A
maioria das mulheres trabalhadoras é capaz de contar histórias de horror sobre
a discriminação que sofreu durante as suas carreiras. As minhas incluem trivialidades
sociais, bem como grandes traumas. Contudo, algumas formas menos comuns de
discriminação surgiram quando a meio da minha carreira casei com um colega,
juntando as nossas vidas profissionais num momento em que a fama (embora não a
fortuna) o atingia. Observei o modo como ele foi transformado num guru da
arquitectura diante dos meus próprios olhos e, em certa medida, com base no
nosso trabalho em conjunto e no trabalho do nosso escritório.
Quando
eu e o Bob [Venturi] nos casamos, em 1967, eu era professora associada. Tinha
já ensinado nas Universidades da Pensilvânia e de Berkeley, e iniciei o
primeiro programa na nova faculdade de arquitectura da UCLA. Tinha o meu cargo
bem definido. O meu registo de publicações era respeitável; os meus alunos eram
entusiastas. Os meus colegas, a maior parte deles mais velhos que eu,
respeitavam-me da mesma forma que se respeitavam uns aos outros, e eu tinha
percorrido os mesmos corredores do poder que eles (ou, pelo menos, assim o
pensava).
A
primeira pista do meu novo estatuto chegou quando um arquitecto cujo trabalho
eu havia revisto me disse: “No meu
escritório achamos que foi o Bob quem o escreveu, usando o teu nome”. No
momento em que escrevemos Learning from Las Vegas, a nossa crescente
experiência com atribuições incorrectas levaram a que o Bob incluísse uma nota
no início do livro pedindo que o trabalho e as ideias não lhe fossem atribuídas
apenas a ele, descrevendo a natureza da nossa colaboração e os papéis
desempenhados por cada um no nosso escritório. Este pedido foi quase totalmente
ignorado. Aparentemente, um corpo de teoria e de projecto de arquitectura tem
de ser associado pelos críticos de arquitectura a um indivíduo em particular; e
quanto mais emocional for a sua crítica, mais forte é o foco numa pessoa só.
De
modo a evitar atribuições incorrectas, o nosso escritório fornece uma folha com
informações que descrevem as nossas formas preferidas de atribuição – o
trabalho ao nosso escritório e a escrita à pessoa que assinou o artigo ou o
rascunho. O resultado é que alguns críticos fazem agora uma atribuição pro
forma, num recanto discreto; depois, no corpo de texto, a concepção da obra
e as ideias da escrita são atribuídas a Robert Venturi. Na publicação japonesa Architecture and
Urbanism [A+U], por exemplo, Hideki Shimizu escreveu:
«Uma análise ao
plano para Crosstown Community sugere que Venturi não estará tanto a dar
à sua teoria um novo desenvolvimento, mas sim a dar à fonte da sua abordagem
arquitectónica uma forma clara, numa atitude fundamental em relação ao
planeamento urbano (…). A posição de Venturi em relação ao planeamento urbano é
o que lhe permite desenvolver a sua postura de base em relação à arquitectura. Crosstown
Community revela um estado profundo de emoção afectuosa.» [1]
1. Hideki Shimuzi,
“Criticism”, A+U 47,Novembro 1974, p.3
Tudo
estaria bem, não fosse Crosstown Community ser um trabalho meu, e ter
sido atribuído como tal no nosso livro; duvido que durante o período de dois
anos o Bob tenha passado mais do que duas tardes a trabalhar sobre ele. Quando
a [editora] Praeger publicou uma série de entrevistas com arquitectos, o meu
nome foi omitido da sobrecapa. [2] Reclamamos e a Praeger acabou por
adicionar o meu nome, embora reclamando que lhes estragaria o design. Porém, na
aba interior, apenas os «oito arquitectos» e «os homens nos bastidores» eram
mencionados. Sendo que eram nove os que estavam listados na capa, o que me faz
presumir que ainda assim fui deixada de fora.[3]
2. John W Cook and
Heinrich Klotz, Conversations with Architects, Praeger, Nova Iorque,
1973
3. Os arquitectos
listados originalmente eram Philip Johnson, Kevin Roche, Paul Rudolph, Bertrand
Goldberg, Morris Lapidus, Louis Kahn, Charles Moore, e Robert Venturi. Também
omitido da sobrecapa foi o arquitecto Alan Lapidus, entrevistado com o seu pai,
Morris. Alan não se queixou; pelo menos, estava lá em cima, com aqueles homens
que estão nos bastidores da arquitectura.
