A emergência e o eclipse do partido invisível do PREC • Luhuna Carvalho




O processo revolucionário de 1974/75 em Portugal insere-se num ciclo global de lutas que atravessa as décadas de sessenta e setenta. As suas expressões políticas são equivalentes às que têm lugar no mesmo período em Espanha, Itália, França, Alemanha, Grécia, Estados Unidos, México, etc. Uma nova composição de classe forjada na expansão tecnológica e industrial do pós-guerra exerce um repertório comum: ocupações, greves selvagens, formas embrionárias de guerra civil, experiências de organização autónoma, afirmação de subjectividades dissidentes, etc.

No entanto, algo distingue a experiência revolucionária portuguesa dos outros “sessenta e oitos”. Esse repertório político não conhece qualquer continuidade após o término do PREC, sendo substituído pela total institucionalização da esquerda. A experimentação política do PREC é encerrada e expurgada de qualquer consideração histórica, tornando-se apenas um excesso episódico. Em Portugal, ao contrário do que sucede no resto da Europa, os movimentos autónomos e as organizações extraparlamentares têm pouca expressão nas décadas posteriores à revolução.

A par com essa excepção ocorre a ausência de qualquer escola conceptual autóctone. Em França, em Itália ou na Alemanha as rápidas transformações políticas e sociais produzem uma teoria própria.[1] O PREC, no entanto, revela-se incapaz de produzir um PREC’ismo. O discurso que a revolução faz sobre si própria assume formas exclusivamente ideológicas, sendo elas estalinistas, trotskyistas ou maoistas, sendo incapaz de criar uma linguagem própria. Este texto reúne apontamentos e possibilidades de investigação sobre as causas e consequências dessas excepções, indo de encontro ao que revelam.

1. Em França destaca-se o trabalho da Internacional Situacionista e de vários outros colectivos comumente referidos enquanto a “ultra-esquerda”. Em Itália forma-se ao longo dos anos 50 e 60 o operaismo, primeiro enquanto cisão do Partido Comunista Italiano e depois enquanto teoria por trás da emergência de uma Autonomia Operária Organizada. Na Alemanha surge a Neue Marx Lekture, que radicaliza o pensamento de Adorno a partir da releitura da obra de Marx.

1. 1974 e 1968

O facto de lutas locais parecerem às vezes “saltar” de um local para outro, contaminando territórios distantes, é constante ao longo da história moderna. Das insurreições que 1848 que fazem Marx afirmar que o espectro do comunismo percorre a Europa até à Primavera Árabe, circunstâncias locais comunicam com contextos globais produzindo expressões variadas de revolta que dialogam entre si, ou seja, produzindo “ciclos de lutas”.[2]

2. Hoje vemos como manifestantes em Hong Kong ensinam outros no Chile a desactivar projécteis de gás lacrimogéneo, como palavras de ordem francesas ressurgem em Lisboa, como os bloqueios no Porto de Oakland são emulados no Sri Lanka, etc.

O ciclo de lutas vulgarmente referenciado pela data chave de 1968 representa “uma ruptura na teoria da revolução”.[3] A aceleração das transformações sociais força um repensar do que significa a superação do capitalismo. Os “milagres económicos” do pós-guerra —— em Itália e na Alemanha, por exemplo —— são sustentados por uma expansão industrial e tecnológica que altera profundamente os modos de produção. A mecanização de trabalho anteriormente especializado cria um proletariado cada vez mais escravizado pelas tarefas absurdas e robóticas da linha de montagem. Ao mesmo tempo, os novos hábitos de lazer e consumo massificado minam a identidade operária clássica, dissipando as suas instituições autónomas e a sua cultura de orgulho no trabalho. A “esquerda” clássica encontra um duplo limite. Por um lado, o escalar da tensão entre o “socialismo real” e o “mundo livre” sobrepõe imperativos geopolíticos aos antagonismos sociais. [4] O estatismo da esquerda que emerge da guerra impede uma compreensão do antagonismo operário que surge primeiro na recuperação económica e depois na crise do petróleo de 1973, deixando amplas faixas do proletariado fora do conceito de “povo” que a pouco a pouco substitui o de “classe”. 

