Pedro Levi Bismarck
Dilúvios
Perigo
e Salvação
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A construção é aquilo a que os homens
se dedicam desde que foram expulsos do Paraíso Eterno. Construímos não porque somos mortais, mas porque sabemos que somos
mortais, e sobretudo, como diz Pedro Azara, edificamos para aprender a morrer.
Caim mata Abel, isto é, ganha consciência da sua condição humana, conhece a
morte e, por isso, parte, erra pelo deserto fundando essas “máquinas da urbe”.
Só quem tem consciência da morte, só quem “viu” a morte, e por isso mesmo, “viu”
a vida pode, de facto, construir. Como Caim, Rómulo ou Cadmo, e como esse herói
da epopeia babilónica de Gilgamesh, Utnapishtim, o único sobrevivente do
dilúvio, e cujo nome significa, literalmente, “aquele que viu a vida”.
i
Gostaria de começar por
lançar algumas coordenadas para situar o tema da sessão de hoje: dilúvios. Mas
também partilhar algumas notas acerca deste ciclo de conversas, imagens e
discussões, que temos vindo a apresentar sobre ‘arquitectura’ e ‘destruição’. Isto
é, sobre a relação in-tempestiva que
se opera entre esse acto de construir e
de destruir. Não apenas no circuito
daquilo que é puramente tectónico,
mas de todo e qualquer acto criativo, e de toda a constelação quotidiana da
nossa vida.
Foi isso que, num
primeiro momento, procuramos fazer com este número dois da Revista Punkto, que
contou com um artigo introdutório (em forma de editorial) de Walter Benjamin, escrito
em 1931, “O carácter destrutivo”, e com artigos de José Bártolo (filósofo,
professor na ESAD): “Destruição: Uma obra
em processo”; Álvaro Domingues (Geógrafo, professor na FAUP): “Destruição: registos do trauma da perda do
Portugal Rural”; Tiago Lopes Dias (Arquitecto, actualmente a fazer
doutoramento em Barcelona): “Vell Poble
Nou”; David Knight e Cristina Monteiro (Arquitectos e professores em
Londres): “Plotting”. A estas
contribuições juntamos quatro entradas, a que chamamos atlas: atlas um –
“Matta-Clark: destruição como memória”; atlas
dois – “DGEMN (1929-60): destruição
como restauro”; atlas três – “Auschwitz: depois da destruição: o
testemunho” e, por último, “O Grande
Atlas dos Edifícios Destruídos”.
Tanto estes artigos, e
estes atlas, como também este ciclo
de conversas, não procuram construir exactamente
aquilo que poderíamos convocar como uma listagem ou um inventário de abordagens
possíveis ao tema da destruição, mas
antes, procuram, seguindo o conteúdo em causa, e citando Giorgio Agamben, fazer uma destruição da destruição: ou
melhor, das aparências que tendem a
encobrir o que esta palavra nomeia: um território tão aberto quanto
inexplorável, que não se reduz à simples oposição: construção/destruição nem ao
simples pré-juízo: construção – positivo;
destruição – negativo.
Se estamos aqui é,
sobretudo, porque há ainda algo mais a dizer sobre essa relação que,
simultaneamente, separa e une ‘arquitectura’ e ‘destruição’. Mas não se trata
de uma questão de estilo, nem de uma apologia da destruição (apesar dos tempos
actuais talvez pedirem respostas radicais), nem uma apologia de certo tipo de
práticas artísticas ou arquitectónicas, mas apenas o reconhecimento que estas
palavras não nomeiam territórios exactamente opostos, mas fazem parte de um
mesmo processo, de uma mesma dobra:
onde o construir é sempre um destruir e onde o destruir é já um construir.
ii.
Assim, compreender a
sismografia dessa relação in-tempestiva
é o objectivo desta série de quintas-feiras negras, que são também a
possibilidade de identificar que este processo de construção/destruição, não é
um problema que diz respeito apenas à prática disciplinar artística ou
arquitectónica, nem é um problema específico da contemporaneidade (destruição
do ecossistema, ou das cidades, ou dos centros históricos), mas atravessa
universalmente a nossa história, ou melhor, faz a história, faz a história da
humanidade, das civilizações que nasceram e morreram, floresceram e se extinguiram.
Mas faz também aquilo que está para além dela, a pré-história e a pós-história,
ou dito de um outro modo: o início e o fim.
Isto é, começamos e terminamos sempre com uma espécie de evento destrutivo primordial
que paradoxalmente assinala a criação, seja o dilúvio (em termos míticos) ou o big bang (em termos mais científicos). A
humanidade e o universo parecem iniciar-se sempre a partir de uma destruição
primordial e sempre em direcção a uma outra hipotética destruição, uma
destruição destinada e inevitável. Na origem (- o dilúvio) e no fim (- o juízo
final) está sempre qualquer coisa como um evento destrutivo, mas que nunca
indica o, ou um fim, mas apenas um
recomeço, um outro recomeço.
Quer seja com Adão, ou
com Noé, ou na vinda do Messias, trata-se sempre da necessidade de um re-começar, que implica sempre um
destruir para poder re-construir. E
um re-começar para poder ser melhor
do que aquilo que se foi. Vivemos entre ciclos de destruição e criação, entre
vida e morte, e essa é a nossa natureza, somos qualquer coisa como seres-entre-dilúvios, mas onde há sempre
uma “arca” algures no futuro ou no passado, pronta a (res)guardar aqueles que
irão ser salvos.
iii.
Essa constelação
inusitada que conjuga criação, destruição
e salvação está presente, não apenas,
no tema mítico do dilúvio (que atravessa todas as culturas desde a Suméria à
Babilónia (por exemplo Gilgamesh – o dilúvio
primordial), da Grécia (o mito do dilúvio de Deucalião) à China (a lenda de Fu
Xi, o primeiro povoador a seguir ao grande dilúvio), mas também no horizonte mitológico
que acompanha a fundação das cidades da Antiguidade. Como escreve Pedro Azara,
num livro chamado “Castelos no Ar”, os fundadores de cidades eram quase sempre
criminosos, como Caim (segundo a Bíblia o primeiro construtor, que matou o seu
irmão Abel), como Rómulo (fundador de Roma, que matou Remo) ou o mítico Dédalo (desterrado
em Creta, por ter morto o seu sobrinho). Mas também, Cadmo, o herói grego, que
teve que matar o dragão ancestral para alcançar a fonte à volta da qual iria
fundar Tebas (a primeira de todas as cidades gregas). É como se no início houvesse
sempre uma serpente que é preciso matar, não por ser um símbolo de um qualquer
mal, mas por representar as forças indomáveis e selvagens da natureza que é
preciso aniquilar, para então dar início à civilização. Só aquele que confronta
e derrota essa ordem anterior poderá saber construir, poderá saber re-começar, poderá traçar um novo
território ordenado e justo, como escreve Pedro Azara.
Mas sobretudo, não se
trata tanto de ver Rómulo ou Caim, ou a figura do arquitecto-fundador, como um simples
criminoso que mata, mas como aquele homem que, pela primeira vez, se confronta
com a morte, isto é, tem consciência da morte. E matar aqui (em termos míticos)
é, sobretudo, isso: o reconhecimento dessa mortalidade própria do homem e da
humanidade. A passagem do Paraíso e da Idade de Ouro, para a Idade dos Homens. Como
escreve Félix de Azúa:
«Na ordem cósmica, só o
primeiro assassino podia inventar um remédio contra a morte, a qual é um
assunto única e exclusivamente humano já que é tão somente a consciência da
morte. Os animais, os vegetais e os minerais não morrem, como não morre nada
exterior à cidade, desagregam-se, desintegram-se, desfazem-se em partes
orgânicas e inorgânicas…Só nós os humanos morremos e fazemo-lo desde que
ganhamos a consciência de estar condenados a morrer. Morrer é ter consciência
de morrer, nada mais. E Caim, a primeira consciência da morte, protegeu o seu
descobrimento com as grandes máquinas da urbe. Frente à natureza eterna,
infatigável, inextinguível, edificou-se a partir de então a cidade da morte e
da consciência. O lugar dos mortais. O nosso lugar.»