Houve
algumas excepções. Ada Louise Huxtable nunca cometeu um único erro comigo. Além
disso, sempre trabalhou arduamente para transmitir correctamente as nossas
ideias. Alguns críticos mudaram os seus métodos de atribuição em resposta aos
nossos pedidos, mas pelo menos um, em 1971, esteve em pé de guerra na direcção
oposta, empenhado em provar que a Grande Arte só pode ser feita por um homem, e
que Robert Venturi (leia-se Howard Roark) é desviado do bom caminho quando «se
junta à sua esposa Denise Scott Brown para elogiar certas práticas urbanas». E
a cônjuge e colaboradora de um arquitecto famoso escreveu-me a dizer que,
embora ela se revisse no trabalho do seu marido, a obra devia ser atribuída aos
talentos individuais do mesmo e não à sua colaboração. Quando arquitectos a
sério colaboram, afirmou ela, as suas identidades permanecem separadas; deu
como exemplo a lieder de Schubert e Goethe. Já nós contra-atacamos com
os Beatles.
As
trivialidades sociais (aquilo que os sul-africanos apelidam de petty apartheid)
foram continuando: «jantares de esposas» («vamos deixar os arquitectos
reunirem-se, minha querida»); entrevistas de emprego em que a presença da «mulher
do arquitecto» angustiou a direcção; jantares a que não podia ir porque um
membro influente do grupo de clientes queria «o arquitecto» como seu
acompanhante; jornalistas italianos que ignoravam os pedidos do Bob para
falarem comigo, porque eu percebia mais italiano que ele; a visão em túnel dos
estudantes em direcção ao Bob; o «então tu é que és o arquitecto» para o Bob, e
o bem intencionado «então tu também és arquitecta?» dirigido a mim. Uma vez, o
director de uma escola de arquitectura nova iorquina ligou-me, porque o Bob
estava indisponível: «Denise, tenho vergonha de estar a falar contigo, porque
estamos a dar uma festa para o QP e vamos enviar um convite ao Bob, mas não a
ti. És amiga do QP e és arquitecta, mas também és esposa e nós não estamos a
convidar as esposas».
Estas
experiências fizeram-me lutar, duvidar de mim mesma, ficar confusa e despender
demasiada energia. ‘Ficaria satisfeita de ter o meu trabalho atribuído ao meu
marido», diz uma arquitecta, esposa de um arquitecto. E um colega pergunta, «Porque
te preocupas com essas coisas? Nós sabemos que tu és boa. Isso não é
suficiente?» Duvido que fosse suficiente
para os meus colegas homens. O que faria o Peter Eisenman se o seu
último artigo fosse atribuído ao seu co-editor, Kenneth Frampton? Ou o que
faria Vincent Scully caso o livro sobre as casas de Newport fosse atribuído à
sua co-autora, Antoinette Downing – fazendo talvez um parêntesis,
esclarecendo que não se pretende com
isto diminuir a contribuição dos outros?
Por
isso, reclamei ao editor que se referia aos «patos do Venturi», informando-o
que fui eu quem inventou o «pato». (Ele imprimiu a minha carta sob o título «Less
is a Bore», uma citação do meu marido). Mas as minhas queixas enfurecem os
críticos, e alguns formaram hostilidades duradouras contra nós os dois a
respeito desta matéria. Os arquitectos não se podem dar ao luxo de fazer
críticas hostis. E, de qualquer modo, comecei a não gostar da minha própria
figura hostil.
Foi
nesse ponto que começaram a surgir a dúvida e a confusão. «O meu marido é
melhor projectista do que eu. E eu sou uma pensadora bastante enfadonha». A
primeira consideração é verdade, a segunda provavelmente não. Tento contrariar
com mais questões: «Como é que trabalhamos tão bem juntos, complementando as
ideias um do outro, tanto no desenho como na teoria? Se as minhas ideias não
são boas, porque são tão elogiadas pelos críticos (ainda que atribuídas ao
Bob?)».
