Serão necessários motores e provavelmente será preciso queimar
petróleo.
Consolidando a opinião científica, o mais recente
relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas projecta
que os biocombustíveis serão utilizados nesses casos – para a construção, a
indústria, e o transporte, sempre que os motores não forem facilmente
electrificados. Os biocombustíveis põem carbono no ar, mas é carbono que já foi
absorvido por plantas em crescimento, pelo que as emissões líquidas são zero. O
problema é que cultivar biocombustíveis requer terra que seria, doutra forma,
utilizada para cultivo, ou território selvagem dedicado à absorção de carbono.
Estão entre as menos densas fontes de energia. Seria necessário cultivar cerca
de 5 hectares para abastecer um único voo intercontinental. As emissões são
apenas o mais proeminente aspecto de uma crise mais ampla. A habitação humana,
o pastoreio e a indústria, ramificando-se através do que resta do território
selvagem da maneira mais devassante e destructiva, provocaram ondas de choque
nos reinos animal e vegetal. A mortandade em massa de insectos, com populações
decrescendo até quatro quintos em algumas zonas, é apenas uma parte das
repercussões. O mundo dos insectos é muito mal compreendido, mas os cientistas
suspeitam que estas mortandades e extinções são apenas parcialmente atribuíveis
às alterações climáticas, com o uso humano da terra e dos pesticidas como maior
culpado. Dos dois mil milhões de toneladas de massa animal do planeta, metade
são insectos. Retire-se os pilares do mundo dos insectos e a cadeia alimentar
colapsa.
Para substituir o actual consumo de energia dos EUA por
renováveis, seria necessário dedicar pelo menos 25-50% da sua massa terrestre
ao solar, eólicas e biocombustíveis de acordo com as estimativas feitas por
Vaclav Smil, o grande decano dos estudos energéticos. Haverá espaço para isso e
para a expansão da habitação humana? Para isso e para pastoreio de uma
indústria massiva de carne e lacticínios? Para isso e para a floresta que necessitamos
para remover carbono do ar? Não, caso o capitalismo continue a fazer o mesmo
que sempre fez – crescer. A lei do capitalismo é a lei do mais – mais energia,
mais coisas, mais materiais. Introduz eficiências apenas para pilhar mais
eficientemente o planeta. Não há solução para a crise climática que deixe
intactas as pretensões capitalistas de crescimento. E isto é o que o Green New
Deal, um termo cunhado pelo neoliberal oleoso Thomas Friedman, não respeita.
Pensa que é possível manter o capitalismo, manter o crescimento, mas remover os
efeitos prejudiciais. As aldeias mortas estão aí para provar que não é
possível. Não há rosas que cresçam nesse arbusto.
Os mineiros no Chile, China e Zâmbia irão escavar a terra
por mais do que apenas o fabrico de cinquenta milhões de painéis solares e
eólicas, no entanto, visto que o Green New Deal também propõe reconstruir a
grelha de energia de uma forma mais eficiente, actualizando os edifícios
segundo padrões ambientais mais elevados e, finalmente, desenvolver uma infraestrutura
de transportes de baixo carbono, baseada em veículos eléctricos e linhas de
alta velocidade. Isto implicaria, escusado será dizer, uma monumental
utilização de materiais intensivos em carbono como o betão e o aço. Triliões de
dólares de matéria-prima teriam de ser importados para os Estados Unidos para
se moldarem em carruagens de comboio e carros eléctricos. Escolas e hospitais,
também, tendo em conta que para além destas iniciativas verdes o NPV propõe
também sistema de saúde universal e educação gratuita, para além de empregos
com um salário condigno garantidos.
Nada de novo em política é verdadeiramente e
completamente novo, e não será, portanto, uma surpresa que o Green New Deal
recue até aos anos 30, do mesmo modo que os gilets
jaunes em França reanimam o cadáver da Revolução Francesa e fazem-no dançar
debaixo do Arco do Triunfo. Entendemos o presente e o futuro através do
passado. Como Marx aponta n’O 18 de
Brumário de Luís Bonaparte, as pessoas “fazem a sua própria história, mas
não a fazem como lhes apetece; não o fazem sob circunstâncias pré-seleccionadas,
mas sob circunstâncias existentes, dadas e transmitidas pelo passado.” De modo
a fazer novas formas de luta inteligíveis, os seus partidários olham para o
passado, “tomando de empréstimo os seus nomes, slogans de luta, e práticas, de
modo a apresentar esta nova cena da história do mundo numa linguagem emprestada
e num disfarce honrado pelo tempo”. O “novo” do Green New Deal deve, portanto,
ser expresso numa linguagem decididamente velha, apelando a um trabalhismo obsoleto
e ao estilo gráfico dos posters do WPA.
