Uma pequena nota antes de começar, que é também um gesto de reconhecimento: em Dezembro do ano passado foi editado em Portugal uma obra maior do pensador francês Jacques Derrida, Os Espectros de Marx. Teve tradução, como não podia deixar de ser, de Fernanda Bernardo, a quem devemos o esforço hercúleo de nos dar, através de traduções ou de artigos atentos, a obra de um dos “incorruptíveis”, como chamou Hèlene Cixous a todo um conjunto de pensadores franceses da segunda metade do século XX. Um dia dever-se-ia fazer a história dos tradutores, daqueles que nos dão a voz do outro.
Na década de 50 do século passado foi lançado
um LP (haverá certamente quem ainda se lembre em que consistia esse dispositivo
técnico) intitulado Out of This World, um conjunto de gravações dos sons
emitidos por tremores de terra e outros, captados na ionosfera. Quem se der ao
trabalho de percorrer estas paisagens sonoras (há uma pequena amostra
disponível online) perceberá, certamente, o que elas contêm de profundamente
inumano: esses sons que se ouvem, na profunda indiferença que têm relativamente
a nós – mas há já intervenção técnica,
que torna possível que eles nos cheguem, que torna possível que a sua
inumanidade nos diga alguma coisa – tornam desprovida de sentido a velha
questão que o Bispo Berkeley colocava (se se uma árvore cair sem ninguém por
perto, ela faz barulho?). A pergunta pressupunha, independentemente da sua
resposta, que entre nós e a natureza existe a possibilidade de uma relação, e,
face a esses sons, a relação pode apenas ser catastrófica: são anteriores ou
posteriores ao homem, relação alguma pode ser instituída; são inumanos, emana
deles o sopro gelado de um deserto sem vida. Experiência semelhante pode ser
feita por quem ouça, numa bomba de gasolina de uma auto-estrada (o local, aqui,
importa), o som contínuo, sempre igual ou com ligeiras e quase imperceptíveis
modificações, que um gerador emite no meio de uma noite que, por breves
instantes, se adivinha eterna – esta ligação profunda, tantas vezes abismal,
entre o artefacto técnico e uma natureza que não nos diz respeito é actualmente
pensada por um teórico vagamente excêntrico chamado Jussi Parikka, que sobre
isso tem um livro (A geology of Media). Estes sons que nos chegam não
nos dizem respeito, nada neles foi feito à medida do homem, nada neles é à
medida do homem; são a recusa de qualquer relação – frios, sóbrios, percorrendo
uma paisagem deserta, não dão lugar a qualquer palavra, a qualquer tagarelice,
e até a voz que, no LP, explica a sua proveniência, desposa a sobriedade
aterradora, sombria, com que nos chegam do interior e do exterior do planeta.
São “fora do mundo”, se compreendermos por mundo tudo quanto diga respeito ao
homem.
E há arte assim, ou melhor, a arte devia
medir-se em face do inumano – é o sentido positivo da barbárie, de que falava
Walter Benjamin, uma vida sem vestígios, que apaga tudo, que rasura tudo. Os
filmes de Farocki, por exemplo. A sua sobriedade, o seu rigor, a voz sem
tonalidade que se limita a fornecer, de forma clara e límpida, informações –
que é uma outra forma de dizer que é uma voz que se apaga, que não quer ser
lembrada, que permanece presa a uma neutralidade cinzenta. Acima de tudo, nada
nestes filmes diz respeito ao prazer (mesmo quando fala de prazer). Frio,
sóbrio, distante: uma arte da recusa.
Vem isto a propósito de um recente livro editado entre nós, um livro de um autor com alguma fortuna editorial, Jean Luc Nancy. Com tradução de Jorge Leandro Rosa, O Prazer no Desenho é o mais recente título deste pensador francês desaparecido no ano passado.
Correspondendo ao texto de um catálogo de uma
exposição de 2007-2008 (Le plaisir au dessin: carte blanche à Jean-Luc Nancy),
O Prazer no Desenho acaba por ser um título algo enganador, na medida em
que se nota que a Jean-Luc Nancy interessa muito mais a ligação entre a arte e
o prazer do que propriamente o desenho. Afirma algo sobre este último, sem
dúvida, sublinha o lado dinâmico (“o desenho evoca mais o gesto de desenhar do
que a figura traçada”), traça uma espécie de acontecimento do desenho dentro do
campo artístico (“o desenho é a forma não dada, não disponível, não formada.
Ele é então, ao invés, o dom, a invenção, o surgimento ou o nascimento da
forma”), confere-lhe um papel central dentro da arte, faz dele “uma espécie de
modelo da arte que nasce ingenuamente para o seu próprio génio”. O desenho tem
a particularidade de se referir ao gesto, de remeter para a mão que traça, de,
assim, permanecer sempre aberto, que é uma outra forma de dizer que designa
sempre a “força formadora desta mesma forma”. É um acontecimento: algo se
mostra através do desenho, algo surge pela primeira vez, de forma não
antecipável.
No entanto, é exactamente por dizer respeito
à mão que desenha, antes ainda de designar aquilo que é desenhado, que este
texto de Jean-Luc Nancy fala, em primeiro lugar, do prazer contido em toda a
arte:
“O primeiro a desenhar um cervo, a sua mão ou uma linha
ondulada numa parede rochosa deu abertura à repetição indefinidamente modulada
do seu gesto, à variação ilimitada do seu tema. Esta repetição, de que o
desenho contém a abertura e a estranha necessidade, alimenta um prazer cuja
essência é a própria repetição.”
