João Pedro Cachopo publicou um livro sobre os tempos que vivemos e que passámos a viver desde Março de 2020. Isto é, é um livro que resulta da pandemia, mas não é exactamente sobre a pandemia. Diferencia-se dos vários textos de filósofos e pensadores contemporâneos que foram publicados entre Março e Junho/Julho, e também dos livros que mais recentemente têm saído, na medida em que procura observar de um ângulo diferente o efeito da pandemia na nossa experiência do mundo. Tira partido da distância temporal face a esses primeiros textos, que foram necessariamente escritos a quente, com as fragilidades que advêm de pensar um acontecimento durante o acontecimento. É um facto que ele ainda dura, mas o seu prolongamento no tempo não deixou de tornar algumas perspectivas iniciais longínquas e não mais válidas, por isso pensá-lo hoje será necessariamente diferente de o ter pensado em Março ou Abril.
Este é um livro pequeno, escrito com enorme clareza, que se lê com prazer. Mas a dimensão e a clareza enganam: as questões são abordadas com complexidade, o diálogo com autores contemporâneos e não contemporâneos é pertinente e elaborado e a sua leitura suscita várias perguntas e reflexões. Também o título é enganador. Como é explicado logo no prólogo, nem os sentidos torcidos são os cinco sentidos sensoriais, nem a remediação digital é remédio, isto é, não serve para colmatar uma falta, não é um mal menor ou um fraco consolo, e não é, seguramente, cura ou compensação face à pandemia.
Os «sentidos» aqui em causa são sentidos que dependem, diz João Pedro Cachopo (JPC), da proximidade e da distância, não físicas, mas imaginadas; são de certa forma, sentidos da vida, ou, como escreve mais adiante no livro, «sentidos que nos ligam ao mundo» (p. 40). A «remediação digital» assenta na designação dos estudos de media, a qual lê o prefixo re- no sentido de replicar, repetir: re-mediação, re-medium. Será, assim, a apresentação de um medium por via de outro medium, a mediação da mediação ou dupla mediação. No caso da remediação digital, é mais ainda: é a confluência de vários media num medium, o digital.
Por outro lado, o significado de «remediar», no sentido de «substituir» ou «reparar» ou «consolar», não é inteiramente abandonado, uma vez que permite a JPC precisar que uma posição de repúdio do digital e uma posição de exaltação do digital, aparentemente antagónicas, partem do mesmo princípio que o digital serve para substituir uma experiência original, ela sim, autêntica.
Assim compreendemos de outra forma quando afirma provocadoramente que o acontecimento não é a pandemia, mas a torção dos sentidos que nos ligam ao mundo, uma torção feita por via da remediação digital. Estes sentidos (que não deixam de implicar os cinco sentidos sensoriais) são, neste livro, também cinco (o autor ressalva que poderiam ser outros, ou muitos mais): o amor, a viagem, o estudo, a comunidade a arte. Todos eles nos implicam em formas de aproximação e distanciamento que se configuram numa experiência diferente para cada um de nós. E essa experiência não deixou de acontecer por causa da pandemia.
Nas páginas dedicadas a esses sentidos, no capítulo que tem precisamente o título «A torção dos sentidos», JPC tem um momento de libertação da escrita e de verdadeiro prazer do texto, seu, que o escreveu, e nosso, que o lemos. São páginas escritas com, arrisco a palavra, a alegria de reimaginar esses sentidos em novas experiências remediadas digitalmente. Creio que apenas no sentido da viagem Cachopo tem dificuldade em deixar de ir, deixar de partir fisicamente (p. 75). Se Xavier de Maistre relatou logo em 1794 como era possível viajar sem sair do lugar, fazendo a viagem à volta do seu quarto sem deixar de experienciar aventuras por via da imaginação, para JPC não basta o quarto, nem o écran, a viagem implica sair de si. É irremediável, diz, continuando o jogo entre os possíveis significados da palavra, o da não sujeição à mediação e o do não haver nada a fazer ou não haver remédio, porque não viajar deixa-nos inconsoláveis.
