A
cultura é ordinária: esse deve ser o nosso ponto de partida.
Raymond
Williams, Culture is Ordinary, 1958
Quem
se espantaria que o luxo do pobre seja sem invenção, se se trata de um
empréstimo tomado de um outro empréstimo? O cenário de que o operário se
apropria hoje é aquele do qual esteve até agora excluído.
Michel
Verret, L’espace ouvrier, 1979
1.
Apesar
da proliferação de imagens que caracteriza a obra de fala atelier, pelas
quais se tornaram tão reconhecíveis e reconhecidos, há uma que espelha melhor
do que todas as outras, no nosso entender, aquele que possa ser o principal
sentido do seu projecto. Referimo-nos à fotografia escolhida para capa
de uma publicação monográfica editada na série 2G (Walther König, 2019) a
propósito do seu trabalho. Nessa imagem pode ver-se a casa construída em
Famalicão segundo o projecto 072 que, segundo os próprios autores, “se sente
como uma casa” (ou, como veremos mais à frente, que “parece uma casa”) e
procura assim apontar a mira a uma espécie de “complexidade consensual” [1]. O que nesta
imagem capta imediatamente a nossa atenção é o facto de em primeiro plano
encontrarmos não o projecto em si, remetido para o plano de fundo, mas uma
outra casa. Uma casa que na sua aparente banalidade se confunde com tantas
outras encontradas por lugares periféricos, ou ao largo dessa “rua da estrada” [2]
que
se vai estendendo ao longo de Portugal.
1. A descrição
sucinta do projecto está escrita no site do atelier em língua inglesa, onde se
podem encontrar, respectivamente, as expressões “A house that feels like a
house” e “a plan aiming for an agreeable complexity”, que foram aqui livremente
traduzidas. Cf. https://falaatelier.com/072
2. Álvaro Domingues
(2009). A Rua da Estrada. Dafne editora.
2.
Que
uma obra de arquitectura seja retratada à luz do seu contexto, próximo ou
distante, não constitui por si só um feito notável. Que seja comum, contudo,
escolher-se para a capa de uma monografia um ponto de vista em que essa obra
não se destaque enquanto figura, remetendo-se antes à condição de fundo, já não
se pode afirmar com tanta ligeireza. Sobretudo, quando aquilo que a rodeia não
retrata um cenário propriamente idílico ou extra-ordinário, uma “paisagem” a
contemplar coroada pela presença de mais um “objecto” [3]. Um olhar
atento e uma breve análise comparativa sobre as duas casas, contudo, revela
rapidamente aquele que se imagina ter sido o propósito do fotógrafo quando
decidiu dar relevo à primeira (apesar de esta já lá se encontrar antes e, ao
que tudo indica, ter-se mantido intocada pela intervenção projectada pelo
atelier). Na verdade, consciente ou inconscientemente, essa casa da frente
parece estabelecer a matriz que definiu em termos compositivos a imagem do
projecto 072. Tripartida entre um pódio de pedra, uma coluna que se liberta da
parede (com a sensibilidade de quem parece conhecer o engenho do templo romano
ou do pórtico Palladiano) e uma arquitrave que sustenta um frontão proeminente,
essa pequena casa, de cariz popular e construída com recurso a técnicas
construtivas e materiais modestos, parece querer reivindicar ainda assim a
dignidade e a pretensão artística próprias de um templo clássico.
3. Pedro Levi Bismarck
(2020). Arquitectura e “pessimismo”. Sobre uma condição política em
arquitectura. Stones against diamonds.
3.
Que
assim o seja não é surpreendente. Sobretudo, se tomarmos por referência aquilo
que escreveu Michel Verret [4] a propósito da constituição da
arquitectura enquanto campo profissional e teórico autónomo, ou seja, da
constituição de uma arquitectura com arquitectos. Uma arquitectura “com
pedigree” por oposição, digamos, à “arquitectura sem arquitectos” que interessou
Rudofsky [5] e cujo saber partilhado assentava principalmente em
dois princípios que nos cabe aqui enunciar sem tempo para aprofundar: fazer com
e fazer como. Ainda que noutros moldes e com outros recursos, essa condição
estendeu-se desde essa arquitectura vernacular até outras formas de
arquitectura de expressão popular, nomeadamente algumas das mais contemporâneas
como aquelas a que nos referimos neste texto. Mas a esse propósito será antes
importante reflectir sobre a definição contemporânea do local no espaço-tempo
de uma globalização que “faz explodir, camada após camada, os invólucros
oníricos da vida colectiva arraigada, fechada e centrada sobre si mesmo”,
arrastando “as cidades abertas ao comércio e até, no fim de contas, as aldeias
introvertidas, para o espaço da circulação que reduz todas as particularidades
locais a dois denominadores comum – o dinheiro e a geometria”. [6]
Afinal,
se ontem a pedra com que se construía casas e templos podia vir do próprio solo
sobre o qual se implantavam as construções, hoje (a pedra ou a sua reprodução)
pode ser adquirida na loja de bricolage mais perto de casa, mas terá
sido produzida ou extraída com grande probabilidade num outro local do
mundo.