Se há repetição, é porque o desenho diz
sempre respeito à mão e a essa modulação indefinida e ilimitada do gesto de
desenhar (é o prazer do próprio gesto, de um gesto livre de qualquer lei, que
pode permanecer na indeterminação). Seria, enfim, o próprio prazer da arte,
fazendo Jean-Luc Nancy apelo a uma tradição já antiga, que liga Kant a Freud –
ambos com forte presença nestas 100 páginas. Mas Nancy apressa-se logo a não
distinguir prazer de desprazer e a notar o quanto um se encontra entrelaçado
com o outro:
“Não há arte sem prazer; o que não significa que a arte
seja estranha quer ao esforço quer à inquietação ou à dor, em todos os sentidos
da palavra. Mas isso significa que a arte provém sempre de uma tensão que se
busca, que se compraz em tensionar-se, não para atingir a finalidade de uma
distensão, mas para renovar essa tensão até ao infinito, o que também quer
dizer que esse prazer tenso arrasta desprazer – ou, antes, que essa oposição se
enreda em si mesma.”
Não convém confundir o prazer e o desprazer
de que fala Jean-Luc Nancy com o prazer de um regime (visual, sonoro,
sensorial) que encontramos todos os dias, que invade de todos os lados – é
aquele que nos é dado pela televisão, pela publicidade na rua, nos transportes
públicos, nos telemóveis, no som da rua, em todos os momentos ao longo do dia.
A este, Nancy chama de “repleção”:
“Se é a um tal estado que que precisamos de chamar
“satisfação”, então compreendemos que essa palavra deve ser entendida no
sentido mais pleno de satis (o bastante, em plena suficiência) e no sentido
mais completo de factum (feito, acabado, terminado). O verdadeiro
sentido da palavra será, portanto, o de “repleção”. A repleção já não
experimenta o prazer: ela oscila entre a saciedade (o satis efectuado),
adormece num sono que não renova a emoção, antes a embrutece e anestesia”
O que Nancy chama de repleção, como, aliás,
começa desde logo por afirmar, não é equivalente ao prazer próprio à arte –
este, nascido de uma tensão que não tem fim, é prazer do prazer, é desejo de
prazer – mas podemos perguntar-nos se já não estaremos todos um pouco cansados
de tanto prazer, e se o que precisamos actualmente não será antes uma arte à
altura da destruição da experiência, uma arte à altura de vidas que apagam os
seus vestígios, uma arte da recusa, da distância indecomponível – fria, sóbria,
distante, como um astro sem vida que permaneça à distância. Uma arte à altura
desses sons inumanos com que começámos.
O filósofo alemão Walter Benjamin, num
pequeno texto muito ambíguo, dava como exemplo de uma arte à altura da pobreza
da experiência do seu tempo o vidro:
“Mas Scheerbart – para voltar a este exemplo – faz
questão de alojar a sua gente (e, seguindo o seu modelo, também os seus cidadãos)
em casas ajustadas à sua nova condição: em casas de vidro, deslocáveis e
amovíveis, como as que, entretanto, já Loos e Le Corbusier construíram. Não é
por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, a que nada se fixa. É
também frio e sóbrio.”
Este prazer de que fala Nancy é demasiado
humano (não confundir com o humano do humanismo, que é uma outra forma de
selvajaria), diz respeito ao gesto, à mão, dá lugar à liberdade, é a própria
liberdade na medida em que constrói sempre e de cada vez o sentido, permite
cruzar tempos, é aquilo que nos liga a Lascaux – uma continuidade sem evolução,
como se estivesse continuamente a nascer. E a arte talvez seja efectivamente
isso, ou pelo menos uma parte dela: uma forma de se respirar fora da barbárie,
uma suspensão, uma promessa de felicidade, como diria Nietzsche. Mas podemos
perguntar: será isso legítimo, ou, de uma forma menos moralista, será isso
suficiente? Duro, liso, frio e sóbrio (como o vidro), uma arte que fosse como
um deserto por onde apenas passasse um frio gélido – inumano, como é inumano
tanto o interior e o exterior do planeta. Um lugar sem vida, onde esta não
fosse sequer possível. Adorno, no início de Minima Moralia – um livro que tem o
melhor subtítulo do último século, “reflexões de uma vida danificada” – falava
naqueles escritores que “enfeitam as suas marionetes com as imitações da paixão
de outrora quais adornos baratos e que deixam actuar personagens que nada mais
são do que peças da maquinaria, como se ainda pudessem agir enquanto sujeitos e
algo dependesse da sua acção.” Seria certamente injusto comparar Nancy a
estes escritores, mas talvez se deva pedir à arte menos prazer (seja
ele qual for) e mais uma indagação sobre a “forma
alienada” – que é uma outra forma de
dizer, sobre o inumano, seja ele qual for.
João Oliveira Duarte
Licenciado em filosofia, mestre em estética, está a acabar o
doutoramento em história de arte. Publicou Não Sou da Família. Faz
crítica literária no i e na Colóquio letras
Nota de edição
O Prazer no desenho de Jean-Luc
Nancy, foi publicado pela Documenta/Sistema Solar em Outubro de 2022, na
colecção «disciplina sem nome». A tradução é de Jorge Leandro Rosa acompanhado de
iconografia de Daniel Moreira e Rita Castro Neves.
Imagem
Capa do livro «O Prazer no desenho» de Jean-Luc Nancy.
Ficha Técnica
«Jean-Luc Nancy. Uma arte sem prazer» • João Oliveira Duarte
Data de publicação: 02.02.2023
Edição #37 • Inverno 2023 •