Nós
próprios somos incapazes de separar as
nossas contribuições. Desde 1960 que temos colaborado no desenvolvimento de
ideias e desde 1967 que colaboramos na prática arquitectónica. Como chefe de
projecto, Bob assume a responsabilidade final do desenho. Em alguns projectos,
estou intimamente envolvida e vejo muitas das minhas ideias no desenho final;
noutros, dificilmente. Em alguns, a ideia de base (aquilo que Louis Kahn chamou
o quê) era minha. Todo o trabalho de planeamento urbano do nosso
escritório, e o desenho urbano a este associado, é da minha responsabilidade; o
Bob praticamente não está envolvido nessa parte, embora outros arquitectos do
escritório estejam. [4]
4. O foco
intelectual do Bob provém principalmente das artes e da história da
arquitectura. Nisso, ele é mais um especialista do que eu. As minhas
preocupações artísticas e intelectuais foram formadas antes de o conhecer (e,
na verdade, antes sequer de vir para a América), mas foram a base da nossa
amizade como colegas na academia. Como planeadora [urbana], o meu leque
profissional inclui as ciências sociais e outras disciplinas relacionadas com o
planeamento, que tentei fundir na nossa crítica e na nossa teoria de
arquitectura. Como arquitecta, os meus interesses variam muito, mas sou
provavelmente mais útil nas fases iniciais de um projecto, quando trabalhamos
para desenvolver o ponto de partida.
Como
em todos os escritórios, as nossas ideias são interpretadas e ampliadas pelos
nossos trabalhadores, em particular os nossos associados de longa data. Chefes
e assistentes podem alternar entre os papéis de criadores e de críticos. O star
system, que vê o escritório como uma pirâmide com um arquitecto no topo,
está desfasado das complexas relações actuais na arquitectura e na construção.
Mas, assim como o sexismo me descreve como uma escriba, dactilógrafa e
fotógrafa do meu marido, o star system define também os nossos
associados como uns «bananas secundários» e os nossos trabalhadores enquanto
meros lápis.
Por
não estarem connosco ao estirador, os críticos não têm maneira de separar o
nosso trabalho. Aqueles que o fazem magoam-me a mim em particular, mas também
aos outros no nosso escritório, e ao ignorarem como irrelevantes os aspectos do
nosso trabalho em que o Bob interagia com outros, reduzem o seu alcance para ir
de encontro aos limites da sua própria percepção.
Embora
estivesse convencida do meu papel enquanto mulher anos antes do renascimento do
movimento, foi a minha experiência como esposa de um arquitecto que me levou
finalmente a agir. Em 1973, dei uma palestra sobre sexismo e o star system
à Aliança de Mulheres na Arquitectura [Alliance of Women in Architecture],
em Nova Iorque. Pedi que o encontro fosse aberto apenas a mulheres, algo
provavelmente incorrecto, mas pelas mesmas razões emocionais (incluindo o
orgulho ferido) que fazem com que os movimentos nacionais, numa fase inicial,
enfatizem o separatismo. Ainda assim, apareceram cerca de seis homens.
Esconderam-se nos lados e no fundo da audiência. As cerca de cem mulheres
presentes identificaram-se fortemente com a minha experiência; «Eu também!» [“Me
too”, no original] «Meu deus, tu também?» ecoou por todo o lado. Mais
tarde, apercebi-me que os homens presentes começaram a ficar mais mal-humorados
à medida que nos tornamos mais entusiastas. Pareciam incapazes de compreender
as nossas inquietações.
Desde
então, tenho falado em várias conferências sobre mulheres na arquitectura.
Agora, recebo várias vezes por ano propostas para cargos como reitora e
presidente de departamentos. Encontro-me em delegações onde sou a única mulher,
e onde há um homem negro. Cumprimentamo-nos um ao outro, ironicamente. Sou
frequentemente convidada a falar em escolas de arquitectura, «para ser um
modelo a seguir pelas nossas raparigas». Fico feliz por fazer isto pelas
arquitectas jovens, mas preferia ser convidada apenas porque o meu trabalho é
interessante.