3. A/V, Rupture dans la theorie de la révolution, Senonevero (2018).

4. Em Itália, por exemplo, o Partido Comunista afastava-se dos conflitos na fábrica em direcção a uma ideia de unidade nacional. Temia que a resposta do estado ao seu crescimento eleitoral fosse um golpe militar como o que veio a ter lugar no Chile. O seu papel apaziguador dos crescentes antagonismos sociais procurava sublinhar o seu cumprimento escrupuloso de todos os ditames institucionais.

Por outro lado, a aceleração tecnológica, a mercantilização da reprodução social, a memória das trincheiras e dos campos de concentração colapsam a ideia de progresso. A certeza “marxista” de que o desenvolvimento capitalista acabaria por criar uma maioria de operários capazes conquistar o poder deixava de ser válida. O holocausto, a destruição cultural operada pela cultura de massas, os primeiros alarmes ecológicos, etc., fazem do capitalismo algo apocalíptico, e não uma fase histórica no caminho para um socialismo cuja concretização material perdia credibilidade de dia para dia.

Perante a necessidade de pensar este “neo-capitalismo” e perante formas cada mais fortes e agressivas de um antagonismo social que se expressa para lá dos partidos e dos sindicatos várias realidades militantes encontraram nos textos inéditos de Marx, até então pouco acessíveis, a possibilidade de um regresso à crítica da economia política.[5] Esse retorno a Marx contrariava as simplificações e interpretações abusivas que o “Marxismo” tinha divulgado enquanto cartilha ideológica.[6] Tratava-se então de ler Marx contra o “marxismo” para poder afirmar o comunismo contra o socialismo.

5. Ao longo do século XX tornam-se acessíveis vários textos assinados por Marx que põe seriamente em causa a legitimidade do que era então considerado o “marxismo”. Os “manuscritos político-filosóficos de 1844”, os “Grundrisse” e o texto conhecido como o “sexto capítulo inédito do Capital” revelam um Marx crítico do trabalho, da economia e do estado que entram em conflito aberto com o Marxismo oficial e com as suas derivações Trostkyistas ou Maoistas.

6.  O “Marxismo” deve mais às simplificações, interpretações e edições feitas por Engels e Kaustky após a morte de Marx do que ao seu próprio pensamento. Existem, à data, milhares de páginas escritas por Marx que não foram ainda publicadas ou amplamente discutidas.

No texto conhecido como “o sexto capítulo inédito do Capital”, Marx desenvolve uma teoria da “subsunção real” que põe em causa as etapas históricas do materialismo dialéctico. [7]   Na sua génese, o capital apropria-se de trabalhos já existentes, mas a pressão das lutas operárias e da competição obriga-o a uma sistematização cada vez maior da produção. Exemplo rápido: sempre existiram sapateiros, mas apenas no capitalismo existem operários industriais e gestores de fábricas de sapatos. Sempre existiram cidades, mas apenas no capitalismo estas são máquinas de reprodução de trabalhadores e de especulação financeira. Sempre existiram laços afectivos de cuidado, mas apenas no capitalismo estes se tornam um “emprego”. Este processo é tendencialmente expansivo e não conhece limites. No pós-guerra, com a expansão do estado social, da sociedade de consumo e da comunicação de massa, este domínio do capital sobre todas as formas de vida parece completo.

7. O famoso “materialismo dialéctico” tido enquanto essência do pensamento de Marx, com a sua teoria das várias etapas transitórias, surge uma única vez em toda a sua obra, na introdução a um texto menor da sua juventude. Toda a obra posterior vem contradizer esta simplificação. O Marx tardio chega mesmo a dizer que as comunas agrícolas Russas (as Mir) podem ser um modo de alcançar o comunismo sem passar pela industrialização e pelo capitalismo.  

