Aleixo: O início do fim | Ana Lima



Ana Santos Lima
ALEIXO
O INÍCIO DO FIM

O bairro do Aleixo foi construído nos anos 70 com o objectivo de realojar temporariamente a população urbana da Ribeira-Barredo – em pleno centro histórico do Porto - aquando a sua renovação. Uma vez que este processo de reabilitação implicava uma redução significativa do número de habitações, a maior parte das famílias nunca voltou à sua origem. No seu início, o Aleixo foi aclamado e publicitado por constituir uma experiência isolada e inovadora na cidade do Porto: pela sua construção em altura, pela sua localização sobranceira ao rio e pelos equipamentos propostos de apoio às torres (apesar de alguns nunca terem sido construídos). O desenho e implantação da construção cumpriram o Plano Director de 1962 que o urbanista francês Robert Auzelle, a convite da Câmara do Porto, desenhou para a então periferia da cidade. Hoje vemos a história revisitada.
Ao longo dos anos, o bairro foi começando a ser gradualmente “demonizado”, difamado, estigmatizado e desmoralizado pelas razões que todos conhecemos – ou que a comunicação social fez questão de enumerar - ao ponto da demolição ser encarada como “a” panaceia e, consequentemente, ir adquirindo um forte apoio público. Contrária a esta ideia, propus uma possível alternativa à demolição do bairro do Aleixo, em 2007, na Prova Final de Licenciatura em Arquitectura da FAUP.
No desenvolver da minha investigação reconheci o desenho cuidado do projecto, confrontei-me com certas especificidades - como o encanto e magia do saguão interior – e observei o apreço dos moradores pelo seu espaço e as maneiras criativas como dele se apropriavam. Isto fez-me pensar o quão aberrante seria a sua demolição. Ao inquirir os moradores, todos manifestaram a sua tristeza em relação a este tema e o desgosto de algum dia terem que ser realojados. Inevitavelmente, está aqui em causa um conceito extremamente delicado que é o de “habitar” – com todo o significado, sensação de pertença e identificação que este conceito acarreta. A meu ver, uma demolição é, neste sentido, o mais violento e traumatizante acto que se pode praticar em relação a pessoas já fragilizadas por situações económicas e sociais difíceis.
Durante a pesquisa para a minha tese deparei-me com um estudo que ainda não tinha sido, na altura, divulgado em Portugal, dos arquitectos Lacaton & Vassal e Frédric Druot para o Ministério da Cultura Francês1. Eles questionavam o programa público francês de demolição em massa de grande parte dos complexos habitacionais, construídos nos anos 60 e 70, com o objectivo de transformar a imagem depreciativa que foram adquirindo ao longo dos anos. Nesse ensaio, fortemente apoiado em estudos económicos e de viabilidade, demonstram que a recuperação dos bairros e das estruturas existentes é compensatória, a todos os níveis, em relação à demolição.
Ora, a questão que coloquei na altura foi a seguinte: se nos anos 70 adoptámos, com o Aleixo - e através de um urbanista francês - um modelo de habitação social que em França já se refutava e questionava largamente (e o que temos é apenas um pequeníssimo exemplo), então porque não acompanhar seriamente as soluções que hoje em dia se debatem em França e noutros países da Europa e que estão a ser postas em prática com excelentes resultados?
A proposta para o Aleixo tem por base o estudo acima mencionado. De forma a não fragilizar a estrutura existente, propus apenas a demolição das fachadas exteriores e a construção independente, numa estrutura leve, de uma segunda fachada, distando aproximadamente 3m da existente, para onde os apartamentos iriam crescer em área útil, em conforto e em novas infra-estruturas. Pretendia que fosse uma co-construção com os próprios moradores onde a imagem final do conjunto seria o espelho e o resultado dessa riqueza e diferença de modos de vida.
Como projecto de arquitectura foi um exercício interessante. Dada a complexidade do tema, para o projecto ser implementado seria essencial a arquitectura fazer parte de uma equipa multidisciplinar, onde cada técnico pudesse contribuir para uma solução conjunta. Imaginei a metamorfose do bairro do Aleixo como um exemplo de reabilitação (tal como outrora foi um exemplo de construção), uma transformação e um trabalho profundo com o existente, que pudesse ilustrar e se fizesse acompanhar pela evolução das políticas urbanas.
Ao longo dos anos fui-me mantendo atenta às decisões para o futuro do bairro. Curiosamente, à medida que a demolição do Aleixo se ia tornando mais real, o projecto-piloto dos Lacaton & Vassal ia sendo concretizado. A Torre Bois-le-Prêtre, erguida ao longo de uma auto-estrada periférica de Paris, cuja transformação foi o palco da experiência dos fundamentos do estudo anteriormente referido está recentemente a receber prémios consecutivos, dada a inovação e inteligência da sua transformação.
Por cá traçou-se o fim do Aleixo. Assumiu-se a passagem de uma “guetização”, consequência involuntária da circunstância deste bairro social para uma “guetização” voluntária de um condomínio de luxo. Não é “só” o fim do Aleixo. É o fim da participatividade, da reutilização, da liberdade, da transparência económica, da solidariedade social, da tolerância à diferença, da atenção às pessoas e ao que existe, da coragem política. É a ode ao umbigo, à ostracização, à superficialidade, à corrupção, à prepotência, à gentrificação, à insensibilidade e habitação (anti)social, ao desrespeito e enfraquecimento do património.
Iniciou-se a demolição do Aleixo.
A dor, a tristeza e a revolta não desaparecem com a implosão das torres. Uma implosão aparentemente precisa, que se descontrola (invisível aos olhos) na catástrofe do seu significado e na perversão das suas consequências.

“Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa,
uma só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida. (…)”    
Herberto Helder


Notas
1-DRUOT, Frédéric; LACATON, Anne; VASSAL, Jean-Philippe. PLUS. Les grands ensembles de logements. Territoires d’exception. Ministère de la Culture et de la Communication, Direction de l´Architecture et du Patrimoine, 2004
Fotografias da autora.
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Ana Santos Lima (Porto, 1980)
É licenciada pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, cuja Prova Final de Licenciatura, intitulada "A Metamorfose das Torres do Aleixo" lhe valeu uma menção honrosa na VI Bienal Ibero-Americana de Arquitectura e Urbanismo (BIAU). Trabalhou na Suiça e em Tóquio. Neste momento trabalha no Porto.