Pensar entre as disciplinas: uma estética do conhecimento • Jacques Rancière

 

 

O que deve ser entendido pela invocação de uma “estética do conhecimento”? Manifestamente, não se trata de afirmar que as formas de conhecimento deveriam adquirir uma dimensão estética. A expressão pressupõe que tal dimensão não tem de ser acrescentada, enquanto ornamento suplementar, mas que ela existe, de qualquer forma, enquanto dado imanente do conhecimento. Resta saber o que isto implica. A tese que gostaria de apresentar aqui é simples: falar de uma dimensão estética do conhecimento é falar de uma dimensão de ignorância que divide a própria ideia e prática do conhecimento.

Esta proposição implica obviamente uma tese prévia sobre o significado de “estética”. A tese é a seguinte: a estética não é a teoria do belo ou da arte, nem sequer uma teoria da sensibilidade. A estética é um conceito historicamente determinado que designa um regime específico de visibilidade e inteligibilidade da arte, que faz parte de uma reconfiguração das categorias da experiência sensível e da sua interpretação. É este novo tipo de experiência que Kant sistematizou na Crítica da Faculdade do Juízo. Para si, a experiência estética implica uma certa desconexão das condições habituais da experiência sensível, que este resumiu numa dupla negação. O objecto de apreensão estética caracteriza-se pelo facto de não ser nem um objecto de conhecimento nem um objecto de desejo. A apreciação estética de uma forma é sem conceito. Ela não é em função do saber segundo o qual um artista deu forma a uma determinada matéria.

As razões do belo separam-se assim das razões da arte. Mas separam-se também das razões que tornam um objecto desejável ou detestável. Ora, esta dupla negação não define apenas as novas condições de apreciação das coisas da arte. Define também uma certa suspensão das condições normais da experiência social. Isto é o que Kant ilustra no início da Crítica da Faculdade do Juízo com o exemplo do palácio cujo julgamento estético isola apenas a forma, desinteressando-se por saber se este palácio serve a vaidade de algum nobre ocioso e quanto suaram os homens do povo para o construir. Isto, diz Kant, deve ser ignorado para apreciar esteticamente a forma do palácio.

Esta vontade de ignorância declarada por Kant ainda causa escândalo. Pierre Bourdieu dedicou seiscentas páginas à demonstração de uma única tese: que esta ignorância é o desrespeito deliberado do que a ciência sociológica nos ensina pelas medidas mais precisas, nomeadamente que o juízo estético desinteressado é o privilégio daqueles que se podem abstrair – ou que acreditam poder abstrair-se – da lei sociológica que faz com que cada classe da sociedade faça juízos de gosto correspondentes ao seu ethos, ou seja, à forma de ser e de sentir que lhe é imposta pela sua condição. O juízo desinteressado sobre a beleza formal do palácio está de facto reservado para aqueles que não são nem proprietários de palácios nem trabalhadores da construção. É peculiar a essa pequena burguesia intelectual que se instala na cadeira entre o trabalho e o capital, e que é a sede do pensamento universal e do gosto desinteressado. A sua excepção confirma desse modo a regra de que os juízos de gosto são, na verdade, juízos sociais que traduzem um certo ethos social.

O julgamento de Bourdieu e de todos os denunciantes da ilusão estética baseia-se numa alternativa simples: ou conhecemos ou desconhecemos. Se desconhecemos, é porque não sabemos ver ou porque não queremos ver. Mas não querer ver é ainda uma forma de não saber ver. O negador – filósofo ou pequeno-burguês – que acredita no carácter desinteressado do julgamento estético não quer ver porque não pode ver, porque o lugar que ocupa no sistema determina, para ele como para todos os outros, um modo de acomodação que determina uma forma de desconhecimento. Em suma, a ilusão estética confirma que os sujeitos estão sujeitos a um sistema porque não conhecem o seu funcionamento. E se eles não sabem como funciona, é porque o próprio funcionamento deste sistema é o funcionamento do seu desconhecimento. Sábio é aquele que conhece esta identidade das razões do sistema e as razões do seu desconhecimento.



Esta configuração do conhecimento assenta numa alternativa simples: há um saber verdadeiro, que sabe, e um saber falso, que ignora. O saber falso escraviza, o verdadeiro saber liberta. Porém, a neutralização estética do conhecimento sugere que este esquema é demasiado simples. Sugere que não há um saber em jogo, mas dois, que cada saber é acompanhado de uma certa ignorância, e que há também, portanto, um saber que escraviza e uma ignorância que liberta. Se o operário da construção civil é subjugado, não é porque desconheça a exploração a que é submetido, em benefício dos habitantes do palácio, mas, pelo contrário, porque não pode ignorá-la, porque a sua condição o impede de formar um corpo e um ponto de vista diferente do de uma pessoa subjugada, porque o impede de ver neste palácio outra coisa que não seja a quantidade de trabalho nele investido e a quantidade de ociosidade que toma conta dele. Por outras palavras, um “saber” é sempre duas coisas numa: é um corpo de conhecimentos e é também uma certa distribuição de posições. O trabalhador da construção civil deve assim ter um duplo saber: o dos gestos técnicos do seu ofício e o da sua condição. Mas cada um destes conhecimentos é o outro lado de uma ignorância: aquele que sabe trabalhar com as suas mãos é suposto ser um estranho ao olhar que aprecia a adequação do seu trabalho a um fim superior. É por isso que ele sabe que deve permanecer no seu lugar. Mas dizer que ele o “sabe” é, de facto, dizer que não lhe compete saber o que o sistema de lugares deve ser.

Platão explicou-o de forma definitiva: os artesãos não podem estar envolvidos nas coisas comuns da cidade por duas razões: primeiro, porque o trabalho não espera por ninguém; segundo, porque Deus pôs ferro na alma dos artesãos, ao mesmo tempo que colocou ouro na alma daqueles que devem governar a cidade. Por outras palavras, a sua ocupação define aptidões (e inaptidões), e as suas aptidões, por sua vez, dedicam-nas a uma determinada ocupação. Não é necessário que os artesãos estejam profundamente convencidos de que Deus colocou de facto ferro nas suas almas e ouro nas almas dos seus líderes. Basta que actuem diariamente como se fosse este o caso: basta que os seus braços, os seus olhos e o seu julgamento combinem a sua habilidade com o conhecimento da sua condição e vice-versa. Não há ilusão alguma, nem há desconhecimento nisto. É uma questão de “crença”, diz Platão. Mas a crença não é a ilusão que se opõe ao conhecimento e esconde uma realidade. É uma relação determinada de dois “conhecimentos” e das duas “ignorâncias” que lhes correspondem.

É este dispositivo que a experiência estética desregula. O que significa que é muito mais do que uma forma de apreciar obras de arte. É a definição de um tipo de experiência que neutraliza a relação circular do conhecimento enquanto saber e do conhecimento enquanto distribuição dos lugares. A experiência estética escapa à distribuição sensível dos lugares e das competências que estrutura a ordem hierárquica.

O sociólogo queria que esta fosse apenas uma ilusão do filósofo, que acredita na universalidade desinteressada do julgamento sobre o belo, porque desconhece as condições que determinam os gostos e a forma de ser do operário da construção civil. Mas a esse respeito o operário da construção civil acredita mais em Platão do que no sociólogo: o que ele precisa e o que a experiência estética significa é a mudança de um regime de crença, a mudança da relação entre o que os braços sabem executar e o que os olhos são capazes de observar. 



É isto que nos diz, cinquenta anos após Kant, num jornal operário da época da Revolução de 1848, um operário da construção civil que diz falar-nos do seu dia de trabalho, mas parece estar a escrever a sua paráfrase pessoal da Crítica da Faculdade do Juízo. Cito aqui um extracto do seu texto: “Acreditando estar em sua própria casa, enquanto não termina o quarto no qual está a assentar o parquet, admira a sua disposição. Se a janela se abre sobre um jardim ou se domina um horizonte pitoresco, ela pára por um momento os seus braços e desliza em direcção à perspectiva espaçosa para dela desfrutar melhor do que os proprietários das casas vizinhas”. [1]

1. Gabriel Gauny, “Le travail à la tache”, Le philosophe plébéien. Textes rassemblés et présentés par Jacques Rancière, Paris, La Fabrique, 2017, p.61. [N.T.]

