“É correcto culpar aquele que desenha pela realidade política em que trabalha?”, perguntava-se Sean Griffiths há pouco tempo, num artigo onde falava sobre o recente debate nas redes sociais em torno do trabalho sem qualquer remuneração por parte de muitos estudantes e jovens arquitectos em escritórios reconhecidos. “Alguns acreditam que as condições sociais sob as quais se cria uma obra de arquitectura estão intrinsecamente incrustadas na sua realidade material e, portanto, são parte do seu significado”. Para Griffiths não, pois entre outras coisas concluía que “não só a ética e a estética são campos autónomos, como a segunda não pode ser circunscrita pela primeira”. Obviamente, a visão de Griffiths, para além de anacrónica, supondo que o trabalho do arquitecto ou do designer passa apenas por encarregar-se da parte “estética” de um edifício ou de um objecto, não é mais do que um álibi para assegurar a suposta independência daquele que desenha relativamente às condições políticas que tornam possíveis as suas acções, uma independência utilizada sempre para conveniência do designer ou do arquitecto que a proclama. Três livros recentes argumentam precisamente o contrário.
Em Politics of the everyday, Ezio Manzini, professor de desenho no Politécnico de Milão e na Universidades de Artes de Londres, expõe a relação entre a inovação social e as comunidades em que se gera e as quais afecta, para o bem ou para o mal, a dita inovação. Este define a “inovação social” como uma “mudança no sistema técnico-social cuja natureza e resultado também têm um valor social, com a dupla conotação de ser uma solução para problemas sociais e uma (re)generação de bens comuns, físicos e sociais.” Manzini, por outro lado, define o desenhador como “qualquer sujeito, seja individual ou colectivo, no momento em que conscientemente intervém no mundo, o que significa que está consciente das suas próprias intenções e do campo de possibilidades disponível para estas.” O desenho é parte de uma conversação colectiva que procura gerar mudanças tanto na conversa como na colectividade, passando do “modo convencional” –o das tradições– ao modo do desenho, que é o modo da inovação. “Desenhar implica sempre a eleição de valores.” E, ainda que o desenhador não seja “culpado” da realidade política em que trabalha –como questiona Griffiths–, é sim responsável pelo que faz com essa mesma realidade: “o desenhador nunca é externo ao sistema no qual actua ou, resumindo, o desenho desenha o seu desenhador.”
Friedrich von Borries é arquitecto e professor de teoria do desenho e prática curatorial na Escola de Artes Visuais de Hamburgo. O seu livro, recém traduzido para espanhol, Proyectar mundos, una teoria política del diseño expõe a diferença entre o que qualifica como um desenho que projecta (entwerfend, em alemão) e outro que submete (unterwerfend). O que talvez também possamos entender como um desenho que nos libera, enquanto sujeitos, e outro que nos sujeita. “O desenho cria liberdade, possibilita acções que anteriormente não eram possíveis –diz von Borries– e, no entanto, ao criar novas condições limita também o espaço de possibilidades.” Dito de outro modo, as condições que cria o desenho para nos libertarmos, projectando, podem acabar condicionando-nos de novo, isto é, submetendo-nos e subtraindo liberdade às nossas acções. “Essa dicotomia inerente ao desenho –acrescenta– não é apenas uma liberdade criadora, mas política.” Assim sendo, a diferença entre um bom e um mau desenho não é meramente funcional ou estética –entendida a estética num sentido muito limitado– mas antes a diferença entre um desenho que projecta e que emancipa ou liberta, o bom, e outro que submete e restringe as possibilidades de acção, o mau. Para além disso “qualquer desenhador pode decidir se é activo, enquanto projectista, ou submisso”, isto é, sobre que tipo de desenho realiza e para quem o realiza. Para von Borries, resumindo, “todo o desenhador é responsável pelo que cria”.
Mike Monteiro é director de design no [estúdio] Mule Design e o seu mais recente livro intitula-se Ruined by design, how designers destroyed the world, and what we can do to fix it. Entre outras coisas, Monteiro trabalha no desenho de interfaces e da experiência do utilizador em rede e, portanto, sabe como esse tipo de desenho, aparentemente o mais imaterial da família, afecta as nossas decisões, determina o nosso comportamento e, quiçá o pior de tudo, expõe as nossas crenças e maneiras de pensar a quem pagar mais por isso, sem o nosso consentimento explícito –ainda que todos tenhamos clickado “aceito” sem nos colocarmos demasiadas perguntas. “Desenhar é um acto político”, diz também Monteiro, “o que decidimos não desenhar e, mais importante, quem decidimos excluir do processo de desenho, também são actos políticos”. E isso sabe-o qualquer arquitecto ou designer, incluindo aqueles que afirmam não ter nenhuma posição política. “Saber isto e ignorá-lo –diz Monteiro– é, também, um acto político, ainda que seja um que demonstra cobardia”. Numa época em que o desenho de um simples algoritmo redefine a nossa noção de privacidade e segundo parece pode, entre outras coisas, afectar o resultado de uma corrida eleitoral, Monteiro, coincidindo com von Borries, declara que “o desenhador é responsável pelo trabalho que põe no mundo.”
Assim sendo, será correcto culpar o desenhador pela realidade política em que trabalha? A palavra incorrecta aqui é culpar, ao sugerir uma relação causal e unívoca entre o desenhador e a sua realidade política e, consequentemente, exonerar o designer ou o arquitecto de qualquer responsabilidade. Mas os três livros aqui comentados –entre tantos outros– argumentam que o problema está em reduzir o desenho à mera dimensão estética dos objectos –já de si entendida, como dissemos antes, de uma maneira muito limitada– e assim construir um álibi para negar qualquer responsabilidade política do designer e do arquitecto. Não assumindo, finalmente, que se defendemos a capacidade do desenho para transformar o mundo, há que assumir com ela que todo o desenho é política.
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Alejandro Hernández Gálvez
Alejandro Hernández Gálvez é arquitecto e director editorial da revista Arquine. Tendo publicado internacionalmente em diversas revistas e jornais, é co-autor do livro 100x100 Arquitectos del siglo XX en México e autor de Sombrillas, sombreros, sobras (de los princípios de la arquitectura).
Imagem
1. Museu de Arte de São Paulo, Lina Bo Bardi, 1968.
Nota de edição
O texto de Alejandro Hernández Gálvez foi originalmente publicado na plataforma em linha da revista Arquine, a 6 de Maio de 2019, tendo a versão aqui apresentada sido traduzida por João Paupério para o Jornal Punkto. A publicação original foi ilustrada com uma imagem da Tetrakaidecahedral (1973-75) de Victor J. Papanek.
Ficha Técnica
Data de publicação: 03.03.2021
Edição #30 • Inverno 2021 •