Bestiário do Imobiliário V \ Álvaro Domingues




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Bestiário do imobiliário 5
Álvaro Domingues

1.
Ó Micas ranhosa? Te calarás quando puderes: ovelha que berra, bocado que perde (a outra continuando a falar e a mastigar ao mesmo tempo). Alguém sabe de quem é este terreno? E alguém quer saber, por acaso? Do mundo de onde vimos havia a vezeira, o rebanho comunitário que pastava no baldio da freguesia; tudo colectivo. A propriedade privada é alienação. Isto são casas fechadas, imobiliário imobilizado à beira do asfalto com seus futuros quintais vendidos no mercado de futuros. É o espaço público (diz uma das pedras do muro em primeiro plano), o espaço verde e a habitação unifamiliar em muro de granito aparente e reboco rosa-claro, foi assim que me ensinam. Se não fosses pedregulho (diz o poste também em primeiro plano) saberias que isto é erva à beira da estrada em volta de umas casas e que o espaço público era verde e que vieram as ovelhas e o comeram.


2.
Ó tu do barrete que não sais de cima, há alguma previsão sobre quando acaba isto de estarmos a fazer homem-cavalo-estátua com as patas presas por argolas? Sairemos daqui quando acabarem as promoções, foi esse o contrato. Achas que nos pagam? Estás a ver aquele cartaz azul que mistura inglês e chinês, o Lucky’Star Import & Export? É a globalização com erros ortográficos e línguas estrangeiras que nos reduz à condição de figurantes numa ficção Ribatejana, percebes? É por causa daquilo que iremos à falência antes de acabarem as promoções. Funciona de maneira simples: monta-se o circo do dinheiro que faz dinheiro em qualquer lado do mundo onde os salários, o fisco, as condições de trabalho, os preços da energia, etc., sejam mais baratos e vende-se em qualquer lado a quem tenha dinheiro. Quando mudarem as regras, desmonta-se o circo e monta-se noutro lado com maior rapidez do que andar a cavalo, percebes cavalo? Cavalo, quem? Eu? Sim, tu, quem havia de ser? Se não fosses cavalo e tivesses crina metida nos neurónios de loiça, saberias orientar a vida e poderíamos ser como aqueles da estátua equestre no Terreiro do Paço, eu de rei e tu de bronze.


3.
Somos nove galinhas (mais uma cortada ao fundo) e dois galos e já se sabe que isto só funciona com sexo em grupo. Assim é a moral da criação. Desde o livro da génese que sabemos que é um assunto íntimo e delicado; não é disso que queremos falar. A questão é que depois de sucessivas exigências de modernização e conforto para este, a bem dizer, chiqueiro, apenas nos trouxeram as tábuas das paletes e a banheira. As tábuas eram para um deck mas estão todas partidas. Quanto à banheira, já está ao alto – não somos patos nem vamos a banhos de imersão. Queremos um elevador ou escada grimpante e ar condicionado, os pressupostos mínimos da arquitectura moderna. O capoeiro tem três andares, três ninhos por andar; nós não voamos (outro legado da criação que nos fez  / nesse céu onde o olhar / é uma asa que não voa, / esmorece e cai no mar, como diz o fado) e já chega de promiscuidade nas tarefas da reprodução! Cada uma deve poder ir para o seu ninho com o máximo conforto. Os galos querem o ar condicionado por causa do aquecimento global e da climatização da crista, e nós queremos o capoeiro aquecido para resolver a crise da natalidade e chocar os ovos que hoje já ninguém se sujeita a estar um ror de tempo a chocar naquela aninhada pasmaceira.
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Imagens
Fotografias do autor.
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Álvaro Domingues
Melgaço, 1959. É geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
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Ficha técnica
Data de publicação: 2 de Julho de 2014
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