Esta transformação não é apenas histórica ou económica, ela é civilizacional, no sentido em que o capitalismo deixa de ser um modo de funcionamento da sociedade para se tornar indistinguível da sociedade em si. A função dominante da burguesia clássica torna-se secundária ao domínio da economia sobre todos os campos da vida. Uma nova concepção de proletariado emerge. Ele já não é a figura de antanho, orgulhosa do seu trabalho, socialmente integrada, hegemonicamente branca e masculina, ansiosa por provar a sua respeitabilidade. Este novo proletariado não depende de vanguardas para expressar politicamente a sua consciência de classe nem tem de provar a sua respeitabilidade e temperança à sociedade burguesa. Expressa-se através de uma insurreição constante: motins, sabotagem, recusa do trabalho, espontaneísmo, horizontalidade, contracultura, experimentação sexual e psicodélica, abandono da metrópole, ilegalidade de massas, luta armada, etc. Surge o ensaio de um comunismo imediato que não é apenas uma miragem distante, “um modo de produção”, uma alternativa “económica” ou simplesmente uma exigência de mais democracia, mas sim algo a ser a colocado em prática hic et nunc.

 

2. O Partido Invisível do PREC

O repertório político ensaiado durante PREC obedece, grosso modo, a este enquadramento, ainda que a linguagem usada na época não passe por estes termos. Ao contrário de outros locais, esta experimentação é circunscrita ao período revolucionário, não deixando qualquer legado ou herança política substancial.

À primeira vista, o PREC teria sido incapaz de concretizar a sua potencialidade política por falta de instrumentos adequados. O “poder popular” findou porque não foi possível criar um “verdadeiro partido comunista” capaz de o defender. Na verdade, sucedeu o oposto. A obsessão pela criação do verdadeiro partido de vanguarda fez com que centenas de militantes se dedicassem a construções de micro-burocracias auto-referenciais quando tarefas essenciais à reprodução e expansão desse poder eram menosprezadas. A esquerda radical perdeu-se na quimera de criar um verdadeiro partido sem perceber que esse partido já existia.

O sociólogo italiano Romano Alquati concebeu um dos conceitos mais interessantes do operaismo na sua descrição de como várias greves selvagens em pequenas fábricas de Turim se tinham transferido para dentro da Mirafiori, a principal fábrica da FIAT. O convívio informal entre os operários nos bares e nas esquinas dos seus bairros tinha criado uma consciência partilhada da sua situação, mais vasta, cúmplice e combativa do que a sindical. A maior fábrica de Itália entrava em greve em solidariedade com os operários que trabalhavam fora dela. A nova organização da cidade, da fábrica e da classe operária tinham produzido algo como um “partido invisível”, uma rede informal mas extremamente sofisticada de cumplicidades políticas e tácticas, que rivalizava agora com o Partido Comunista Italiano. É esse “partido invisível” que surge um pouco por todo o lado em 68. É esse partido invisível que transforma o golpe militar de 1974 numa revolução.

O partido invisível do PREC surge com o êxodo rural que transporta para a cintura industrial de Lisboa as formas de luta que tinham feito do Alentejo um local de resistência antifascista. As greves da Primavera Marcelista desenham redes de solidariedade que se activam em 74 ao mesmo tempo que a guerra colonial familiariza o exército com um discurso de destituição do império. Ocorre ainda a lenta consolidação de uma pequeno-burguesia cosmopolita e progressista que se afirma contra os poderes instalados e que deseja as experiências modernas de cidadania e consumo. O partido invisível do PREC não é criado pela revolução. Pelo contrário, a revolução é que é criada pelo partido invisível do PREC.

Esse poder, essa dinâmica e essa cumplicidade não chegam no entanto a percepcionar-se enquanto tal. A organização de formas autónomas de reflexão, comunicação e de acção —— as tarefas necessárias à intensificação do PREC —— são descuradas em nome de uma competitividade estéril entre siglas relativamente indistintas no seu leninismo vulgar, ou, em alternativa, pelas várias tentativas de institucionalização do dito “poder popular”. Ao contrário do que sucede em Itália, em França, e noutros locais, o movimento revolucionário não é capaz de elaborar uma autocritica das suas formas políticas nem de abandonar a ideia do pequeno grupo, do pequeno partido, da pequena seita carismática, para assumir hic et nunc as tarefas políticas impostas pelas condições materiais das lutas.[8]