Destaco as páginas que JPC dedica ao sentido do estudo (p. 79), por nelas abordar o texto de Giorgio Agamben que me pareceu mais discutível dos que escreveu sobre a pandemia (vários traduzidos e publicados na Punkto), no qual o filósofo italiano vaticinou o fim do «estudantado como forma de vida» e não teve pejo em comparar os professores que aceitavam dar aulas online com os colaboracionistas do fascismo nos anos 1930, profetizando ainda que os poucos que se recusassem seriam reconhecidos como os heróis deste tempo (não se confunda este com outro texto do autor bem diferente, «Estudantes» de 2017, em que defendia o estudo na sua condição de não utilidade e consequente possibilidade de experiência e erro, em oposição à investigação, orientada pela lei do mercado e produtividade). Como analisa JPC, é um juízo moral que identifica a tecnologia como mal absoluto (que curiosamente faz equivaler a barbárie) que leva Agamben a fazer uma equivalência inaceitável. Acrescento que isso coloca o filósofo numa posição muito discutível de juiz e vigilante moral. Como contraponto, JPC fala do trabalho de Fred Moten e Stefano Harney, que, sem deixarem de criticar o sistema de ensino universitário e seus mecanismos de «profissionalização do pensamento», ressalvam a subversão e a divergência que o estudo na universidade (uma noção alargada de estudo que inclui o intelectual e o não intelectual e que igualiza radicalmente os temas a estudar) pode trazer. Estes autores não dramatizaram o ensino à distância: estão tão cientes dos seus perigos como do abalo na autoridade que pode representar e dispostos a fruir desse abalo. Este exemplo que JPC dá no seu livro a propósito do estudo é, nada mais nada menos, do que a sua própria abordagem da remediação digital e seus efeitos precipitados pela pandemia.
Tal como noutros autores que pensaram a pandemia, seja quais tenham sido os termos em que a abordaram, as transformações que ela precipitou (ou que ameaçou precipitar, porque muitas verificamos que não ocorreram e talvez não venham a ocorrer) já estavam e continuam em curso. A remediação digital é, sem dúvida, uma delas, e foi de resto alvo de abundantes reflexões antes da pandemia. É a torção dos sentidos que, essa sim, diz o autor, é precipitada pela pandemia — é esse, afinal, o acontecimento.
Ao contrário de vários autores pré- e pós-pandemia, JPC evita ou recusa mesmo a atitude fatalista face ao digital (sem tão-pouco embarcar na euforia pelo digital), considerando ao mesmo tempo os seus perigos e efeitos nefastos, como o controlo e a extracção de informação a que estamos sujeitos ao frequentar redes sociais, pesquisar na internet, fazer compras online.
Ou seja, e esta é a tomada de posição fundamental deste livro: não só, como escreve o autor, estamos sujeitos ao acontecimento, como somos sujeitos do acontecimento. JPC recusa fazer o mero diagnóstico de que somos dominados, controlados, esvaziados, explorados pelo digital. Afirma antes a possibilidade de agenciamento dos sujeitos por via da imaginação no contexto digital. A tarefa a que se propõe este livro é a tarefa que entende ser a da filosofia: pensar o presente intempestivamente (ou nietzschianamente), ou «revolver o real», assentando na convicção de que interpretação e transformação do mundo estão interligados.
Respondendo à pergunta «o que pode a filosofia?», JPC diz que esta se distancia e faz perguntas que procuram o melhor ângulo. Dificilmente se terá notado o encontro do melhor ângulo ou mesmo a vontade de fazer perguntas de alguns dos filósofos que JPC refere, como Giorgio Agamben, Slavoj Žižek, Byung Chul-Han. Muitas vezes vimos os filósofos precipitarem-se nas respostas e a desempenhar um papel de oráculos ou videntes, mais do que seria desejável. Porém, o mundo e os filósofos movem-se e supõe-se que os ângulos se vão alterando e ajustando, e a distância para os tomar se vai conquistando. Naqueles primeiros meses era difícil e arriscado tomar posição e os erros eram mais prováveis. Mesmo hoje o são, e o mérito da pergunta de JPC, «o que pode a filosofia?», é o de reservar-lhe um lugar tão modesto quanto imprescindível, e de cercear a tentação oracular.
A partir do seu ângulo, que procura resposta para a pergunta «o que há de revelador e transformador na pandemia?», JPC trava um diálogo com pensadores que marcaram os primeiros meses da propagação da doença pelo mundo e foram amplamente partilhados nas redes sociais e outros canais digitais, como Alain Badiou, Bruno Latour, Judith Butler, David Harvey, além de Byung Chul Han, Žižek, Agamben, Jean-Luc Nancy — vários antologiados no conjunto que ficou conhecido por Sopa de Wuhan, outros que surgiram no blog da Critical Inquiry, reunidos com o título «Posts from the pandemic», vários traduzidos e publicados em português em plataformas digitais. Neste livro surgem também Naomi Klein, Jacques Rancière, Roberto Esposito, José Gil ou André Barata. Essa conversa com pensadores da actualidade que JPC enceta tem o propósito de esboçar um diagnóstico do pensamento que se formou sobre o meio digital na era da pandemia para ele próprio propor outro ângulo de análise. É um diálogo por vezes assumidamente breve ou que, com alguns dos nomes, vai ressurgindo ao longo do livro. Não me debruçarei sobre esse diálogo em si, mas sim sobre o caminho a que ele leva.
Há três momentos do livro em que JPC «actualiza» ou faz analogias entre estudos famosos já clássicos e o momento de remediação digital actual. Falarei desses momentos sem seguir a ordem pela qual aparecem no livro.
Apocalípticos remediados
O primeiro é no capítulo 4, «Apocalípticos e remediados» glosa do título de Umberto Eco de 1964 Apocalípticos e Integrados, que já na altura designava desta forma, e simplificando, os pessimistas face à tecnologia e os optimistas em relação à evolução tecnológica. JPC acompanha Eco na conclusão de que todos teremos um pouco de uns e de outros, tanto em 1964, como hoje face à digitalização do mundo. Constata, no entanto, que hoje tanto os apocalípticos como os remediados partem do mesmo pressuposto de que o digital é um substituto de uma experiência autêntica, é um simulacro de uma experiência original. Ora, para JPC, o digital traz outro tipo de experiência tão ou tão pouco autêntica quanto qualquer experiência analógica. Porque a experiência depende sempre, digital ou analógica, da imaginação. Refira-se desde já que esta é, a meu ver, a palavra-chave deste livro, a palavra que o torna não um livro optimista, isso seria outra coisa, mas um livro que quer olhar as possibilidades da alegria na era digital, na era pandémica, na era de emergência dos fascismos e do colapso ambiental, e que faz essa alegria depender da imaginação.
Terei, porém, duas ressalvas a fazer, para já, de carácter preventivo. A primeira diz respeito ao «apocalipse» apregoado pelos «apocalípticos». O «apocalipse» de hoje não é a miragem longínqua e mais ou menos fantasiosa de 1964, ano em que Umberto Eco publicou o livro com o famoso título recuperado por JPC. Há hoje no horizonte não muito distante a possibilidade efectiva de esgotamento do planeta, de extinção de grande número de espécies, de catástrofes ambientais e, em última análise, de extinção da espécie humana. Por outro lado, o «apocalipse» muitas vezes apregoado é frequentemente sinónimo de «colapso da civilização» e diz respeito a medos ou visões maioritariamente ocidentais (ou do Atlântico Norte, para ser mais precisa). No livro Colapso, publicado em 2019 pela Letra Livre e pelo jornal Mapa, Carlos Taibo diz que há uma visão etnocêntrica na noção de colapso, de quem vive num certo conforto, pois uma grande parte da humanidade não conhece outro estado senão aquele que atormenta as visões apocalípticas da classe média do Atlântico Norte. Diria, assim, que é preciso ver a escala do que é apocalíptico para os apocalíticos de Umberto Eco ou para os que diabolizam o digital hoje.
O que se torna importante no livro de JPC é a separação entre a crítica do digital e um juízo moral ou uma ideia de que a «essência» do humano (seja lá o que isso for) se está a perder e é preciso salvar. A crítica ao digital extravasa amiúde nesse juízo moral, e esse juízo traz consigo a discutível crença de que há um ser humano primordial que é autêntico e vive experiências autênticas, ou de que houve um momento no passado mais verdadeiro e melhor que é preciso recuperar.
A obra de arte na época da sua remediação digital
Outro momento de actualização de um texto famoso é quando, no capítulo 3, se faz a analogia entre a remediação digital e a reprodutibilidade técnica, abordando o famoso texto de Walter Benjamin «A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica» (reporto-me à terceira versão de 1937/8, traduzida em português por João Barrento, in A Modernidade, Assírio e Alvim, 2006). Da mesma forma que a reprodutibilidade técnica implicou uma alteração da experiência no final do século XIX e início do século XX, também a remediação digital suscita uma reflexão sobre a alteração da experiência no século XXI. JPC vê na remediação digital uma etapa na inegável relação com a tecnologia que é constituinte da humanidade, premissa também de Bernard Stiegler, que refere, e que invalida qualquer ideia de autenticidade primordial, ou qualquer noção de experiência cuja autenticidade se possa medir pelo grau de afastamento à tecnologia, ou, acrescento, visto de outro modo, pelo grau de aproximação à natureza. JPC não envereda pelo caminho que aqui se abre de pensar o que é essa natureza, e de crítica a uma qualquer concepção de natureza separada da intervenção do homem, ou de natureza como esfera distinta tout-court. Essa crítica da separação cultura/natureza é premente e tem sido feita, e talvez possa ter lugar na continuidade da reflexão que A torção dos sentidos faz.
O paralelismo com a reprodutibilidade técnica está no diagnóstico que Walter Benjamin faz de que a aproximação do que está distante, possibilitada pela reprodução técnica, provocou uma horizontalidade da experiência que estilhaçou hierarquias entre popular e erudito, efémero e permanente, isto é, provocou o declínio do que se percepcionava ou imaginava inalcançável, intocável, por mais próximo que estivesse: a aura. Recupero a definição de aura mais famosa de Benjamin: «o aparecimento único de algo distante, por muito perto que esteja».
O preço da aproximação seria o «declínio da aura», o fim da experiência do aqui e agora, do único e irrepetível, colapsando ideias de autenticidade, originalidade, etc. O que se passa com a remediação digital é semelhante, diz JPC. A perda da aura vem com um ganho: «o acréscimo da familiaridade com a obra de arte e o alargamento dos seus possíveis usos». E aqui podemos acrescentar os outros «sentidos» abordados neste livro, além da arte: o estudo, o amor, a viagem a comunidade. Para todos estes cinco «sentidos», a remediação digital, defende o autor, pode trazer «um acréscimo de familiaridade e um alargamento dos seus possíveis usos». A remediação digital «faz crescer o sentido do semelhante do mundo». Todas estas expressões entre aspas são de Walter Benjamin falando da reprodução técnica, e JPC recupera-as para pensar a remediação digital, acrescentando que «semelhante» e «igualdade» têm a mesma raiz em alemão, o que abre a possibilidade para pensar a remediação digital como mecanismo igualitário. Mais ainda, e esta reflexão parece-me particularmente sagaz: «Além de envolver uma promessa de aproximação do distante, a remediação contém também uma equalização das distâncias» (p. 48). Ou seja, tudo fica igualmente distante e próximo. Não estou de acordo, no entanto, que seja possível inferir daí um mecanismo igualitário. No entender de JPC, a remediação digital aproxima e coloca tudo à mesma distância — será nisso que JPC vê crescer o «sentido do semelhante» e consequentemente daí infere o crescimento do «sentido da igualdade». Contudo, não creio que a remediação digital ponha tudo à mesma distância, mas sim que ela opera sistematicamente a aproximação e o distanciamento de tudo, e se há possibilidade de acessos mais igualitários a informação, formação, etc., há também uma dimensão ilusória de igualdade e de proximidade que mascara desigualdades que persistem ou são reforçadas.
Há ainda, no entanto, outra dimensão do famoso texto de Walter Benjamin que JPC não menciona e que seria pertinente chamar à reflexão que o livro se propõe. Walter Benjamin analisa não só o declínio da aura com a reprodutibilidade técnica, mas também a forma como a reprodutibilidade técnica repõe a aura por outros meios. Para usar termos benjaminianos, a aura pode ficar obsolescente com a reprodução técnica, mas ela é redimida pela própria reprodução técnica, e reposta por exemplo nas figuras da «estrela de cinema» ou do «ditador» (citando W.B.). Ela poderá ter efeitos tanto mais perversos quanto a reprodução técnica a pode repor para fins de estetização da política e propagá-la de forma global, jogando na ambivalência da proximidade e da distância, não elididas, mas instrumentalizadas para provocar desejos, reverências, identificação ou actos compulsivos. A reprodução técnica repõe a aura como instrumento de manipulação e propaganda. A ressonância destes usos da reprodução técnica na remediação digital é bastante evidente.
A referência a este aspecto do texto de Walter Benjamin é tanto mais pertinente quando verificamos a distinção entre aura e vestígio que o mesmo autor faz no Livro das Passagens e que JPC convoca: aura enquanto distância que nos controla, vestígio enquanto proximidade que controlamos. JPC faz através destes dois termos a advertência que não fez com o texto anterior de Walter Benjamin: na remediação digital há que «seguir vestígios sem sucumbir à aura», ou controlar sem ser controlado. Será mesmo possível? Não, até pelos vestígios que se deixam ao movermo-nos no digital, como JPC salvaguarda. Mas JPC sublinha que há mais para lá da manipulação na remediação digital, há precisamente a resistência à manipulação. Para lá do diagnóstico do controlo e vigilância digital há a considerar a possibilidade de «fuga», de evitar a captura, em suma, a possibilidade de emancipação no meio digital. Nada indica que, escreve o autor, «a tecnologia provoca o embotamento dos sentidos» (p. 63), como tantos apregoam. De acordo, mas e da atenção? No livro de 2014 de Jonathan Crary 24/7 - Late Capitalism and the ends of sleep (entretanto traduzido pela editora Antígona) diagnosticava-se como a atenção é captada sobretudo pelos meios digitais para fazer do ser humano um consumidor em todos os momentos, incluindo, cada vez mais, o único em que parecia haver protecção, o do sono. Teremos talvez de considerar, a par do reconhecimento de que os nossos sentidos seguem intactos, que a fuga potencialmente emancipatória é uma tarefa constante e a distracção a que estamos sistematicamente tentados encaminha muito mais para o negócio do que para o ócio.
Voltemos a uma das ideias centrais neste livro: não há, nunca houve uma experiência original, autêntica. Ou, se se quiser inverter, todas são autênticas ou falsas, porque é no sujeito e seus sentidos que está a capacidade de experiência. E essa capacidade reside na imaginação.
Lembro um outro texto de Walter Benjamin conhecido, «Experiência e Pobreza» (traduzido em português por «Experiência e Indigência» por João Barrento, in O Anjo da História, Assírio & Alvim, 2008), no qual o autor alemão falava de como os soldados sobreviventes da Primeira Guerra Mundial tinham perdido a capacidade de contar a sua experiência traumática, não a conseguiam transmitir, e como isso empobrecia a sua experiência mas também a dos que a poderiam escutar, porque a experiência faz-se não só de quem a viveu mas da empatia que outrem pode ter ao ouvir o relato de outra vida. Se se fizer o exercício inverso de ler Walter Benjamin depois de passar pelo livro de JPC, poder-se-ia pensar que a experiência empobrecida acontece quando já não conseguimos imaginar o mundo. E o que este livro deixa é a convicção de ainda o conseguimos fazer.
Comunidades remediadas
Chegamos ao terceiro texto famoso que JPC apropria e actualiza, o livro de Benedict Anderson, Comunidades Imaginadas de 1984, transfiguradas em comunidades remediadas. Esta operação faz-se quando JPC fala do sentido de comunidade (p. 84). Sem o mencionar, esta parte do livro parece responder directamente ao livro apocalítico de Donatella di Cesare, Vírus Soberano?, publicado em português pelas Edições 70. Curiosamente ambos citam Massa e Poder de Elias Canetti, quase as mesmas passagens, para reflexões opostas. Donatella di Cesare fá-lo para declarar a impossibilidade de uma comunidade política engendrada a partir do «reticular» e da massa separada do corpo que só existe numa «virtualidade asséptica e estéril», e que é supervisionada, controlada, programada. Se Canetti via na massa a supressão das distâncias e do medo de contacto, o lugar da igualdade entre os homens, o momento em que não há orientação ou liderança e por isso mesmo a massa fica tão sujeita à manipulação quanto a resistir a ela, Donatella di Cesare declara que uma massa digital é feita de «privados sensoriais» e apenas está sujeita a ser controlada, sem qualquer capacidade de resistência. A massa digital para JPC (que convoca o termo «enxame» de Byung-Chul Han para a ela se referir enquanto entidade em que já não há diluição do indivíduo, não há alívio de desaparecer na massa, porque o rastro digital nunca apaga os indivíduos) é tão capaz de formar comunidades como a massa concreta, na medida em que toda a comunidade é imaginada, como referiu Benedict Anderson. É imaginado «qualquer ‘nós’ que se constitua como sujeito de mudança» (p. 89). E qualquer comunidade imaginada hoje é remediada – no sentido em que a sua acção e capacidade de intervenção se traduz em imagem e é propagada, ampliada, desencadeada, reverberada pelo digital. Exemplo maior, refere o autor, terá sido o movimento Black Lives Matter em plena pandemia. A rua foi palco da revolta, mas o palco da revolta foi também digital e ambos se alimentaram um ao outro. Escreve JPC: a massa, a rua «convocam imediatamente o seu avatar» e «a manifestação que a massa inicia é um nado-morto se o enxame não a prolongar» (p. 90).