Este jogo de fantasias pode ser progressivo em vez de
regressivo, desde que consista em “glorificar novas lutas, e não em parodiar as
antigas; em amplificar a tarefa da imaginação, e não em retirar-se da sua solução
na realidade; em encontrar uma vez mais o espírito de revolução, e não em fazer
marchar uma vez mais o seu fantasma”. No sentido contrário, no advento das
revoluções de 1848, quando Marx escrevia, a simbologia da Revolução Francesa
tinha o efeito de sufocar o que quer que houvesse de revolucionário nesse
momento. O sobrinho de Napoleão Bonaparte, Napoleão III, era uma pura paródia
do libertador da Europa. Do que a Europa necessitava era de uma ruptura
radical, não de continuidade:
“A
revolução social do século dezanove não pode retirar a sua poesia do passado,
mas apenas do seu futuro. Não pode começar antes de se despir de todas as
superstições do passado. As revoluções precedentes precisaram de recordações da
história passada do mundo para abafar o seu próprio conteúdo. A revolução do
século dezanove deverá permitir que os mortos enterrem os seus mortos de modo a
alcançarem o seu próprio conteúdo. Aí, a frase foi para lá do conteúdo – aqui,
o conteúdo vai para além da frase.”
Ser-nos-ia útil guardar estas palavras em mente, durante
as próximas décadas, para evitarmos recuar das verdadeiras soluções e insistir
em soluções fantasiosas. Na verdade, o projecto do Green New Deal não é em nada
semelhante com o New Deal dos anos 30, a não ser nos seus aspectos mais
superficiais. O New Deal foi resposta a uma emergência económica imediata, a
Grande Depressão, e não a uma futura catástrofe climática: o seu principal
objectivo era restaurar o crescimento numa economia que tinha encolhido em 50%
e na qual uma em cada quatro pessoas estava desempregada. O desígnio do New
Deal era fazer com que o capitalismo fizesse aquilo que já pretendia fazer: pôr
as pessoas a trabalhar, explorá-las, e depois vender os produtos do seu próprio
trabalho. O Estado era necessário como catalisador e mediador, estabelecendo um
equilíbrio correcto entre lucro e salários, essencialmente fortalecendo a força
do trabalho e enfraquecendo a do patronato. Para lá de necessitar de dispêndios
de capital francamente maiores, o Green New Deal tem uma ambição muito mais
difícil: em vez de pôr o capitalismo a fazer o que já pretende fazer, tem de
convencê-lo a perseguir um rumo que será, certamente, prejudicial a longo prazo
para os detentores do capital.
Enquanto que o New Deal precisava apenas de restabelecer
o crescimento, o Green New Deal necessita de gerar crescimento e reduzir as
suas emissões. O problema é que o crescimento e as emissões estão, em
praticamente toda e qualquer medida, profundamente correlacionados. Enquanto
reforma, o Green New Deal corre, portanto, o risco de se tornar um trabalho de
Sísifo, empurrando diariamente o penedo da redução de emissões até ao topo da
colina, apenas para ver uma economia em crescimento, devoradora de energia, a
derrubá-lo de novo, a cada noite, até ao fundo da encosta.
Os advogados do crescimento verde prometem uma “dissociação
absoluta” entre as emissões e o crescimento, onde cada unidade adicional de
energia não acrescenta C02 à atmosfera. Mesmo se tal coisa fosse
tecnologicamente possível, mesmo se fosse possível gerar energia com zero ou
baixa emissão não apenas em quantidade adequada, mas em excesso das actuais
necessidades, tal dissociação requereria muito mais controlo sobre o
comportamento dos capitalistas do que o New Deal alguma vez alcançou.
