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As mais
belas
fachadas otomanas
Turquia, Europa: notas
sobre a
‘estetização da política’
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Pedro Levi Bismarck
1.
De entre as muitas virtudes que podemos consignar à
arquitectura, uma das mais sublimes é a capacidade que esta tem de revelar o
inconsciente político do poder. Aquilo que o poder se recusa a dizer, ou que procura
a todo o custo esconder no tecer imperscrutável da linguagem política, acaba
sempre por aparecer nas obras que constrói. Este é um dos mais belos segredos
da arquitectura e que poucos se atrevem ainda a contemplar. Siegfried Kracauer,
em 1930, já chamava atenção para isso mesmo, afirmando que as «imagens espaciais são os sonhos da sociedade»,
hieróglifos à espera de serem
decifrados. É por essa razão que as obras arquitectónicas se apresentam como um
objecto de estudo frutífero para compreender aquilo que são os discursos de
poder de cada época e as suas mais ocultas ambições. E a nossa época não é
excepção.
O projecto para o Centro Comercial no Parque Gezi, no centro
de Istambul, que o Governo do primeiro-ministro Erdogan se prepara para fazer
avançar com toda a força, é um desses
hieróglifos que brilham por entre os ardis opacos da linguagem política. Ele é,
enquanto edifício, com a sua fachada que replica um antigo quartel otomano (construído
em 1806 e demolido em 1940) e que abrigará um gigantesco complexo de lojas,
negócios, cafés, a imagem política da
estratégia governativa de Erdogan. Uma estratégia cheia de subtilezas que se veste
imperiosamente com os trajes e as roupas das mais puras tradições islâmicas (a
fachada otomana) para dissimular uma estratégia neoliberal de privatizações e
concessões de serviços e empresas do Estado. Nestes últimos anos, enquanto avançaram
as medidas de islamização forçada da sociedade, sucedeu-se o desmantelamento do
Estado turco, e à medida que avançaram as privatizações (que têm corrido a
nível galopante), sucedeu-se uma política intensiva de especulação imobiliária.
O centro comercial do Parque Gezi é a imagem-hieroglífica dessa
política, uma fachada esplendorosamente otomana que canta a glória dos valores
turcos, mas que mais não esconde que uma outra glória bem mais presente: a dos franchisings e das multinacionais, da
especulação imobiliária e do capital global. E esse é um paradoxo ou um
artifício que corre indelével por muitos países não apenas árabes. Quanto mais
alto se levanta o canto-corão
nostálgico do poder pelos valores e símbolos da nação, mais o Estado e os seus
recursos se transformam em propriedade de uns poucos.
II.
Para Walter Benjamin, o principal atributo do fascismo não estava
tanto na concentração totalitária do poder, mas na concretização de um metódico
sistema de produção de visibilidades (uma máquina de propaganda), cujo “mérito” estava em dar visibilidade às massas (ao proletariado) sem, no entanto,
responder às suas exigências de transformação das relações de propriedade. Essa (não)-política que transformava cada
evento político, cada comício e o próprio führer, numa performance estética e
num espectáculo, justamente, de massas e para as massas, correspondia àquilo
que Benjamin chamava a estetização da
política. Isto é, a introdução da
estética na vida política, usando e manipulando magistralmente os
recém-chegados mass media. Na
formulação tão subtil como hábil de Benjamin: «o fascismo…vê a sua salvação na possibilidade que dá às massas de
se exprimirem (mas com certeza não a de
exprimirem os seus direitos)».
Ora, se olharmos com mais atenção essa relação entre fascismo e estetização da política, talvez possamos chegar a compreender
melhor a crise actual da nossa democracia e abandonarmos, de uma vez por todas,
essa tradicional oposição fascismo/democracia. Pois, daquilo que somos “espectadores”
diários é de uma absoluta estetização da
política, que não só se manifesta no facto de ela se ter transformado em
puro “espectáculo” televisivo, mas
também, porque o actual regime não faz outra coisa do que replicar artifícios
imagéticos, reais e discursivos (como essas belas fachadas otomanas), que
constantemente escondem a verdadeira natureza dos programas políticos em curso.
Esta é, aliás, uma das razões pela qual a linguagem política optou há muito pelo
marketing, transformando-se num obscuro jogo de sombras.
Com as suas subtilezas metafísicas, o poder dá-nos a ilusão
que fala por nós, pela nossa história e pelo nosso futuro, pela nossa democracia
e pelos seus valores. «Os poderes
precisam menos de nos reprimir do que angustiar», dizia Deleuze, e precisam
menos de nos proibir do que trabalhar com os sonhos do nosso mais secreto imaginário
cultural e individual. Eles dizem, humanamente, que constroem o nosso
património e os nossos sonhos, mas não fazem mais do que com isso camuflar a privatização
dos espaços públicos e do próprio Estado. Os poderes dizem que trabalham em
nome da democracia, mas ao destruir a Praça Taksim e o Parque Gezi Erdogan não
faz outra coisa senão “domesticar” e limpar aquele que sempre foi o mais importante
espaço de contestação de Istambul e símbolo da modernização e laicidade do país.
III.
Aquilo que começamos agora a aprender, com os recentes
acontecimentos tanto na Turquia como no Brasil, é que o actual poder, seguindo
a formulação de Benjamin, dá a
possibilidade de nos exprimirmos, mas com certeza não a de exprimirmos os
nossos direitos. E o singular direito democrático que está em causa é o
direito à politização contra a estetização: o direito de acedermos à
esfera da política da qual fomos espoliados (política-polis, política como lugar do comum, política como único lugar
possível de garantia do nosso destino individual e colectivo). Aquilo que se
espera de nós, urgentemente, é a capacidade de romper essa máquina dissimulada
da estética política actual (e a europeia é, ainda assim, bem mais subtil e
ardilosa que a retórica policial de Erdogan) e fazer aparecer, expor, por
detrás do manto encoberto da linguagem política, mas também, das fachadas
otomanas do poder, a verdadeira natureza dos programas neoliberais que dizem
governar em nosso nome, quando, em boa verdade, não fazem mais nada do que
colocar-nos como penhores no mercado global da dívida.
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Imagens:
1. Quartel Militar de
Taksim, o Taksim Kışlası, Parque
Gezi, Istambul. Construído em 1806 no reinado do Sultão Otomano Selim III.
2. 3. Imagens
tridimensionais do projecto para o Centro Comercial no Parque Gezi.
4. 5. Vista aérea do Parque
Gezi e da Praça Taksim (antes das primeiras demolições) e imagem do projecto.
6. Mapa do Parque Gezi
com as diversas actividades associadas à ocupação.
6. Performance no Parque
Gezi.
7. Biblioteca itinerante
montada durantes as ocupações no Parque Gezi.
8. Destruição da
biblioteca itinerante após a intervenção policial.
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Links: