O PONTO



«O ponto não é estabelecer um sistema de referências, instituir leis, consumar um mecanismo. Digo que o ponto é propiciar o aparecimento de um espaço, e exercer então sobre ele a maior violência. Como se o metal acabasse por chegar às mãos – e batê-lo depois com toda a força e todos os martelos. Até o espaço ceder, até o metal ganhar uma forma que surpreenda as próprias mãos. Que se escreva o poema com o próprio sangue (Nietzsche) não pode ser, que o canteiro se transmude na pedra (Rilke) não pode ser: tem de haver um milagre situado um pouco mais longe. Que a palavra sangrenta e a pedra onde se passa a respirar estejam à distância de espantar quem se é. Eu sou isto? Não entendo nada? Preciso ver noutro espaço. Pois bem: é certo que se vai ser outra coisa. Cá está um gastador de espaços, um contrabandista. O último ponto seria devorar e ser devorado espacialmente. Por mais que se gaste nunca se gasta, e nunca se gasta a gente. Aquilo que mantém uma pessoa é a surpresa de existirem tantos espaços a chegar de tantos lados. E o surpreendente é ser surpreendente ser-se tão surpreendente. A força conduz à força – o gesto conduz ao gesto – e não existe porta que não abra para outra porta por abrir. Eu diria que cada um está num fim inconcebível à espera da visita de si mesmo, para irem os dois viajar juntos até um fim inconcebível onde também há uma espera. Essa multidão não sei onde movendo-se como numa dança tensa e delicada, não a terás tu, não. E morrerás de não tê-la. Pois vai morrendo, porque se trata de ti.»


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HERBERTO HELDER
Transcrito de Photomaton & Vox