Violências de Estado / Defesa autónoma • Françoise Vergès


 

A construção de um mundo pacífico não implica, de modo algum, passividade. A resposta das feministas mexicanas à violência do Estado, no dia 8 de Março de 2020 [1] – atirando cocktails Molotov à residência do presidente e afrontando a polícia –, a manifestação feminista de dia 7 de Março de 2020, em Paris, ao som dos gritos “La fête est finie, les féministes sont de sortie” [“A festa acabou, as feministas saem à rua”], “On se lève, on se soulève” [“Nós levantamo-nos, nós insurgimo-nos”] [2], a raiva legítima dos bairros das classes trabalhadoras em França como resposta à violência policial, em Abril de 2020, a organização de manifestações no Chile, de Novembro de 2019 a Março de 2020, com os membros do [colectivo] Primera Línea protegendo os manifestantes dos ataques da polícia, sob as palavras de ordem “Nunca más sin nosotras” [“Nunca mais sem nós, mulheres”], as tácticas das grandes manifestações na Argélia, no Líbano, em França, tudo isto indica uma compreensão profunda que a não-violência institucionalizada e a política da respeitabilidade não nos protegem.

1. “‘This is our everyday Mexico’: Brutal murders of women and girl fuel mass protests”, CBC, 21 de Fevereiro de 2020; “International Women’s Day: Clashes mar México City march”, BBC, 9 de Março de 2020.

2. “Que sait-on de l’intervention policière lors de la manifestation féministe nocturne à Paris?, Libération, 8 de Março de 2020.

Não é que a brutalidade institucional tenha surgido subitamente nos últimos meses, mas é cada vez mais claro que o Estado não procura proteger as cidadãs e os cidadãos. Sem o colectivo Primera Línea, a violência do Estado chileno teria sido ainda mais assassina, declara a militante Ale Bórquez Bravo: “Sem elas, não teríamos feito progressos no passado e não teríamos sido capazes de mobilizar tantas pessoas” [3]. Combater a violência contra as mulheres significa combater a violência consubstancial do Estado e do capitalismo, que mantém a impunidade da violência contra as mulheres e as pessoas racializadas. O confinamento tornou visível, como se fosse necessário, que a casa não é um refúgio – em todos os países tem havido um aumento de chamadas a denunciar violências (em França, aumentaram 30%, em Inglaterra sete mulheres foram assassinadas por alguém próximo, entre fim de Março e meados de Abril). Mas se estas violências podem ter lugar em qualquer casa, burguesa ou pobre, as habitações das classes trabalhadoras, mal construídas, exíguas e deixadas ao abandono pelo poder, aumentam-nas.

3. Syrine Attia, “Front-line activists ‘Primera Línea’ protect Chile’s protesters, but some criticize their methods”, France 24, 1 de Março de 2020.

Nesta época de violência sistemática e globalizada, o feminismo de Estado, civilizador, desempenha o papel de uma ideologia pacificadora, que visa quebrar o ímpeto da raiva das mulheres. Tal como compreendemos a importância do "salário da branquitude” [4], compreendemos agora a importância do "salário do feminismo” branco, burguês, civilizador e estatal, que assegura privilégios assim como a ilusão de que se importa, de ter conseguido aceder a um pequeno lugar entre os poderosos, quando estes últimos só o concedem na condição de não colocar a sua existência em jogo. Este salário contribui para a estruturação da dominação racial e económica. Este feminismo, que apresenta o Estado como sinónimo de segurança e protecção, encoraja a exigência de mais leis penais e, portanto, inevitavelmente de mais polícia e mais prisões, uma vez que o conceito de justiça deste Estado patriarcal e capitalista se baseia na punição.

O seu feminismo é bem-sucedido a mascarar a sua participação nos dispositivos de dominação, mas “se nos recusarmos a pensar os modos especificamente femininos de assimilação [e de tomada] do poder, seremos incapazes de compreender como é que as forças conservadoras são capazes de tomar em proveito próprio as reivindicações identitárias” [5].

As feministas civilizadoras desempenham o papel eficaz de administradoras neocoloniais. Os poderosos, imunizados contra os apelos à consciência, largam por vezes o lastro, mas esse recuo nunca é causado por políticas de respeitabilidade. Ou têm medo, ou o progresso não lhes custa nada, ou fazem-no de modo que nenhuma instituição garanta que as leis votadas sejam aplicadas, ou então a ideologia sexista e racista do capitalismo será mais forte que as leis votadas [6]. Só a luta faz recuar o poder.

4. David Roediger, Le salaire du blanc, Syllepse, Paris, 2018. O ‘salário da branquitude’ é, ao mesmo tempo, um sistema de privilégios mantido pelas classes dominantes e uma ilusão da qual se apropriam os Brancos pobres, que continua a estruturar a dominação racial e económica nos Estados Unidos, diz o resumo da obra. Para França, cf. Rafik Chekkat e Emmanuel Delgado Hoch, Race rebelle, Syllepse, Paris, 2011; Félix Boggio Éwanjé-Épée e Stella Magliani-Belkacem (dir.), Race et Capitalisme, Syllepse, Paris, 2012.