As boas ideias, conclui, podem ser virais. Permanece, no entanto, o perigo de tudo no digital se poder equivaler, as boas ideias e as más, o relevante e o supérfluo, e capacidade de distinção de uns e outros ser acessível apenas a quem tem mais ferramentas intelectuais, culturais e, por isso, sabemos, económicas, como, de resto, sempre aconteceu.
Emancipação
Um último ponto no livro levanta-me várias dúvidas. No epílogo, JPC coloca no digital a possibilidade de um pensamento e de uma consciência política global (Black Lives Matter é um exemplo; o outro é a urgência ambiental). É na experiência, hoje remediada, que se pode fazer o salto do local ou nacional para o global, diz o autor. A imaginação só será imaginativa se não se enclausurar na finitude de fronteiras. Partilhando das preocupações do autor, há reservas a fazer em fazer quanto à equivalência local / nacional. O local, ao contrário do nacional, não implica fronteiras, não tem de implicar reclamar uma identidade para se definir, não é fixo (é onde se está e com quem se está em determinado momento), e pode referir-se a uma organização de pequena escala, sustentável, que não deixa de se poder articular com outras, numa rede de partilha, trocas, e comunidades sucessivamente imaginadas, remediadas e por isso interligadas. Por outro lado, vemos que por via do digital também os nacionalismos se propagam, e se tornam, paradoxalmente, globais (era também disso que Benedict Anderson falava, analisando os meios analógicos para a expansão do nacionalismo). Por outro lado ainda, a defesa do globalismo (e a crítica do seu contraponto, o nacionalismo) incorre no problema de se fazer ainda à escala do humano. Hoje torna-se necessário passar à escala planetária (que o termo local, entendido como formas de vida organizadas num território de forma sustentável, não invalida). E no pensamento à escala planetária é impossível dissociar a remediação digital do impacto que ela tem no planeta. Como escreveu Achille Mbembe, «a infraestrutura da digitalização do mundo faz-se à custa da restrição da mobilidade humana» e da predação extractivista do planeta (Achille Mbembe, «Le droit universelle à la respiration», AOC, 6 Abril 2020; publicado em português na plataforma Buala). Logo aí verificamos que o mecanismo igualitário do digital é meramente ilusório. O livro de Pierre Charbonnier, publicado há menos de um ano, Abondance et Liberté – une histoire environnementale des idées politiques (ed. La Découverte, 2020) fala de como os processos de emancipação estiveram e estão ligados à abundância material, e por isso à pressuposição de recursos infinitos e ao extractivismo como modus operandi. Um compromisso de opções mais «verdes», profundamente associado à tecnologia digital, faz-se à custa ainda da depredação de matérias-primas, de exploração de zonas mais pobres do planeta e de força humana. A emancipação tem uma dependência material e humana de custo planetário muito elevado e este é um paradoxo que não pode hoje deixar de entrar nas reflexões sobre o tempo presente (ou o passado ou o futuro).
As interrogações e dúvidas que o livro provoca são mais uma razão para o lermos, pois lidar com o mundo hoje é fazê-lo de sentidos torcidos, alterados, pela remediação digital. Pensar nisso como um fatalismo aniquila as possibilidades emancipatórias que se abrem neste contexto e que este livro afirma, tomando uma posição inequívoca pela potência da imaginação.
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Mariana Pinto dos Santos
Historiadora da arte e curadora, com doutoramento em História e Teoria (Facultat de Belles Arts, Universitat de Barcelona, 2015), é investigadora integrada no IHA/NOVA FCSH, Lisboa. Autora do livro Vanguarda & Outras Loas. Percurso Teórico de Ernesto de Sousa (2007, 2ª ed. 2020), organizou edições e catálogos e publicou ensaios em livros e revistas sobre artistas portugueses do século XX, modernidade e modernismos, historiografia e teoria da arte. Tem publicações internacionais no RIHA Journal, Konsthistorisk tidskrift/Journal of Art History e Artium Quaestiones. Entre outras, foi curadora de exposições na Fundação Calouste Gulbenkian em 2017 e no Instituto Cabañas, Gualajara, México, em 2018. É co-IR do projecto de investigação PIM – Modernismos Ibéricos e o Imaginário Primitivista (PTDC/ART-HIS/29837/2017).
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1. Sem título, Mariana Castro, 2020.
Nota de edição
Este texto é uma versão desenvolvida da apresentação do livro A torção dos sentidos – pandemia e remediação digital, que teve lugar na livraria Snob em Lisboa, no dia 15 de Dezembro de 2020.
Ficha Técnica
Data de publicação: 09.02.2021
Edição #30 • Inverno 2021 •