Berenice [as cidades ocultas] | #1 Bairro Herculano






"Em vez de falar de Berenice, cidade injusta, que coroa com tríglifos ábacos métopas as engrenagens de suas máquinas de triturar carne (os funcionários responsáveis pela limpeza, quando levantam a cabeça acima dos balaústres e contemplam os átrios, as escadarias, os pronaus, sentem-se ainda mais enclausurados e baixos de estatura), eu deveria falar da Berenice oculta, a cidade dos justos, atarefados com materiais de fortuna à sombra de almoxarifados e vãos de escada, atando uma rede de fios e tubos e roldanas e bielas e contrapesos, que se infiltra como uma trepadeira entre as grandes rodas dentadas (quando estas se entravarem, um surdo tique-taque anunciará que um novo mecanismo preciso governa a cidade); em vez de representar as piscinas perfumadas das termas em cujas bordas se estendem os injustos de Berenice enquanto tecem as suas intrigas com redonda eloquência e observam com olhar dominador as carnes redondas das odaliscas que se banham, deveria falar de como os justos, sempre prudentes em evitar as delações dos sicofantas e as armadilhas dos janízaros, reconhecem-se pelo modo de falar, especialmente pela pronúncia das vírgulas e dos parênteses; dos costumes que parecem austeros e inocentes eludindo os estados de ânimo complicados e sombrios; da cozinha sóbria mas saborosa que reevoca uma antiga idade de ouro: sopa de arroz e aipo, favas cozidas, flores de aboborinha fritas.
A partir destes dados é possível inferir uma imagem da futura Berenice, que estará mais próxima do conhecimento da verdade do que qualquer notícia sobre o actual estado da cidade. Contanto que se tenha em mente o que estou para dizer: na origem da cidade dos justos que está oculta, por sua vez, uma semente maligna; a certeza e o orgulho de serem justos — e de sê-lo mais do que tantos outros que dizem ser mais justos do que os justos –, fermentando rancores, rivalidades, teimosias, e o natural desejo de represália contra os injustos se contamina pelo anseio de estar em seu lugar e fazer o mesmo que eles. Uma outra cidade injusta, portanto, apesar de diferente da anterior, está cavando o seu espaço dentro do duplo invólucro das Berenices justa e injusta.
Dito isto, se não desejo que o seu olhar colha uma imagem deformada, devo atrair a sua atenção para uma qualidade intrínseca dessa cidade injusta que germina em segredo na secreta cidade justa: trata-se do possível despertar — como um violento abrir de janelas — de um amor latente pela justiça, ainda não submetido a regras, capaz de compor uma cidade ainda mais justa do que era antes de se tornar recipiente de injustiça. Mas, se se perscruta ulteriormente no interior deste novo germe de justiça, descobre-se uma manchinha que se dilata na forma de crescente inclinação a impor o justo por meio do injusto, e talvez seja o germe de uma imensa metrópole…
Pelo meu discurso, pode-se tirar a conclusão de que a verdadeira Berenice é uma sucessão no tempo de cidades diferentes, alternadamente justas e injustas. Mas o que eu queria observar é outra coisa: que todas as futuras Berenices já estão presentes neste instante, contidas uma dentro da outra, apertadas espremidas inseparáveis."
Italo Calvino, Cidades Invisíveis
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Bairro Operário "Bairro Herculano"
Promotor: Maria Augusta Pinto Basto Martins e marido, Manuel Lopes Martins (comerciante e co-proprietário da Nova Companhia de Viação Portuense).  
interior de quarteirão entre Rua das Fontainhas  e Rua Alexandre Herculano
Data: 1880/1886

"Os dois proprietários, herdeiros da família Pinto Basto que era foreira da Quinta do Fragoeiro, desejavam, desde a década de 70, aproveitar o grande e valioso terreno que haviam recebido por legado familiar como emprazamento, para criar um novo bairro para a classe operária,(...) Para tal contraíram três empréstimos à banca, entre 1880 e 1886, com hipotecas sobre as propriedades, com os quais edificaram cento e vinte e nove casas (muitas com dois andares e áreas maiores que as das ilhas), lavadouros, uma mercearia, uma capela e um jardim, proporcionando, naquele momento, condições de habitabilidade invejáveis face a qualquer outro empreendimento para classes operárias quer na parte oriental quer em toda a cidade do Porto."
Dos arruamentos "(...)  um destacava-se como o principal e ligava as duas entradas, cortando uma minúscula praça central, onde se localizavam os equipamentos de apoio: o lavadouro, a mercearia, a capela e o jardim."
"Apesar do cuidado na sua construção (...) o Bairro Herculano revelou-se um fracasso imobiliário, conduzindo, inclusivamente, o seu promotor à ruína, com a Companhia Geral de Crédito Popular Português a executar legalmente as hipotecas em 1888"

(fonte: O Porto Oriental no final do século XIX - Um retrato urbano de Jorge Ricardo Pinto, Edições Afrontamento)


Fotos: Carlos Albuquerque Castro
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