8. Em Itália, por exemplo, é a partir de crítica operária e feminista aos pequenos grupos que eles se dissolvem para dar origem a uma nova forma política: a aquilo a que se chamou autonomia operária, ou seja, um movimento onde as funções organizativas do partido eram distribuídas de modo difuso e não centralizado, precisamente porque esse partido já existia sob a forma do partido invisível. É precisamente este processo que não acontece no PREC. Em Portugal não se chega a formar um movimento feminista capaz de pôr em causa a estrutura chauvinista da extrema-esquerda. Há, obviamente, inúmeras e riquíssimas expressões feministas, mas as suas dimensões de organização colectiva são sempre reprimidas pelo chauvinismo ou por uma ideia de defesa da família. Dito de outro modo, as formas mais evidentes de secessão, de estranhamento, de alteridade ontológica à estrutura do estado e à naturalização da economia encontram pouca expressão dentro do movimento.  

A censura e a repressão do Estado Novo têm, obviamente, um papel determinante na formação das forças políticas que protagonizam o PREC. A censura não visa apenas impedir a circulação de informação —— que de um modo ou outro acaba por circular ——, mas sobretudo impedir a emergência de uma consciência comum, composta por técnicas de discussão, de reflexão e de decisão. A militância pré-revolucionária não dispunha de instrumentos de debate comum. Após a revolução, o desenvolvimento da inteligência colectiva do partido invisível do PREC é incapaz de acompanhar a veloz sucessão de eventos, ou seja, ela é incapaz de se acompanhar a si própria.

A tarefa imediata seria aprofundar as cumplicidades criadas, criando uma estrutura geral de debate e acção capaz de albergar as diferentes perspectivas ideológicas, desenvolvendo órgãos de comunicação que servissem de ponte e de método de desenvolvimento de conceitos e de práticas, transformando o “poder popular” em formas de ilegalidade de massas que escapassem à armadilha tanto do pacifismo como da luta armada. Tal, no entanto, não chega a acontecer. Os momentos de encontro e de luta são sufocados por lutas mesquinhas entre vanguardas saturadas de ideologia vulgar e de carismas pessoais.

Esta explicação, no entanto, encontra um limite óbvio. Ela explica, parcialmente, porque é que a militância organizada não consegue consolidar as experiências de “poder popular”, mas não explica porque é que os actores dessas experiências —— o dito partido invisível do PREC ——— decide não avançar com elas. Se há de facto uma autonomia e uma inteligência de classe que é capaz de forçar um processo revolucionário então essa inteligência também deve ser tida em conta quando ela decide não forçar uma situação insurreccional. Dito de outro modo, a existência de uma inteligência proletária não se revela apenas nas suas vitórias.[9] Para responder a esta questão é necessário atentar na outra especificidade do 68 português.

9. Isto põe em causa a ideia de que é o poder hegemónico do PCP a castrar as formas de autonomia. Esse poder existe e é sem dúvida central na repressão de inúmeras experiências, mas o mesmo tipo de confronto sucedeu em inúmeros outros locais sem que estes as tenham conseguido realmente controlar. Se as lutas autónomas foram enfraquecidas pelo PCP isso deve-se à sua fraqueza e não apenas à força desse partido.

3.  A ascensão tardia da intelligentsia portuguesa

Algo comum ao ciclo de lutas em análise foram os momentos de cumplicidade informal entre o trabalho industrial e segmentos específicos do trabalho intelectual, sobretudo ligados à cultura e à educação. Ambos os sectores sofriam, na altura, transformações profundas. A expansão do sector de serviços, um maior acesso à educação e o entretenimento de massas significavam a proletarização de classes profissionais que até então tinham um estatuto social relativamente alto.

A ideia de uma classe cujos interesses são universais, e que está portanto racionalmente legitimada a conduzir os processos de transformação social, não surge com Marx e o seu proletariado, mas sim com Hegel e a sua classe de funcionários públicos, leia-se, a “intelligentsia”. A primeira classe a ser tida enquanto universal é a pequeno-burguesia dos serviços, ou seja, aquela que assegura as funções intelectuais de reprodução social e política e que tem enquanto essência a síntese absoluta do espírito colectivo ——— a nação e o estado. Por sintetizar nos seus interesses os interesses da nação ela torna-se capaz de liderar todas as outras classes.