Assim, a construção é
aquilo a que os homens se dedicam desde que foram expulsos do Paraíso Eterno. Construímos
não porque somos mortais, mas porque sabemos que somos mortais, e sobretudo,
como diz Pedro Azara, edificamos para
aprender a morrer. Caim mata Abel,
isto é, ganha consciência da sua condição humana, conhece a morte e, por isso,
parte, erra pelo deserto fundando essas “máquinas da urbe”. Só quem tem
consciência da morte, só quem “viu” a morte, e por isso mesmo, “viu” a vida pode,
de facto, construir. Como Caim, Rómulo ou Cadmo, e como esse herói da epopeia babilónica
de Gilgamesh, Utnapishtim, o único sobrevivente do dilúvio, e cujo nome significa,
literalmente, “aquele que viu a vida”.
iv
Ora, talvez seja à luz
desta inusitada constelação, que possamos ler o sentido enigmático das palavras
de Hölderlin (poeta alemão), segundo o qual “onde existe perigo, cresce também
aquilo que salva”. Isto é, só aquele que se aproxima do perigo poderá chegar a ser salvo. E aquele que procura recomeçar tem
necessariamente de se colocar em perigo. Mas talvez seja útil lembrar que perigo (em latim periculum) e experiência (em
latim ex-periri) têm uma origem
etimológica comum: o grego peria (que
significa tentativa, mas também, limite).
E, nesse sentido, se ex-peri-ência
implica sempre qualquer coisa como atravessar um limite, um ir através de…, perigo é, precisamente, esse gesto de
tocar e cruzar um limite (péras). Não
pode haver experiência sem perigo, não há salvação, isto é, recomeço
e construção senão houver perigo.
É portanto, neste limiar onde
perigo, experiência e salvação se encontram que podemos compreender toda esta
mitologia criminal que junta construtores e arquitectos, e talvez compreender,
que esta disciplina a que chamamos arquitectura, não só comporta um certo perigo, como ela é propriamente perigo, isto é, experiência e limite, atravessamento
e risco. Para construir é preciso estar em perigo,
aventurar-se, ir até ao limite, tocar um limite e, depois, atravessá-lo. E só
quem tiver a capacidade de arriscar, literalmente, de correr para o perigo, estará de facto, apto a riscar. Todo o risco, todo o gesto de riscar, comporta
o seu próprio risco.
Por isso, aquele que
funda cidades, aquele que constrói, é aquele que se aventura até esse limite extremo
da vida, para salvar a própria vida. É aquele que se pôs em perigo e regressou
(salvou-se), que destruiu para poder criar, porque sem destruição, isto é, sem
matar a serpente e sem ter consciência da morte, não é possível construir. E
tal como na epopeia babilónica, só aquele que “chegou a ver a vida”, como
Utnapishtim, poderá, de facto, fazer qualquer coisa como construir, como criar.
E, sobretudo, só assim poderá re-começar.
v.
Assim, não só podemos
compreender a frase de Picasso, no qual “qualquer acto de criação é, antes de
mais, um acto de destruição”, mas também o seu contrário, “qualquer acto de
destruição é também um acto de criação”. Como dizia, Alexandre Alves Costa,
numa das suas aulas de história, a construção da Abadia de Cluny marca um
momento essencial da história da arquitectura, mas a sua destruição, durante a
revolução francesa, também, e talvez um outro, muito mais importante.
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Texto de apresentação do ciclo “Quintas-Feiras Negras: Arquitectura
e Destruição”, 20 de Outubro de 2011, Livraria Leitura-Ceuta, Porto.
Imagem: Gustave Courbet, Auto-retrato, “O homem desesperado”,
1844-45
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Pedro
Levi Bismarck (Porto, 1983)
Arquitecto pela FAUP. Estudou e
trabalhou em Berlim. Bolseiro da FCT, está actualmente a desenvolver a sua tese
de doutoramento na FAUP. Editor da Revista Punkto. Vive no Porto.