4. Michel Verret (1995).
L’espace ouvrier. (Obra originalmente publicada em 1979) L’Harmattan.
p.182
5. Bernard Rudofsky
(1964). Architecture without Architects. A Short Introduction to
Non-Pedigreed Architecture. Doubleday & Company.
6. Peter Sloterdijk
(2008). Palácio de Cristal - Para uma Teoria Filosófica da Globalização.
Relógio d’Água. p.38
4.
Como
escrevemos antes, a propósito da constituição da arquitectura enquanto campo
profissional e teórico autónomo o filósofo e sociólogo francês lembra-nos que
“a classe operária não teve possibilidade de fazê-la por sua conta: excluída em
simultâneo do campo da teoria, do campo da profissionalização arquitectural e
das práticas de formalização que lhes dizem respeito, manteve-se no horizonte
prático do habitante construtor ou do construtor habitante”. Precisamente por
esse motivo, “dificilmente poderá [esta] desejar algo que não seja [o luxo] que
viu: aquele, portanto, das classes cuja distância lhe permanecia mais
próxima, o da pequena-burguesia”, ou melhor, o gosto “que a pequena-burguesia
havia anteriormente copiado dos salões da burguesia, esses mesmos parcialmente
transcritos dos salões nobres, numa cascata de deformações infligidas de queda
em queda ao modelo original”. Reagindo à lisura da fábrica e à frieza do meio
industrial, o ornamento adquiria nesse movimento de apropriação possível uma
importância redobrada, porque operava como forma de “vingança contra a pobreza
e a privação” sofridas. [7] No fundo, e por assim dizer, a economia
da beleza tornou-se para a classe operária uma forma política de subversão
reivindicada (e frequentemente bricolada) com as suas próprias mãos.
7. A sequência de
citações pode ser encontrada em: Michel Verret, op.cit. pp.186-187.
5.
Por
outro lado, Verret explica-nos ainda existir um motivo para que esse ornamento
popular tenha tão pouca qualidade. Aliás, “como poderia ser de outro modo se
uma das funções da indústria é precisamente a de mascarar -o consumidor não é
mestre da oferta- a falta de qualidade do produto: as alcatifas à falta de
parquet, o papel de parede para esconder as rachaduras, os motivos desenhados
para esconder o defeito do prato”? O operário, conclui, “está demasiado próximo
da técnica para ignorá-lo”, mas está também “demasiado próximo da pobreza para
recusar o defeito” e “demasiado longe da riqueza, e das saciedades, para aceder
ou mesmo conceber o luxo supremo da simplicidade que o rico, cansado de todos
os ornamentos por já os ter tido a todos, pode hoje oferecer-se nos produtos
sem defeitos, mas de valor altíssimo, e portanto fora do comum, do artesanato
da arte ou da indústria de luxo.”[7] Resumindo, quem
historicamente se viu excluído da Arquitectura, viu-se também forçado a
reproduzir apenas com os meios que tinha à sua disposição aquilo que lhe
(a)parecia legítimo enquanto tal.
8. Ibidem.
pp.187. A este propósito, e sobre as relações entre uma abordagem estética
“minimalista” e a sua dimensão de classe dentro da economia política do
neoliberalismo, cf. Pier Vittorio Aureli (2014), Less is enough. On
Architecture and Asceticism. Strelka Institute.
6.