Franklin Delano Roosevelt e a sua coligação no Congresso
exerceram um controlo modesto sobre as corporações através de um processo de “poder
compensatório”, nas palavras de John Kenneth Galbraith, fazendo pender o campo
para enfraquecer os capitalistas em relação aos trabalhadores e consumidores,
tornando o investimento mais apelativo. O Estado levou a cabo investimento
directo – construindo estradas, pontes, centrais eléctricas, parques e museus – mas
fê-lo não para superar o investimento privado, mas apenas para criar “para
sempre um padrão contra a extorsão”, na formulação tonificada de FDR. As
centrais eléctricas públicas, por exemplo, determinariam o preço verdadeiro
(inferior) da electricidade, impedindo que os monopólios energéticos
inflacionassem o preço.
Os partidários do Green New Deal embandeiram este aspecto
do New Deal, visto ser ostensivamente tudo aquilo que podem propor. A Tennesee
Valley Authority, uma companhia energética pública ainda em funcionamento, é o
mais famoso destes projectos. Infraestrutura pública, energia limpa,
desenvolvimento económico – a TVA combinou vários destes elementos essenciais para
o Green New Deal. Construindo barragens e centrais hidroeléctricas ao longo do
rio Tennessee, providenciou energia limpa e barata a uma das regiões mais
economicamente deprimidas do país. As centrais hidroeléctricas eram, por sua
vez, ligadas a fábricas produtoras de nitratos, um material intensivo no
dispêndio de energia, necessário tanto para fertilizantes como para explosivos.
Os salários e o rendimento das colheitas aumentaram, o preço da energia
diminuiu. A TVA trouxe energia limpa, fertilizante barato, e bons trabalhos a
um sítio previamente conhecido pela malária, pela má qualidade dos solos, por
salários inferiores a metade da média nacional, assim como por uma taxa
alarmante de desemprego.
O problema de ter este cenário como quadro de referência
para o Green New Deal é que as renováveis não são massivamente mais baratas do
que os combustíveis fósseis. O Estado não pode proclamar o caminho para
energias baratas e renováveis satisfazendo consumidores com custos inferiores e
produtores com lucros aceitáveis. Outrora, muitos acreditavam que o esgotamento
das reservas de petróleo e carvão nos salvariam, aumentando o preço dos
combustíveis fósseis acima dos renováveis e forçando a mudança enquanto
necessidade económica. Infelizmente, esse ponto messiânico afastou-se no tempo assim
que novas tecnologias de perfuração, introduzidas na última década, tornaram
possível fracturar [to frack] petróleo do xisto e recuperar
reservas que haviam sido esgotadas. O preço do petróleo permaneceu teimosamente
baixo, e os E.U.A. estão agora, para surpresa de muitos, a produzir mais do
qualquer outro país. Os cenários apocalípticos do “pico petrolífero” tornaram-se
uma curiosidade do virar-do-milénio, como o vírus Y2K ou Al Gore. Peço
desculpa, mas apocalipse errado.
Alguns dirão que as renováveis podem competir com os
combustíveis fósseis no mercado-livre. O vento, a hidroeléctrica e a geotermal
tornaram-se, é verdade, fontes de electricidade mais baratas, nalguns casos
mesmo mais baratas que o carvão e o gás natural. Mas não são ainda suficientemente
baratas. Isso porque, de modo a levar os capitalistas fósseis à falência, os
renováveis terão de ser capazes de superar os combustíveis fósseis por mais de
uns cêntimos por Kilowatt-hora. Há triliões de dólares enterrados na
infraestrutura da energia fóssil e os detentores desses investimentos
escolherão invariavelmente recuperar algum desse investimento, em vez de
nenhum. Para empurrar o valor desses activos ao zero e forçar os capitalistas
da energia a investir em novas fábricas, não chega que as renováveis sejam mais
baratas, mas terão de ser massivamente mais baratas, impossivelmente mais
baratas. Pelo menos, essa é a conclusão a que chega um grupo de engenheiros da
Google formado para estudar o problema. As tecnologias existentes nunca serão
suficientemente baratas para levar à bancarrota as centrais eléctricas a carvão:
para tal, seria necessário algo que faça hoje parte da ficção científica, como
a fusão a frio. Isto não se deve apenas ao custo do investimento já feito, mas
também porque a electricidade produzida pelo solar e pelo vento não é
“despachável” à ordem. Está apenas disponível quando e onde o sol brilha e o
vento sopra. Se a quisermos a pedido, será necessário armazená-la (ou transportá-la
ao longo de milhares de quilómetros) e isso custará caro.