Se a monarquia sustentava o seu poder numa ideia de direito divino, a burguesia legitima-se através da ideia de razão, criando, para isso, uma hierarquia de trabalho intelectual e cultural sem necessidade de produtividade económica directa. A construção da identidade nacional passa pela excelência literária e artística de cada cultura e pela capacidade de esboçar uma filosofia própria: o idealismo alemão, o historicismo italiano, etc. O que distingue a razão burguesa são as suas pretensões críticas, ou seja, a capacidade de se analisar a si própria. A legitimidade política da burguesia assenta na promessa de que a sua afirmação histórica é a concretização de uma essência progressista e universal.

A brutalidade do século XX corroí essa promessa de que o progresso, a cultura e a razão seriam pilares sociais capazes de sustentar uma vida comum. Não só as vanguardas artísticas e literárias estilhaçam qualquer unidade conceptual dessas categorias como o próprio capitalismo se apercebe da sua inutilidade, deixando então progressivamente de investir na criação e reprodução de elites intelectuais. O entretenimento de massas torna-se na essência cultural e espiritual das nações modernas.

Max Weber afirma que os revolucionários são produzidos pelas classes à beira de extinção. É quando se esgotam as possibilidades de mediação social que surgem os movimentos insurreccionais, messiânicos e românticos. As grandes obras intelectuais do pós-guerra são variações de uma elegia sobre essa promessa emancipatória do trabalho intelectual e cultural. Na sua vertente revolucionária, ou pelo menos “de esquerda”, os grandes nomes dos anos 60 e 70 são exemplos perfeitos desse colapso da Intelligentsia. Adorno, o último dialéctico; Negri, o Cattivo Maestro, Debord, o papa negro do país das luzes. Parte desta intelligentsia maldita encontrava na excepção proletária um ponto de fuga a esse esgotamento civilizacional apocalíptico. A inteligência insurreccional deste novo proletariado juvenil era de facto a única peça no tabuleiro capaz de superar essa hecatombe chamada capitalismo. Se a classe operária tinha antes sido quem tudo produzia, agora seria quem tudo destituiria. As formas organizadas de poder operário encontravam nestes intelectuais e nos seus conceitos os instrumentos com que legitimar e pensar as suas acções.

O contexto português é de novo particular. A burguesia moderna não tem, até aos anos setenta, oportunidade de se afirmar. A essência espiritual do Estado Novo era fundamentalmente católica, conservadora e anti-intelectual. Só em Abril é que o progressismo moderado das novas classes médias conquista uma hipótese de materialização política. Só aí surge realmente uma especificidade intelectual e criativa dentro da pequena burguesia, para a qual as formas de espontaneidade operária do PREC não poderiam ser senão uma ameaça, pondo em causa o pacto social que assegurava o seu lugar. Essa síntese entre proletarização do trabalho operário e a proletarização do trabalho intelectual nunca chega a ter lugar.

Essa nova intelligentsia assume que a sua função é a educação “do povo”, e a subsunção desse partido invisível nas formas embrionárias do poder soberano pós-revolucionário. Ela dedica-se então a produzir uma teoria e uma cultura de estado, totalmente subserviente ao poder, profundamente idiossincrática. A “cultura” revela-se apenas uma forma de engenharia social e um instrumento de abstracção normativa. Isto explica porque ainda hoje o mundo cultural e académico português é discursivamente tão progressista mas formalmente tão conservador em quase todas as suas expressões, das mais institucionais às mais experimentais.

Não surge uma teoria de Abril, não surge um PREC’ismo, porque artistas, académicos e literatos vêm no encerramento do PREC a possibilidade da sua sagração institucional. O seu papel de educador social depende da anulação da experiência histórica de destituição de elites que representa o período revolucionário. O PREC não é algo a ser teorizado e compreendido enquanto evento histórico, ele é um mero soluço na afirmação de um regime social-democrata e/ou liberal. A revolução pode até ser recordada com nostalgia e como inspiração estética, mas nunca enquanto experiência política e muito menos enquanto prática de antagonismo, de ruptura, de cisão, de secessão. Abril torna-se fetiche, folclore, suspiro e referência estética, precisamente para esconder o seu carácter profundamente subversivo.