Finalmente,
comecei a ensaiar a minha própria interpretação de sexismo e do star system
em arquitectura. Budd Schulberg define «a qualidade das estrelas» como «uma
misteriosa amálgama de amor próprio, vivacidade, estilo e promessa sexual».[5]
Embora
essa definição capte o espírito do estrelato arquitectónico, omite o facto de o
estrelato ser algo feito a uma estrela por outros. As estrelas não se criam a
si mesmas. Mas porque é que os arquitectos precisam de criar estrelas? Na minha
perspectiva, porque a arquitectura lida
com a incomensurabilidade. Embora a arquitectura seja simultaneamente ciência e
arte, os arquitectos permanecem ou caem na sua própria estima e na dos seus
pares pelo facto de serem ou não «bons projectistas», mas os critérios para
isso são mal definidos e indefiníveis.
5. Budd Schulberg, “What Price Glory?”, New
Republic 168, 6 Janeiro e 13, 1973, pp. 27-31.
Confrontadas
com esta incomensurabilidade, as pessoas dirigem o seu caminho como por magia.
Antes da invenção dos instrumentos de navegação, uma bela senhora era esculpida
nas proas dos barcos para ajudar os marinheiros a atravessar o oceano; e os
arquitectos, lutando com as questões inatingíveis do desenho, escolhem um guru
cujo trabalho lhes preste auxílio
pessoal em áreas onde há poucas regras a seguir. O guru, enquanto figura
paternal arquitectónica, está sujeito a intenso ódio e amor; de qualquer modo,
a relação é pessoal e, necessariamente, de um-para-um. Isto explica a posição
intensamente ad hominem de alguns dos críticos do «Venturi». Se a
atribuição fosse correcta, o tom seria mais diluído, uma vez que não é tão
fácil emocionar-se sobre [o trabalho de] tantas pessoas. Suspeito, também, que
para os arquitectos homens os gurus também têm de ser homens. Não podem existir
gurus pop e mães em arquitectura. As prima donnas arquitecturais
são todas homens.
Posteriormente,
uma colega, ela própria debatendo-se com dificuldades num programa de Estudos
Americanos, chamou a minha atenção para o trabalho de Lionel Tiger. Em Men
in Groups, este escreveu que os homens correm em matilhas masculinas e que
as mulheres ambiciosas deverão compreender isto. [6] Recordei-me também da exclamação do
arquitecto francês Lionel Schein, que escreveu no Le Carré Bleu, nos
anos 50: «O chamado espírito de atelier é apenas o espírito de uma casta». Isto
fez-me pensar nas origens da profissão da arquitectura americana nas classes
mais altas, nas diferenças entre as atitudes da classe alta e da classe média
em relação às mulheres, e nas fortes semelhanças que ainda hoje existem entre a
profissão de arquitectura e um clube só para homens.
6. Lionel Tiger, Men
in Groups, Random House, Nova Iorque, 1969.
A
educação arquitectural americana foi modelada à imagem da École des Beaux-Arts
da viragem do século. Esta era um local de grande entusiasmo e diversão, mas a
sua organização era fortemente autoritária, especialmente no sistema de
avaliação do trabalho dos estudantes. As personalidades autoritárias e a
cultura dos «escolhidos», promovida pelas Beaux-Arts, permaneceram na
arquitectura moderna muito depois de a filosofia arquitectónica das Belas Artes
ter sido abandonada; e o clube de arquitectura ainda hoje exclui as mulheres.
O
arquitecto revolucionário moderno, heroicamente original, à procura de salvar
as massas com a sua tecnologia de vanguarda e através da produção em massa, é
uma imagem machista por excelência. Assenta de forma estranha nos reaccionários
de meia-idade que hoje ostentam o seu manto. Uma perspectiva mais protectora e
afectuosa (feminina?) está a ser recomendada à profissão por urbanistas e
ecologistas em nome da justiça social e com o objectivo de salvar o planeta. As
mulheres ainda vão a tempo de conduzir esta tendência.
Já o
crítico de arquitectura é frequentemente o escrivão, o historiador e o criador
de reis [kingmaker] de um determinado grupo. Estas actividades dão-lhe o
direito de se juntar aos «escolhidos», mesmo que ele os incomode um pouco. A
sua outra satisfação vem de fazer história à sua e à imagem deles. O
crítico-criador-de-reis é, claro está, um homem; embora possa escrever sobre o
grupo enquanto grupo, seria um pobre tolo aos seus olhos e aos deles se
tentasse coroar o grupo inteiro enquanto rei. E há ainda menos recompensa
mental na coroação de um rei feminino.
Nestas
deduções, o meu pensamento é paralelo ao de Cynthia F. Epstein, que escreveu
que a elevação dentro das profissões é negada às mulheres por razões que
incluem o «sistema colegial», que ela descreve como um clube de homens, e «a
relação promotor-protegido, que determina o acesso aos níveis mais elevados da
maioria das profissões». Epstein sugere que o promotor de alto nível, tal como
o crítico-criador-de-reis, pareceria tonto se apadrinhasse uma mulher e, de
qualquer forma, a sua esposa opor-se-ia. [7]
7. Cynthia F.
Epstein, «Encountering the Male Establishment: Sex-Status Limits on Women’s
Careers in the Professions». American Journal of Sociology 75, Maio
1970, pp. 965–82
Pensar-se-ia
que o último elemento da definição que Schulberg faz de uma estrela, uma «promessa
sexual», nada tem a ver com arquitectura. Mas perguntei-me por que razão havia
um tom familiar – hostil, lugubremente moralista, mas de alguma forma invejoso
– nas cartas ao editor que seguiam tudo o que era publicado pela nosso
escritório, até que o reconheci como o mesmo tom que a América comum emprega
nas cartas enviadas ao editor de pornografia. Os arquitectos que escrevem
cartas zangados sobre o nosso trabalho parecem sentir que somos oportunistas da
arquitectura ou, pelo menos, que nos permitimos liberdades que eles não
tomariam, mas que possivelmente invejam. Aqui está uma, por um professor de
arquitectura inglês: «Venturi tem um nicho, é certo, mas está lá no fundo,
junto do flagelante, do fetichista e do
‘Blagdon Nude Amateur Rapist’». Estes comentários foram escritos por
homens, e foram escritos só para ou sobre o Bob.
Sugeri
que o sistema do estrelato, que é injusto para muitos arquitectos, é duplamente
duro para com as mulheres, num ambiente sexista, e que nos níveis superiores da
profissão a arquitecta que trabalha com o seu marido ficará submersa pela sua
reputação. As minhas interpretações são especulativas. Não temos uma sociologia
da arquitectura. Os arquitectos não estão habituados à análise social e
desconfiam dela; já os sociólogos têm assuntos maiores com que se preocupar.
Mas recebo apoio para a minha tese da parte de mulheres arquitectas, de alguns
membros do meu escritório e do meu próprio marido.
Deveria
existir esse sistema do estrelato? É inevitável, penso eu, devido ao prestígio
que damos ao projecto [design] em arquitectura. Mas as escolas podem e
devem reduzir a importância do estrelato, alargando a visão do estudante sobre
a profissão, para mostrar valor nos seus outros aspectos. Deus sabe que outras
competências para além do desenho [design] são importantes para a
sobrevivência dos escritórios de arquitectura. As escolas deveriam também
combater o sentimento de inadequação do estudante em relação ao projecto [design],
ao invés de, como agora, aumentá-lo através de técnicas educacionais
erradamente autoritárias e julgadoras. Com estas mudanças, os arquitectos
sentiriam menos necessidade de gurus e aqueles de que necessitariam seriam
diferentes - mais responsáveis e humanos do que os gurus são hoje em dia
chamados a ser.
Na
medida em que os gurus são inevitáveis e o sexismo é galopante na profissão da
arquitectura, o meu problema pessoal de submersão pelo sistema do estrelato é
irresolúvel. Poderia melhorar as minhas hipóteses de reconhecimento enquanto
indivíduo se retomasse o ensino ou abandonasse a colaboração com o meu marido.
Esta última aconteceu, até certo ponto, à medida que o nosso escritório cresceu
e as nossas responsabilidades individuais dentro dele tomaram mais do nosso
tempo. Passamos certamente menos tempo juntos na mesa de desenho e, em geral,
menos tempo a escrever. Mas isto é uma pena, pois o trabalho conjunto ou em
conjunto alimenta-nos a ambos.