A maior parte dirá que a resposta ao problema está na
taxação de energias poluentes ou na sua interdição definitiva, em simultâneo
com a subsidiação das limpas. Um imposto do carbono, judiciosamente aplicado,
pode inclinar a balança em favor das renováveis até que estas sejam capazes de
superar as energias fósseis por si só. Novas fontes e infraestrutura fósseis
podem ser proibidas e a receita dos impostos utilizada para pagar a investigação
de nova tecnologia, melhorias eficientes, assim como subsídios para os
consumidores. Mas agora, falamos de algo diferente do New Deal, que proclama o
caminho de um capitalismo altamente produtivo no qual lucros e salários podem
aumentar em simultâneo. Há 1.5 triliões barris de reservas comprovadas de
petróleo no planeta, de acordo com alguns cálculos –cerca de 50 triliões de
dólares se assumirmos um preço médio baixo para o barril, de 35 dólares. Este é
um valor que as companhias petrolíferas já contabilizaram na sua imaginação
matemática. Se os impostos sobre o carbono e as interdições dividirem esse
número por dez, os capitalistas do fóssil farão tudo o que podem para o evitar,
subverter e repelir. O problema do investimento já enterrado aplica-se de novo.
Se o valor dessas reservas for massacrado, poder-se-á, perversamente, fazer
baixar os custos dos combustíveis fósseis, encorajando mais consumo e mais
emissões, enquanto os produtores de petróleo se mexem para vender as suas
reservas em países sem essas taxas.
Para referência, existem no total cerca de 300 triliões
de dólares de riqueza no planeta, a maior parte nas mãos da classe dominante. O
Produto Interno Bruto global, o valor de todos os bens e serviços produzidos
num ano, é cerca de 80 triliões. Se a proposta passar por um corte de 50
triliões, um sexto da riqueza no planeta, equivalente a dois terços do PIB
global, será expectável que os detentores dessa riqueza a combatam com tudo o
que têm, o que será dizer, com praticamente tudo o que existe.
Como um romance de mil páginas com um MacGuffin ou uma
explosão estilística a cada página, o Green New Deal apresenta um desafio para
os críticos. Há apenas um número limitado de dimensões em que este funciona.
Pelo contrário, existe uma imensidão de cenários em que o GND falha – um milhão
de presidentes Sanders ou, com mais urgência, Ocasio-Cortezes presidindo o
desastre. Poder-se-á escrever um ensaio completo, por exemplo, sobre a
impossibilidade política dada a completa saturação do Estado por interesses
corporativos e um sistema de partidos e uma divisão de poderes que tende
seriamente para a direita. Um outro ensaio sobre como, mesmo se politicamente
possível, gastos na ordem dos triliões de dólares por ano arruinariam
provavelmente o dólar, aumentando as despesas previstas. Um ensaio sobre
interesses estabelecidos e a guerra que eles levariam a cabo. Um ensaio sobre
como, ultrapassados esses obstáculos, a história recente das intervenções
monetárias na economia – os 4.5 triliões de dólares injectados na economia
durante a administração Obama pela flexibilização quantitativa, 1.5 triliões
para os cortes de Trump – indica que o Green New Deal terá grandes dificuldades
em encorajar as empresas a gastar o dinheiro como suposto, em investimento na
infraestrutura verde, em vez de o redireccionar directamente para o imobiliário
ou para acções, como aconteceu em casos anteriores.