Ignorar a quem pertence a casa e essa perspectiva, agindo como se se possuísse aquilo de que o olhar desfruta é operar uma efectiva disjunção entre os braços e o olhar, uma disjunção entre uma ocupação e as aptidões que lhe correspondem. É trocar um como se por um outro como se. Platão contava histórias e mitos a fim de submeter o conhecimento técnico a um conhecimento dos “fins”. Este conhecimento dos fins é necessário para fundar uma ordem hierárquica. Infelizmente, este suplemento que fornece o seu fundamento para a distribuição dos saberes e das posições, não tem qualquer fundamento demonstrável. Tem de ser pressuposto e, para isso, tem de ser contada uma história que seja ‘crida’, no sentido acima definido.

O conhecimento, diz-nos Platão, precisa de histórias porque, de facto, é sempre duplo. Mas ele pretende limitar estas histórias dentro de um quadro ético. “Ética”, tal como estética, é uma palavra cujo sentido precisa de ser clarificado. É prontamente identificada com a instância que julga factos particulares de acordo com valores particulares. Mas isto não é o que “ethos” significa em primeiro lugar. Antes de significar lei, moralidade ou valor, “ethos” significa estadia. Para depois significar a forma de estar que corresponde a esta estadia, a forma de sentir e de pensar que convém à pessoa que ocupa este ou aquele lugar. E é disto que tratam os mitos platónicos. Platão conta histórias que prescrevem como aqueles que pertencem a uma condição devem viver essa condição. Isto significa que ele coloca as suas produções “poéticas” num quadro onde estas são lições, onde o poeta é um educador do povo, bom ou mau. Isto significa que para si não existe “estética”.

O que “estética” significa é, na verdade, uma “finalidade sem fim”, um prazer desconectado de qualquer ciência dos fins. É uma mudança de estatuto do como se. O olhar estético que visa a forma do palácio não está relacionado com a sua perfeição funcional e com a sua inscrição numa ordem da sociedade. Este age como se o olhar se pudesse desligar desta dupla relação do palácio com o saber investido na sua construção e com o saber da ordem social que ele encena. E o artesão, consequentemente, age como se estivesse em casa, na casa que sabe que não é sua, como se possuísse a perspectiva do seu jardim. Esta “crença” não esconde qualquer realidade. Mas desdobra essa realidade, que a ordem ética gostaria que lhe fosse dada como uma. Como resultado, torna-se capaz de desdobrar a sua identidade de trabalhador; pode acrescentar à sua identidade de operário, com um determinado ofício, uma identidade de proletário, ou seja, a identidade de um sujeito capaz de deixar para trás a sua atribuição a uma condição privada e de intervir nos assuntos da comunidade.

É este desdobramento que o sociólogo recusa. Para ele, o como se só pode ser uma ilusão. O conhecimento não pode ser estético. Pelo contrário, este deve ser o oposto da estética. A estética é, com efeito, a divisão do conhecimento, é o esbatimento desta ordem da experiência sensível que faz com que gostos e atitudes, conhecimentos e ilusões, correspondam a posições sociais. A polémica de Bourdieu contra a estética não é obra de um sociólogo em particular sobre um aspecto particular da realidade social. É estrutural. Aborda a possibilidade da sociologia enquanto disciplina. Na verdade, uma disciplina não é, antes de mais, a definição de um conjunto de métodos adequados a um determinado campo ou a um determinado tipo de objecto. É, antes de mais, a própria constituição deste objecto enquanto objecto do pensamento, é a demonstração de uma certa ideia de conhecimento, isto é, de uma certa ideia da relação entre o conhecimento e uma distribuição de posições.

É isto que significa uma disciplina. Uma disciplina é sempre algo mais do que a exploração de um território do conhecimento. É a constituição deste território e, portanto, a demonstração de uma ideia do saber. E uma ideia do saber quer dizer uma regulação da relação entre os dois saberes e as duas ignorâncias. É uma forma de definir uma ideia do pensável. Esta ideia do pensável é uma ideia do que os próprios objectos de conhecimento podem pensar e conhecer. É sempre, portanto, uma certa liquidação do dissenso, do desvio da ordem ética, segundo o qual um certo tipo de condição implica um certo tipo de pensamento.

É esta encenação do pensável que está em acção quando Bourdieu constrói o dispositivo de frases e fotografias, atestando o facto de classes distintas e classes trabalhadoras adoptarem, independentemente do que Kant possa dizer, os gostos que correspondem ao seu lugar. Sabemos que os questionários utilizados para este fim são concebidos especialmente para evitar os fenómenos de “alodoxia”. Por exemplo, a um público popular é oferecida a seguinte opinião: “Gosto de música clássica, por exemplo as valsas de Strauss”. A formulação da opinião foi concebida para enganar os operários que mentiriam sobre gostar de música clássica, mas que se trairiam a si próprios por não saberem que Strauss não tem direito à dignidade de um compositor clássico.

É evidente que o método sociológico pressupõe aqui o resultado que é suposto estabelecer, por outras palavras, que a ciência antes de ser um método para estudar os fenómenos da ortodoxia e da alodoxia é uma ortodoxia, uma máquina de guerra contra a alodoxia. Mas aquilo a que chama alodoxia é, de facto, o dissenso estético, a lacuna entre os braços e os olhos do carpinteiro, a ruptura sensível da relação entre um corpo e aquilo que ele é capaz de conhecer – no duplo sentido da palavra conhecer. O acerto de contas da sociologia com Kant é, antes de mais, um acerto de contas com o nosso carpinteiro. Isto porque a sociologia é, antes de ser uma disciplina ensinada ao lado de outras na universidade, uma máquina de guerra inventada na era da estética, que é também a era das revoluções democráticas, como uma resposta aos problemas dessa mesma era.

Desde logo, antes de ser a “ciência da sociedade”, a sociologia foi historicamente o projecto de uma reorganização da sociedade. Esta quis devolver um corpo a essa sociedade, que fora supostamente dilacerada pela abstracção filosófica, pelo individualismo protestante e pelo formalismo revolucionário. Quis reconstituir um tecido social em que indivíduos e grupos situados em tal e tal lugar tivessem o ethos, as formas de sentir e pensar, correspondendo simultaneamente a esse lugar e à harmonia colectiva. A sociologia actual distanciou-se certamente desta visão organicista da sociedade. Mas continua a querer, pelo bem da ciência, o que a ciência queria para bem da sociedade, nomeadamente uma regra de correspondência entre as condições sociais e as atitudes e julgamentos daqueles que a elas pertencem. A guerra científica contra a alodoxia dos julgamentos continua a guerra política contra a “anomia” dos comportamentos, a guerra contra a perturbação estética e democrática da divisão do corpo popular consigo mesmo.

Nisto ela estabelece uma relação de cumplicidade polémica com o projecto ético platónico. O que ela recusa é o que o filósofo declara, que a desigualdade seja um artifício, uma história a ser imposta. Ela pretende que esta seja uma realidade incorporada no comportamento social e ignorada nos juízos que estes comportamentos implicam. Ela quer que o que a ciência sabe seja, precisamente, o que os seus objectos ignoram.

Tomei o exemplo da sociologia. Poderia igualmente ter tomado o exemplo da história, com a mesma facilidade. Sabemos como a disciplina histórica, desde há um bom século, se declarou em revolução. Declarou que se estava a separar da velha história-crónica, que estava ligada aos factos dos grandes homens e aos documentos dos seus cronistas, secretários e embaixadores, a fim de se dedicar aos factos materiais e aos longos períodos de vida do povo abaixo desses. Ligou assim a sua cientificidade a uma certa democracia. Mas é evidente que esta democracia é também uma democracia contra uma outra. Ela opõe as realidades materiais dos longos ciclos de vida às agitações que a perturbam na superfície, tais como a distracção do olhar do operário da construção e a efémera revista revolucionária em que a descreve. A história é, segundo Marc Bloch, a ciência dos homens no tempo. Mas este “no tempo” é, de facto, uma repartição dos tempos. Ela confirma que o tempo real do operário da construção é o longo tempo de vida que se reproduz a si própria, e não o tempo suspenso da experiência estética e daquilo em direcção ao que esta o faz desviar-se: o tempo “curto”, o tempo “efémero” dos actores da cena pública. Este funciona como um princípio ético de aderência, definindo o que os ocupantes de um espaço e tempo podem sentir e podem pensar. A “nova história”, a história da vida material e das mentalidades, pertence à mesma guerra que a sociologia.

Falar de guerra não significa desqualificar as disciplinas em questão. É lembrar que uma disciplina é sempre muito mais do que um conjunto de procedimentos que permitem pensar sobre um determinado território de objectos. É, antes de mais, a própria constituição desse território e, por conseguinte, o estabelecimento de uma certa distribuição do pensável. Isto implica cortar através do tecido comum de manifestações do pensamento e da linguagem. As disciplinas estabelecem o seu território ao estabelecer um fosso entre o que as frases do carpinteiro dizem e o que estas pretendem dizer, entre o que ele nos descreve e a verdade escondida por detrás do que ele nos descreve. Devem então entrar em guerra com a sua pretensão de ter um outro saber e uma outra ignorância que não os adequados à sua condição. Ou seja, devem entrar em guerra com a guerra que ele próprio está a travar. A sociedade bem ordenada gostaria que os corpos tivessem as percepções, as sensações e os pensamentos que lhes correspondem. Mas esta aderência é constantemente perturbada. Há palavras e discursos que circulam livremente, sem dono e que desviam os corpos do seu destino, para os pôr em movimento em torno de certas palavras: povo, liberdade, igualdade, etc. Existem espectáculos que dissociam o olho da mão e transformam o trabalhador num esteta. O pensamento disciplinar deve contrariar incessantemente esta hemorragia, a fim de estabelecer relações estáveis entre os estados do corpo e os modos de percepção e significação que lhes correspondem. Deve travar uma guerra constante, mas travá-la como uma operação de pacificação.

Um pensamento in-disciplinar é, portanto, um pensamento que reencena a guerra, o “rugido da batalha” do qual Foucault fala. Para o fazer, deve praticar uma certa ignorância. Deve ignorar os limites das disciplinas a fim de devolver os discursos ao seu estatuto de armas numa disputa. Foi o que fiz, por exemplo, ao retirar as frases do operário da construção civil do seu quadro normal. Este quadro normal é o da história social, que as trata como expressões da condição operária. Eu adoptei uma abordagem diferente: estas frases não descrevem uma situação vivida. Elas reinventam a relação entre uma situação e as formas de visibilidade e as capacidades de pensar que lhe estão associadas. Dito de outra forma, esta narrativa é um mito no sentido platónico; é um mito anti-platónico, uma contra-história do destino. O mito platónico prescreve a relação de confirmação recíproca entre uma condição e um pensamento. O contra-mito do operário da construção civil quebra esse círculo.

A abordagem indisciplinar deve então criar o espaço textual e significante onde esta relação de mito a mito é visível e concebível.

Isto implica a criação de um espaço sem fronteiras, que é também um espaço de igualdade onde a história de vida do operário da construção entra em diálogo com a história filosófica da repartição das competências e dos destinos. Isto implica outra prática – uma prática indisciplinar – da filosofia e da sua relação com as humanidades. Classicamente, a filosofia é vista como uma espécie de super-disciplina que reflecte sobre os métodos das ciências humanas e sociais ou que lhes dá os seus fundamentos. Uma ordem hierárquica é assim estabelecida no universo do discurso. É claro que estas ciências podem rejeitar este estatuto, tratá-lo como uma ilusão e estabelecer-se como o verdadeiro saber da ilusão filosófica. Esta é uma outra hierarquia, uma outra forma de colocar os discursos no seu lugar. Mas podemos ainda proceder de uma terceira forma que capta o momento em que a pretensão filosófica de fundar a ordem dos discursos é invertida e se torna a declaração, na linguagem igualitária da narrativa, da arbitrariedade dessa mesma ordem.

O que constitui a especificidade do “mito” platónico é a maneira como inverte as razões dos saberes à pura arbitrariedade do conto. Enquanto o historiador e o sociólogo nos mostram como uma certa vida produz um certo pensamento que exprime uma vida, o mito do filósofo devolve esta necessidade à arbitrariedade de uma bela mentira, uma bela mentira que é, ao mesmo tempo, a realidade da vida da maioria. Esta identidade da necessidade e da contingência, da realidade e da mentira, não pode ser racionalizada sob a forma do discurso que separa a verdade da ilusão. Só pode ser narrada, ou seja, declarada na forma discursiva que suspende a distinção e a hierarquia dos discursos. O privilégio da filosofia é então – ao contrário do mérito ou da acusação de abstracção que geralmente lhe é atribuída – a franqueza literal do seu discurso: a franqueza com que foi capaz de afirmar esta condição de identidade primária das razões e das narrativas que por si só permite enunciar a repartição das vidas.