Num
quadro mais amplo, nem tudo está perdido. Nem todos os arquitectos pertencem ao
clube dos homens; hoje há mais arquitectas do que antes ; alguns críticos estão
a aprender; o Instituto Americano de Arquitectos (AIA) quer activamente ajudar;
e a maioria dos arquitectos, pelo menos em teoria, preferiria não praticar discriminação
se alguém lhes provasse que eles a têm praticado e lhes mostrasse como parar.
*
O
que está escrito acima é o resumo de um artigo que escrevi em 1975. Decidi não
o publicar na altura, porque julguei que sentimentos fortes sobre o feminismo,
no mundo da arquitectura, garantiriam às minhas ideias uma recepção hostil, o
que poderia prejudicar a minha carreira e as perspectivas do meu escritório.
Contudo, partilhei o manuscrito com amigos e, em modo samizdat, consegui
fazê-lo circular. Ao longo dos anos, tenho recebido cartas a pedir cópias.
Em
1975, relatei a minha primeira experiência do novo surgimento de mulheres na
arquitectura. A proporção de homens para mulheres é agora de 1 para 1 em muitas
escolas. O talento e o entusiasmo destas jovens mulheres irrompeu criativamente
na profissão. Nas conferências de hoje encontro muitas participantes mulheres;
algumas têm já dez anos ou mais de experiência no campo.
A
arquitectura também mudou desde a primeira vez que escrevi este ensaio. No
entanto, a minha esperança de que os arquitectos prestassem atenção aos ditames
dos agentes sociais não se concretizou, e as mulheres não se envolveram nessa
tendência. O pós-modernismo mudou as opiniões dos arquitectos, mas não da forma
que eu esperava. Em vez disso, o culto à personalidade aumentou. Os arquitectos
perderam a sua preocupação social e o arquitecto enquanto macho revolucionário
foi sucedido pelo arquitecto como último grito do mundo da arte. Isto piorou as
coisas para as mulheres, porque em arquitectura o dernier cri é tão
masculino como a prima donna.
O
aumento das admissões femininas e a deslocação para a direita em arquitectura
parecem ser tendências em direcções opostas, mas na realidade não estão
relacionadas porque ocorrem em ambos os extremos do espectro etário. As
mulheres que entram são jovens; o culto da personalidade ocorre no topo. As
duas tendências ainda terão de se encontrar. Quando o fizerem, será fascinante
ver o que acontece. Entretanto, as medidas de acção afirmativa têm ajudado as
pequenas empresas de propriedade feminina a começar, mas podem ter dificultado
a absorção das mulheres pela tendência dominante da profissão, porque as
mulheres que integram grandes práticas existentes não ganham nada da acção
afirmativa, a menos que sejam proprietárias de 51% da empresa.
Durante
a década de 1980, houve um aumento gradual de mulheres arquitectas na academia
(suspeito que o crescimento tem sido mais lento do que noutras profissões).
Recebo agora menos ofertas para directora, provavelmente porque há mais
candidatas femininas do que antes e porque se diz que estou demasiado ocupada
para aceitar. Tenho pouco tempo para dar lições. À medida que o nosso
escritório cresceu, o Bob e eu encontrámos mais, e não menos, oportunidades
para trabalhar em conjunto, uma vez que algumas das nossas responsabilidades
foram delegadas aos associados seniores e coordenadores de projectos que
constituem o núcleo do nosso escritório.
Durante
esse período deixamos de ser considerados jovens estranhos e assistimos a uma
maior aceitação das nossas ideias do que teríamos sonhado ser possível.
Ironicamente, uma citação em homenagem ao Bob, pela sua «descoberta do ambiente
quotidiano americano», foi escrita em 1979 pelo mesmo crítico que em 1971
julgou as falhas do Bob por partilhar o meu interesse pela paisagem quotidiana.
Para
mim, as coisas no topo continuam muito semelhantes ao que eram. A discriminação
continua ao ritmo de cerca de um incidente por dia. Os jornalistas que se
aproximam do nosso escritório parecem sentir que não valerão o seu salário se
não «falarem de Venturi». A batalha pelo terreno e a corrida pelo estatuto
entre os críticos continua a exigir a obliteração das mulheres. Nos últimos
vinte anos, não me lembro de um artigo importante de um crítico de alta patente
sobre uma mulher arquitecta. As jovens mulheres críticas, ao entrarem na
batalha, tornam-se tão machistas quanto os homens e pelas mesmas razões - para
sobreviver e vencer no mundo competitivo dos críticos.