Como
sugere Pierre Bourdieu, enquanto bem material exposto à percepção de outrem a
casa exprime ou trai de maneira mais decisiva que outros bens o ser social dos
seus proprietários, os seus ‘recursos’, mas também os seus gostos, pelo que é
fundamental compreender “a estrutura de distribuição das disposições económicas
e, mais precisamente, dos gostos em matéria de habitação”, “sem esquecer de
estabelecer através de uma análise histórica as condições sociais da produção
desse campo em particular e das disposições que encontram a possibilidade de se
concretizar de forma mais ou menos completa”. [9] Ainda que essa
designação possa ser alvo de debate, são os herdeiros destas “classes
populares”, outrora excluídas da encomenda de arquitectura e hoje, em parte,
transformadas em classes médias empurradas para um acesso (cada vez mais
dificultado) ao crédito como forma de resolver individualmente o seu problema
da habitação, [10] que constituem actualmente uma importante base da
encomenda não só do fala atelier como de tantos outros da sua geração.
Por outras palavras, classes para quem a conquista do direito à habitação -nos
melhores cenários acompanhada pelo direito à cidade e à arquitectura- foi
substituída pelo “direito a comprar” [11] uma habitação
-provavelmente longe do que possa sobrar de “cidade” e enquadrada, quase
sempre, pela arquitectura já não como um direito, mas enquanto processo
burocrático, responsabilidade jurídica e, potencialmente, como forma de
valorização da mercadoria.
9. Pierre Bourdieu
(2000). Les structures sociales de l’économie. Seuil. p.35-37
10. Ana Cordeiro
Santos (2019). A Nova Questão da Habitação em Portugal. Actual Editora.
11. O “direito a
comprar” é um conceito que atravessa, pelo menos desde o início do século XX, a
questão da habitação, e que remete em particular para a política adoptada por
Thatcher nos anos 80, no sentido de alienar património público e, através desse
processo, construir una nova classe de pequenos proprietários. A esse
propósito, cf. Andy Beckett (2015). The right to buy: the housing crisis that “Thatcher build
7.
O próprio fala atelier escreveu que a “vasta maioria dos [seus] clientes é como a vasta maioria das pessoas”, ou seja, “não tem interesse específico em arquitectura, demonstrando até por vezes um radical cepticismo relativamente à figura do arquitecto.” Contactam-nos, acrescentam, “porque precisam de papelada assinada e chegam já, frequentemente, com um catálogo de casas, apontando para aquela que desejam” ou cuja identidade, acrescente-se, vão construindo fragmento por fragmento com a ajuda de imagens avulsas coleccionadas no Pinterest ou noutra rede social equivalente. Imagens que se supõe constituírem uma expressão da sua singularidade, mais não sendo muitas (se não a maioria das) vezes, em boa verdade, do que uma transposição directa das modas e das tendências que vão sendo alternadamente “oferecidas” pelo mercado, em massa, aos consumidores. Imagens genéricas, claro, mas que ainda assim têm a virtude de demonstrar que continua vivo um desejo popular de aceder ao domínio privilegiado da estética.
8.
Neste
contexto, incorporando as qualidades expressivas de uma estética do erro, que
parece cada vez mais inevitável num contexto de deterioração das condições do
trabalho e de quem trabalha, algures entre um imenso campo de referências
disciplinares e a sensibilidade próxima de uma subjectividade popular
partilhada, a arquitectura de fala atelier parece encontrar o seu justo
lugar apesar das condições objectivas e subjectivas limitadas, ver
precárias, em que se vê forçada a operar. Não será por acaso que nas suas obras,
tal como no “espaço operário”, sempre que se faz notar um ornamento ou uma manobra
formal amaneirada, existe uma forte probabilidade de estas corresponderem a um
esforço para contornar ou distrair quem olha de um acaso inesperado ou de um
defeito na execução do projecto. Numa curiosa inversão da ordem do projecto, a
carga plástica que caracterizava as colagens que fala atelier usaram no
início da carreira (enquanto estratégia para colmatar a ausência de obra e
competir com a hegemonia visual das imagens que povoam a internet)
parece agora ser resultado de uma estratégia projectual apurada para lidar com
as actuais condições de produção da arquitectura em Portugal.
9.