É fácil perdermo-nos aqui com detalhes e perder de vista
o essencial. Em cada um desse cenários, em cada um desses tristes planetas em
aquecimento, o Green New Deal falha por causa do capitalismo. Porque, dentro
dos limites do capitalismo, um pequeno número de proprietários e
administradores, em competição entre si, vê-se forçado a tomar uma série
limitada de decisões sobre onde e em quê investir, estabelecendo preços,
salários e outras determinações fundamentais da economia. Mesmo que estes
proprietários quisessem poupar-nos as cidades inundadas e os milhares de
milhões de migrantes em 2070, não conseguiriam. Seriam ultrapassados e levados
à falência por outros. As suas mãos estão atadas, as escolhas condicionadas,
pelo facto de que devem continuar a vender aos valores de mercado ou acabam por
perecer. É a classe como um todo que decide, não os seus indivíduos. É por esse
motivo que o discurso dos Marxistas (e de Marx) trata frequentemente o capital
como um agente em vez de um objecto. A vontade para um crescimento implacável,
com o seu crescente consumo de energia, não é uma escolha, é compelida, é um
requerimento do rendimento onde o rendimento é um requerimento da própria
existência.
Se se taxar o petróleo, o capital vendê-lo-á noutro lado.
Se se aumentar a procura de matéria-prima, o capital subirá os preços das
mercadorias, e trará os materiais para o mercado do modo mais desperdiçador e
consumidor possível. Se se requerer milhões de quilómetros quadrados para
painéis solares, turbinas eólicas, e plantações para biocombustíveis, o capital
aumentará os preços do mercado imobiliário. Se se impuserem impostos aduaneiros
nas importações, o capital partirá para melhores mercados. Se se tentar
estabelecer um preço máximo que não permita o lucro, o capital deixará
simplesmente de investir. Corta-se uma cabeça da hidra e outra cresce no seu
lugar. Invista-se triliões de dólares na infraestrutura e confrontar-se-á
indústria incrivelmente desperdiçadora, lenta e pouco produtiva da construção,
onde construir um quilómetro e meio de metropolitano pode ser vinte vezes mais
caro e quatro vezes mais lento. Será necessário confrontar os monstros
terrestes da Bechtel and Fluor Corp., habituados a alimentar-se através do
governo enquanto facturam parafusos de cinquenta dólares. Se isto não for
suficiente, considere-se a mundialmente-histórica ineficiência do exército dos
U.S.A., o maior consumidor de petróleo e, não surpreendentemente, o maior
polícia do mesmo. O Pentágono é um buraco negro contabilístico, para o qual a
riqueza da nação é absorvida e do qual não há luz que emirja. O seu balanço é
uma folha em branco.
Suspeito que muitos dos defensores do Green New Deal
saibam tudo isto. Eles não acham realmente que este acontecerá como prometido,
tal como sabem que, caso aconteça, não funcionará. É provavelmente por isto que
existem tão poucos detalhes concretos sobre o que está em cima da mesa. Até
agora, a discussão girou substancialmente em torno da questão orçamental, com
os apologistas da Teoria Monetária Moderna argumentando que não existe um tecto
para a despesa pública de um país como o Estados Unidos, e esquerdistas
defensores de políticas de taxação-e-despesa a disparar com uma série de
contra-cenários. Os argumentos da Teoria Monetária Moderna estão tecnicamente
correctos, mas não tomam em consideração o poder que os detentores de dívida
pública têm em determinar o valor do dólar e, portanto, os preços e os lucros.
Entretanto, críticos do Green New Deal confinam a discussão aos aspectos menos
problemáticos. Que não se interprete mal o que digo, questões orçamentais na
ordem dos triliões de dólares são um assunto sério. Mas garantir o dinheiro é o
menor dos problemas. A sua implementação é onde as coisas começam a falhar, e
poucos dos seus partidários entram em tais detalhes.
O Green New Deal propõe descarbonizar a maioria da
economia em dez anos – mas ninguém fala sobre como fazê-lo. Isto deve-se ao
facto de, para muitos, o seu valor ser fundamentalmente retórico; é sobre
reorientar a discussão, angariando vontade política, e sublinhando a urgência
da crise climática. É mais boa-vontade do que propriamente um plano. Muitos
socialistas reconhecerão que a mitigação das transformações climáticas dentro
de um sistema de produção orientado pelo lucro é impossível, mas consideram que
o Green New Deal é o que Leon Trotsky chamava um “Programa de Transição”,
articulando “tarefas de transição”. Ao contrário do programa mínimo, ao qual o
capitalismo consegue responder, e o programa máximo, ao qual claramente não
consegue, o programa de transição é algo a que o capitalismo poderia potencialmente
responder caso fosse um sistema humano e racional, mas na realidade não consegue.