Durante
alguns anos, as escritoras de arquitectura estavam interessadas no sexismo e no
movimento feminista e queriam discuti-los comigo. Numa entrevista conjunta,
perguntavam ao Bob sobre o trabalho e questionavam-me sobre o meu «problema
enquanto mulher». «Escreve sobre o meu trabalho»! Suplicava eu, mas elas
raramente o faziam.
Algumas
jovens mulheres arquitectas questionam a necessidade do movimento feminista,
afirmando não terem sofrido qualquer discriminação. A minha preocupação é que,
embora a escola não esteja livre de discriminação, é provavelmente o ambiente
menos discriminatório que irão encontrar nas suas carreiras. Da mesma forma, os
primeiros anos na prática trazem pouca diferenciação entre homens e mulheres. É
à medida que avançam que surgem as dificuldades, quando empresas e clientes se esquivam
a confiar responsabilidades de alto nível às mulheres. Ao verem os seus colegas
masculinos a destacarem-se à sua frente, é provável que as mulheres que não têm
uma consciência feminista sintam que o seu fracasso é culpa sua.
Ao
longo dos anos, lentamente, apercebi-me de que as pessoas que causam as minhas
dolorosas experiências são ignorantes e rudes. São os críticos que não leram o
suficiente e os clientes que não sabem porque vieram até nós. Fui ajudada a
compreender isto ao reparar que os estudiosos cujo trabalho mais respeitamos,
os clientes cujos projectos nos intrigam, e os patronos cuja amizade nos
inspira, não têm qualquer problema em compreender o meu papel. Esses são os
sofisticados. Em parte, através deles, ganho coragem e percebo que ao longo dos
últimos vinte anos tenho conseguido fazer o meu trabalho e, apesar de alguns
deslizes, alcançar respeito por mim própria.
Denise Scott Brown
Denise Scott Brown (1931) é arquitecta, professora e teórica de
arquitectura. Em colaboração com John Rauch e Robert Venturi, fundou e dirigiu
o escritório Venturi, Rauch & Scott Brown, e mais tarde Venturi,
Scott Brown & Associates, trabalhando nos vários tipos de projectos do
escritório, em particular como arquitecta responsável pelo planeamento urbano,
desenho urbano e planeamento de campus universitários. Deu conferências,
escreveu e publicou vastamente, incluindo: Learning from Las Vegas
(1972; com Robert Venturi e Steven Izenour); The View from the Campidoglio
(1984; com Robert Venturi), Urban Concepts (1990); Architecture and
Decorative Arts, Two Naifs in Japan (1991; com Robert Venturi); Architecture
as Signs and Systems for a Mannerist Time (2004; com Robert Venturi) e Having
Words (2009). Em 1991, o prémio Pritzker foi atribuído exclusivamente a
Robert Venturi, sob o pretexto de que o prémio seria apenas atribuído a
arquitectos a título individual, apesar de em 1988 o prémio ter sido
simultaneamente atribuído a Oscar Niemeyer e Gordon Bunshaft.
Nota de edição
Circulando desde 1975, informal e confidencialmente num meio
restrito, este texto foi originalmente publicado como «Room at the Top? Sexism
and the Star System in Architecture,» in Architecture: A Place for Women
(ed. Ellen Perry Berkeley and Matilda McQuaid), Smithsonian Institution Press,
Washington D.C., 1989, pp. 237–46. A tradução portuguesa que aqui se apresenta
foi realizada por Maria Rebelo e João Paupério para o Jornal Punkto, a partir
da versão disponível online em https://www.readingdesign.org/room-at-the-top.
Imagem
1. Denise Scott Brown em Las Vegas, 1966. Robert Venturi/Venturi,
Scott Brown and Associates, Inc.
Ficha Técnica
«Um lugar no topo?» • Denise
Scott Brown
Data de publicação: 26.01.2022
Edição #37 • Inverno 2023 •