5. Coco Fusco, Petit manuel de torture à l’usage des femmes soldats, Les Prairies Ordinaires, Paris, 2008, p. 95.

6. Dois exemplos: Johanna Brenner e Maria Ramas demonstraram que as leis europeias que protegem as mulheres no mundo laboral não atenuaram a divisão sexual do trabalho, ver “Repenser l’oppression des femmes”, Hicham Houdaifa em Dos de femme, dos de mulet. Les oubliées du Maroc profond (En toutes lettres, Casablanca, 2015), e Chadia Arab em Dames de fraises, doigts de fée. Les invisibles de la migration saisonnière marocaine em Espagne (En toutes lettres, Casablanca, 2018), põem em evidência os emaranhados de opressão que não são atenuados pelas leis progressistas dos direitos das mulheres.

Poderíamos, por conseguinte, rever a narrativa da epopeia de manifestações dos movimentos feministas europeus nos anos 1960-1970. Sem retirar às mulheres que participaram a sua determinação, não se trataria de negligenciar o contributo dos grupos feministas radicais ou o contributo, fundamental, das feministas racializadas do Norte e daquelas do Sul Global, que com as suas lutas por uma libertação total inquietaram os poderosos e a supremacia branca. Estas feministas, que sempre distinguiram a violência da opressão da violência da libertação, e que sempre souberam distinguir a violência do patriarcado suprematista branco do machismo no seio das suas comunidades, sabem que atacar o Estado que espalhou pesticida, envenenando a terra, os animais e os humanos, o Estado que militariza o espaço público, encarregando milícias privadas de fazer reinar a sua ordem, é atacar também as violências contra as mulheres. Atacar estas violências, é atacar o exército e a sua política de violação, é atacar as revistas, as instituições culturais, as universidades e as escolas que continuam a fazer circular imagens e representações racistas e sexistas. É aliar-se aos homens, não-binários, queer, trans, que combatem o virilismo e o racismo. É aliar-se às feministas que se comprometem inteiramente num trabalho de descolonização e de desracialização das suas teorias e das suas práticas.

Em França, apoiados pelas suas famílias, pelas suas comunidades e por associações frequentemente dirigidas por mulheres (Urgence notre police assassine, Comité Adama), são os homens jovens dos bairros populares que, confrontando corajosamente a polícia militarizada, provocam medo ao Estado e demonstram que a sua violência e brutalidade são estruturais. São as mulheres negras, racializadas, que fazem greve, criam colectivos, manifestam-se, combatem corpo a corpo o racismo e o capitalismo, que metem medo ao feminismo estatal e universalista. A questão não é ser pro-violência ou pro-não-violência, mas recusar a condenação burguesa da violência das oprimidas e oprimidos, favorecendo uma multiplicidade de tácticas e, portanto, a flexibilidade e a autonomia das lutas [7].

7. Sobre o debate violência/não violência, cf. Starhawk, Parcours d’une altermondialiste: de Seattle aux Twin Towers, Les Empêcheurs de penser em rond, Paris, 2003; Peter Gelderloos, Comment la non-violence protège l’État. Essai sur l’inneficacité des mouvements sociaux, Éditions Libre, Montréal, 2018.

Se há lições a retirar das violências sistémicas que precederam as políticas de confinamento decretadas no início de 2020, assim como do agravamento mundial das desigualdades e das injustiças raciais, de género, de sexo, etárias e de classe, é que vivemos numa época em que é impossível escapar à escalada de violência incontrolável produzida pela ganância, a cobiça e o poder, a não ser organizando-se com aquelas e aqueles que nada têm a perder.

 

 

Françoise Vergès

Françoise Vergès é académica independente, professora e activista feminista decolonial. Entre mais de uma dezena de títulos, publicou recentemente “Un féminisme décolonial (2019) e Une théorie féministe de la violence. Pour une politique de la protection” (2020), ambos nas Éditions La Fabrique.

 

Imagem

1. Manifestação organizada pelos Comité Verité e Justice pour Adama, Paris, 2 de Junho de 2020, ©Stéphane Lagoutte [M.Y.O.P] para o jornal Libération.

 

Nota de edição

Este texto de Françoise Vergès é um trecho extraído do seu mais recente ensaio “Une théorie féministe de la violence. Pour une politique de la protection” publicado sob a forma de livro nas Éditions La Fabrique, em Novembro de 2020. A tradução para português foi realizada por Maria Rebelo e João Paupério para o Jornal Punkto.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 09.03.2021

Edição #30 • Inverno 2021 •