Ao agitar-se em torno das tarefas de transição, os socialistas expõem o
capitalismo enquanto coordenador esbanjador e destrutivo da actividade humana,
incapaz de cumprir o seu potencial e, neste caso, responsável por um número
inimaginável de mortes futuras. Assim exposto, seria possível proceder ao fim
do capitalismo. Face à resistência da classe capitalista e uma intrincada
burocracia governamental, os políticos eleitos com base no Green New Deal
poderiam de forma segura, com o apoio das massas, começar a expropriar a classe
capitalista e reorganizar o Estado de acordo com princípios socialistas. Ou,
pelo menos, assim reza a lenda.
Sempre desprezei o conceito do programa de transição.
Antes de mais, por ser condescendente, presumindo que as “massas” precisam que
se lhes conte uma coisa para, eventualmente, serem convencidas de outra. Creio,
ainda, conter perigosamente o risco de lhe sair o tiro pela culatra. As
revoluções começam frequentemente, de facto, onde as reformas falham. O
problema é que o programa de transição encoraja a que se construam instituições
e organizações em torno de certo objectivos, na esperança que estes se possam
rapidamente converter noutros. Mas as instituições são estruturas com uma
tremenda inércia. Ao construir-se um partido ou outra instituição em torno da
ideia de resolver a crise climática dentro do capitalismo, não será
surpreendente que no futuro uma vasta facção desse partido resista às tentativas
de o converter num órgão revolucionário. A história dos partidos socialistas e
comunistas é motivo para cautela. Mesmo após os líderes da Segunda
Internacional terem traído os seus membros ao enviá-los para a matança mútua na
Primeira Guerra Mundial, e ainda que uma larga franja se tenha separado para
formar organizações revolucionárias no advento de Revolução Russa, muitas
continuaram a suportá-la, por hábito e porque esta havia construído uma densa
rede de estruturas sociais e culturais às quais estavam presas por um milhão de
laços. É preciso cuidado para que, em busca de uma programa de transição, não
se construam as forças do futuro inimigo.
Digamos antes aquilo que sabemos ser verdade. O caminho
para a estabilização do clima abaixo de um aumento de dois graus Celsius
oferecida pelo Green New Deal é ilusório. Na verdade, as únicas soluções
presentemente possíveis no quadro do capitalismo são formas medonhas e
arriscadas de geoengenharia, envenenando quimicamente o oceano ou o céu para
absorver carbono ou limitar a luz do sol, preservando o capitalismo e o seu
anfitrião, a humanidade, às custas do céu (agora sem tempo) e o oceano (agora
sem vida). Ao contrário da redução das emissões, esses projectos não requerem concertação
internacional. Qualquer país poderá começá-los imediatamente. O que parará a
China ou os E.U.A. de decidir começar a despejar enxofre na atmosfera, caso as
coisas se tornem demasiado quentes e demasiado más?
O problema do Green New Deal é a sua promessa de mudar
tudo enquanto tudo se mantém na mesma. A sua promessa de transformar a base
energética da sociedade como se isto se resumisse a trocar a bateria de um
carro. Continua-se a comprar um iphone a cada dois anos, mas com zero emissões.
O mundo do GND é este mundo, mas melhorado
– este mundo sem emissões de carbono, sistema de saúde universal e
universidades gratuitas. O apelo é óbvio, mas a combinação impossível. Não é
possível prosseguir com este mundo. Para preservar o nicho ecológico no qual
nós e as nossas espécies conterrâneas vivemos durante os últimos onze mil anos,
teremos de reorganizar completamente a sociedade, mudando onde e como vivemos
e, acima de tudo, para que vivemos. Dada a tecnologia actual, não é possível
continuar a usar mais energia por pessoa, mais terra por pessoa, mais coisas
por pessoa. Isto não significa um mundo sombrio de austeridade, ainda que isso
seja o que nos espera caso a desigualdade e a despossessão continuem. Uma
sociedade emancipada, na qual ninguém pode forçar outro a trabalhar por motivos
de propriedade, poderia oferecer alegria, sentido, liberdade, satisfação e até
uma outra forma de abundância. Facilmente se teria aquilo que necessitamos – conservando
energia e outros recursos como comida, abrigo e medicamentos. Como é óbvio para
qualquer pessoa que dispense trinta segundos a observar com atenção, metade do
que nos rodeia no capitalismo é desperdício desnecessário. Para além das nossas
necessidades fundacionais, a mais importante abundância é uma abundância de
tempo, e o tempo é, felizmente, neutro em carbono ou talvez até negativo. Se
revolucionários em sociedades que gastavam um quarto da energia que nós
gastamos achavam que o comunismo estava ao virar da esquina, não existe então
necessidade alguma de achar que estamos aprisionados aos imperativos terríveis
do crescimento. Uma sociedade em que todos são livres para aprender, jogar,
praticar desporto, divertir-se, estar juntos, e viajar, é a abundância que
importa.