Porque alinha então o dito partido invisível do PREC com este projecto institucional tão recuado? O que os movimentos de 68 procuraram foi forçar o colapso das instituições soberanas e transformar a luta de classes em guerra civil. Não o conseguiram, nem a bem, nem a mal. Em Portugal, no entanto, esse projecto insurreccional teve sucesso. O partido invisível do PREC conseguiu transformar um golpe numa revolução, prosseguindo-a até ao limiar da guerra civil.

Perante essa guerra civil qual seria a escolha mais racional? Avançar para uma derrota quase certa? Confiar no esquerdismo imberbe dos vários grupelhos leninistas? Recuar para uma posição meramente ideológica cada vez mais fraca? Não conseguindo esse partido invisível criar as suas próprias instituições, a suas próprias formas de poder, a sua própria linguagem, sobrava uma solução: aceitar um compromisso onde essa autonomia operária se transformasse em estado, adquirindo ganhos materiais e políticos limitados mas concretos, tornando a excepção política do 68 Português na excepção histórica da esquerda portuguesa.

“Abril” torna-se no nome do pacto social que enterra o PREC. O proletariado urbano e rural abandona as suas tentações insurreccionais mas fica com um partido. A esquerda moderada pode finalmente dedicar-se à sua missão civilizacional de educação da plebe. A classe média pode finalmente expressar o seu projecto de mundo. A direita pode manter o seu poder político e económico desde que abandone as suas tentações totalitárias. Do partido invisível do PREC sobra apenas o abrilismo, uma nostalgia vaga e distante do seu objecto, feita de um confortável desencanto com o mundo e da repetição até à exaustão dos tiques, os modos e as palavras do período.

 

4. O fim do Abrilismo

A esquerda portuguesa é das únicas a sobreviver à derrota global dos anos 80 e ao seu eclipse posterior. Portugal terá sido, nas últimas décadas, a democracia representativa onde a esquerda tem maior presença parlamentar, pelo menos no mundo dito “ocidental”. Mas nenhum pacto social dura para sempre. O declínio das forças de esquerda institucionais não é apenas eleitoral, ele é acompanhado pela lenta emergência de uma militância extraparlamentar que absorve a energia e os quadros que anteriormente seriam captados pelos partidos, onde a anemia teórica e a falta de práticas de real debate político minam a capacidade de análise e, consequentemente, de intervenção. As grandes paixões políticas não passam hoje pela militância partidária, mas pelos ecos que chegam das múltiplas insurreições que circulam o globo.

O esgotamento do abrilismo enquanto mito constituinte e pacto de regime é uma caixa da Pandora. De ele surgirão sonhos e pesadelos há muito esquecidos. A proletarização de franjas significativas da classe média representa precisamente o fim do mito da classe média e da política feita em seu nome. A ausência de perspectivas não é apenas uma questão económica, ela transformou-se em questão existencial. Será dessa interrogação que surgirão outros modos de lutar, pensar, agir e viver em conjunto. A reconstrução de uma hipótese de vida exterior e contrária ao desastre que é o capitalismo passará por um regresso às tarefas esquecidas do PREC: a elaboração conjunta e ofensiva de formas de pensar, de fazer, de criar e de discutir.

 

 

Luhuna Carvalho

Lisboa (1980). Estudou Cinema em Barcelona. Fez um estágio em Nova Iorque. Metrado na FCSH. Universidade Nova de Lisboa. Doutoramento no Centre for Research on Modern European Philosophy, Kingston University, Londres. Autor de Depois da Lei, Língua Morta, 2022.

 

Imagem

António Sena da Silva, Sem Título, 1956-1957. Terreiro do Paço. Lisboa.

 

Ficha técnica

«A emergência e o eclipse do partido invisível do PREC» • Luhuna Carvalho

Data de publicação • 24.04.2023

Edição #38 • Primavera 2023