É aqui, diz Platão no Fedro, que se deve falar verdade, onde se fala da verdade. E é também aqui que ele recorre ao conto mais radical: o da Planície da Verdade, da carruagem divina e da queda que transforma uns em homens com dinheiro, outros em ginastas, artesãos ou poetas. Ou seja, tomando as coisas ao contrário, no momento em que mais implacavelmente pronuncia a repartição das condições, recorrendo àquilo que mais radicalmente o nega, o poder do conto e o da linguagem comum que suprime a hierarquia dos discursos e as hierarquias que esta suporta.

O pensamento disciplinar diz: temos o nosso território, os nossos objectos e os métodos que lhes correspondem. Isto é o que dizem a sociologia ou a história, a ciência política ou a teoria literária. Isto é também o que a filosofia costuma dizer, fazendo-se passar por uma disciplina. Mas no momento em que esta pretende fundar o seu estatuto enquanto disciplina das disciplinas, ocorre esta inversão: o fundamento dessa fundação é uma história. E a filosofia diz aos saberes, seguros dos seus métodos: os métodos são histórias que nós contamos. Isto não significa que sejam nulos e sem efeito. Significa que são armas numa guerra; que não são ferramentas para explorar um território, mas antes armas para estabelecer a sua fronteira, sempre incerta.

Pois não existe uma fronteira clara entre o território do sociólogo e o do filósofo, ou entre o do historiador e o da literatura. Nenhuma fronteira clara separa o discurso do carpinteiro, que é o objecto da ciência, do discurso da própria ciência. Traçar estas fronteiras é, em última análise, traçar a fronteira entre aqueles que têm o pensamento como um assunto próprio e os outros. Esta fronteira só é traçada sob a forma de uma história. Só a linguagem das histórias pode traçar a fronteira, forçando a aporia da ausência da razão última das razões das disciplinas.

Outrora propus como conceito uma “poética dos saberes”. Uma poética dos saberes não é uma simples forma de dizer que há sempre literatura na argumentação que quer ser rigorosa. Tal demonstração pertenceria ainda à lógica preguiçosa da desmistificação. A poética dos saberes não diz que as disciplinas são falsos saberes. Diz que são disciplinas, formas de intervir na interminável guerra entre as formas de declarar o que um organismo pode fazer, na interminável guerra entre as razões da igualdade e as razões da desigualdade. Ela não diz que estas são inválidas por contarem histórias. Mas que estas devem tomar de empréstimo da linguagem e do pensamento comum as apresentações dos seus objectos, os seus protocolos de análise e os seus argumentos. Uma poética dos saberes é antes de mais um discurso que reinscreve a força das descrições e dos argumentos na igualdade da linguagem comum e da capacidade comum de inventar objectos, histórias e argumentos. Neste sentido, podemos também chamar-lhe método da igualdade.

 

 

Jacques Rancière

Nasceu em 1940 na Argélia. Em 1965, escreveu com Louis Althusser e Étienne Balibar, o livro “Lire le Capital”. Foi Professor emérito da Universidade de paris VIII, onde leccionou estética e política. Entre as suas obras destaca-se A Noite dos Proletários (1981 - publicado pela Antígona, 2012), O Mestre Ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual (1987 – publicado em português pela Pedago, 2010), Nas Margens do Político (1990 – publicado pela Imago, 2014), Estética e Política. A Partilha do Sensível (2000 – publicado pela editora Dafne, 2010), O espectador emancipado (2008 – publicado pela Orfeu Negro, 2010).

 

Nota de edição

Este texto foi originalmente publicado no número #0 da revista Inasthetik, em junho de 2008. A tradução que aqui se apresenta foi realizada por João Paupério para o Jornal Punkto, a partir da versão francesa disponível em linha no sítio https://www.diaphanes.net/titel/penser-entre-les-disciplines-1226.

 

 

Imagem

1. Operários, Tarsila do Amaral, 1933.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 13.12.2021

Edição #33 • Outono 2021 •