No
fundo, este é um dos pensamentos que transporta consigo a imagem de capa da
revista 2G: se invertermos o sentido que determinou as “deformações infligidas,
de queda em queda, ao modelo original”, a abordagem desenvolvida por fala
atelier coloca em causa a hierarquia que se foi estabelecendo ao longo da
história entre os cânones da arte erudita, de um lado, e a “ingenuidade” [12] da arte
popular, do outro. Ou dito de outra forma, a distância que se estabeleceu entre
o que costuma ficar do lado fora e o quem se considera estar dentro do campo
disciplinar. Apreciando ou não o aspecto final da sua arquitectura, sendo essa
ou não a sua intenção original, o que essa inversão de sentido nos permite é,
sobretudo, repensar o modo como encaramos e reflectimos a partir das
arquitecturas de expressão popular. Colocar de lado o desprezo e voltar a
aprender dessa “economia local” (para usar uma expressão dos próprios):
não tanto para elaborar uma renovada teoria da arquitectura popular como,
talvez, a própria possibilidade de uma teoria popular da arquitectura. Se é
verdade por um lado que uma das características da arquitectura popular foi,
outrora, a sua condição vernacular, ou seja, a pertença e a partilha da cultura
e das materialidades próprias de cada lugar, e por outro lado que a cultura
existe sempre em relação com um sistema de produção subjacente, não é menos
verdade que a cultura está hoje em larga medida globalizada e que uma parte
substancial dos materiais com que construímos correntemente chegam de todo o
mundo, através de cadeias internacionais.
12. A propósito da
Arte Popular, Ernesto de Sousa enuncia como uma das suas principais
características a sua condição naïf. Curiosamente, o mesmo adjectivo que fala
atelier utiliza para descrever a sua própria abordagem à arquitectura. A esse
propósito, cf. Ernest de Sousa (2014), Ernesto de Sousa e a Arte Popular. Em
torno da exposição “Barristas e Imaginários”. Sistema Solar (Documenta).
10.
Claro
está que se consideramos que (1) a arquitectura é uma arte; e que (2) a arte - a verdadeira
arte - é sempre um procedimento que tem como
propósito suspender o estado actual das coisas para instaurar novas verdades [13]; então, como
bem explicou o Pedro Bismarck [14], essa teoria popular refere-se
incontornavelmente a um povo que está ainda (e talvez esteja sempre) por
inventar. Contudo, parece-nos igualmente evidente que esse povo que falta
não será inventado a partir do vazio, nem surgirá de ideias formuladas no
interior de um qualquer espírito (santo), mas surgirá antes da materialidade
subjectiva de algo que já exista entre nós. Até porque se a cultura popular é
hoje produzida comercialmente e segundo lógicas orientadas pelo lucro
(pense-se, por exemplo, na quantidade de materiais “sintéticos” a “imitar”
matérias primas de maior qualidade), por outro lado, esta continua a conter em
si o gérmen de desejos e aspirações que não deixam de ser legitimas [15] e cuja potência
política dependerá sempre daquilo que se venha a fazer com elas e com o destino
que se dê a essas mesmas lojas de bricolage. Afinal de contas, o mármore
português que tanto caracteriza a arquitectura de fala atelier, pode muito bem
ser entendido entre os círculos académicos como uma referência erudita ao palazzo
(ou à imagem do palazzo) renascentista; mas se considerarmos a origem
dos seus fundadores, dificilmente nos convencerão que essa subjectividade não
tenha sido sobretudo treinada, durante décadas, pela condição estética e por uma
ecologia própria dessas periferias populares onde cresceram. De onde agora
começam a chegar cada vez mais fornadas de arquitectos e de arquitectas
recém-formadas; e, portanto, a partir de onde é urgente começar a pensar não só
o passado, mas sobretudo o presente e o futuro das cidades, da sociedade e do
que entre tudo isso há de arquitectura.
13. A. Badiou (1993).
L’Éthique: essai sur la conscience du mal. Nous.
14. Pedro Levi Bismarck
(2023). “Falta a arquitectura”, Jornal Punkto, #37. A
versão original desse texto foi publicada na Revista MA, da
AEFAUP, em Setembro de 2020.
15. Cf. Stuart Hall
(1981), “Notes on Deconstructing “The Popular”, in Stephen Duncombe (ed.)
(2002), Cultural Resistance Reader, Verso.
•
João Paupério & Maria Rebelo
Mestres em arquitectura pela FAUP, fundaram o atelier local em 2019.
Entre outras actividades e pessoas, escrevem e projectam em conjunto desde
2014.
Imagens
1. Capa da edição monográfica da revista 2G (Walther König, 2019) com
o projecto 072 fotografado por Ricardo Loureiro.
2. Bairro SAAL Amigos Unidos de Cabanas (Tavira) fotografado por
Francisco Ascensão, 2021.
Ficha Técnica
«Breves notas para uma teoria da prática do ordinário» • João
Paupério & Maria Rebelo
Data de publicação: 10. 05.2023
Edição #38 • Primavera 2023 •