Talvez, tecnologias revolucionárias com zero emissões ou
até para descarbonizar estejam ao virar da porta. Seríamos imprudentes se
descartássemos essa possibilidade. Mas esperar que um relâmpago nos ilumine não
é política. Já lá vão quase setenta anos desde que a última tecnologia capaz de
mudar o paradigma foi inventada – transístores, energia nuclear, genómica,
todas datam de meados do século vinte. Não obstante ilusões de perspectiva e
uma corrente infinita de aplicações, o ritmo das transformações tecnológicas
desacelerou ao invés de acelerar. De qualquer modo, ainda que o capitalismo
encontre repentinamente uma forma de mitigar a crise do clima, poderemos
começar a falar sobre qualquer uma das outras dez razões pelas quais o devíamos
substituir.
Não podemos manter tudo igual enquanto mudamos tudo. É
preciso uma revolução, uma ruptura com o capital e os seus instintos
predatórios, ainda que a forma de o fazer no século XXI seja ainda uma questão
em aberto. A revolução que tivesse como objectivo o florescimento de toda a
vida humana necessitaria certamente uma descarbonização imediata, um decréscimo
no uso de energia para os que se encontram no norte global industrializado, não
mais cimento, muito pouco aço, acabar praticamente com as viagens aéreas,
assentamentos urbanos onde se possa caminhar para todo o lado, formas passivas
de aquecimento e arrefecimento, uma transformação total da agricultura, e uma
diminuição do pasto animal, no mínimo, numa ordem de magnitude. Tudo isto é
possível, mas não se continuarmos a empurrar metade da riqueza produzida para
as garras do capital, não se continuarmos a sacrificar uma parte de cada
geração ao enviá-los para o abismo, não se continuarmos a permitir que aqueles
cujos únicos desígnios giram em torno do lucro decidam como vivemos.
Para já, uma revolução não está no horizonte. Estamos
presos entre o diabo e o Green New Deal e dificilmente posso julgar alguém por
se comprometer com a esperança disponível em vez de cair no desespero dominante.
Talvez as reformas legislativas sejam a diferença entre o impensável e o
simplesmente insuportável. Mas não mintamos uns aos outros.
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Jasper Bernes
É editor administrador da revista Commune. É autor do livro The Work of Art in the Age of
Deindustrialization (Stanford, 2017) e de dois livros de poesia: We are Nothing and So Can You, e Starsdown. Vive em Berkeley com a sua família.
Nota da edição
Tradução realizada por João Paupério
com revisão de Bruno Peixe Dias. O ensaio original, em Inglês, foi publicado na
revista Commune e pode ser lido na
sua versão digital em https://communemag.com/between-the-devil-and-the-green-new-deal/
.
Nota do tradutor
No seu Photomaton & Vox, Herberto Helder conta a história de um polvo
que, a certa altura, começou a comer-se a si próprio. Acabando por morrer uns
dias mais tarde, as razões de tal atitude seriam, até então, desconhecidas.
Embora muito provavelmente por acaso, Jasper Bernes demonstra através deste ensaio
como esse polvo poderá ser apenas uma metáfora de nós próprios, dita
humanidade, à luz (ou deverei antes dizer à sombra?) do instinto autofágico do
capital.
Ficha Técnica
Data de publicação: 15.06.2019
Edição #23 • Primavera 2019 •