Apocalípticos e remediados • João Pedro Cachopo


 

1.

Para o intelectual apocalíptico, vivemos tempos de catástrofe. Os sinais de que caminhamos para o abismo — sinais que a pandemia evidenciou — acumulam-se. A barbárie e o obscurantismo crescem, as desigualdades acentuam-se, o tempo que teríamos para travar o descalabro ecológico do planeta escasseia. Deixamo-nos alienar, desligamo-nos do mundo, cedemos ao espectáculo; disponibilizamo-nos, mobilizamo-nos, exploramo-nos; imaginamos tudo excepto o fim do que nos empurra para o precipício, somos lenientes e colaboramos com o opressor e o vigilante, acolhemos a revolução digital com cegueira e ingenuidade. Perdemo-nos, em suma, do que somos e deixamo-nos capturar pelo que nos ameaça. Nas reflexões do apocalíptico, a inquietação com a alienação da condição humana — «perdemo-nos do que somos!» — e a preocupação com os perigos da revolução digital — «deixamo-nos capturar!» — não só se tocam como tendem a confundir-se. Ora, é justamente de distingui-las que aqui se trata. Só essa distinção nos permitirá recusar o catastrofismo do apocalíptico sem cair na leniência e na ingenuidade que ele justamente denuncia.

 

2.

É provável que o título deste capítulo provoque uma sensação de déjà lu. Ele evoca, com efeito, Apocalípticos e Integrados, uma obra publicada por Umberto Eco em 1964. Neste livro, discerniu o filósofo italiano duas atitudes contrastantes perante a cultura de massas. De um lado, o intelectual apocalíptico, queixando-se da vulgarização da cultura, da superficialidade do gosto e da alienação das massas, males que atribui à crescente hegemonia da televisão, da publicidade e do consumismo. De outro lado, o intelectual integrado, vendo nos meios de comunicação de massa novas oportunidades para a difusão de conteúdos, para a comunicação entre agente culturais, públicos e consumidores, piscando o olho à inovação e encolhendo os ombros perante as admoestações dos críticos. Hoje, em plena crise pandémica de 2020, a polémica — que não se dissipou desde então — acirrou-se. Nunca o apocalíptico teve tantas razões para se inquietar com a alienação que o integrado ignora ou finge ignorar.

A vida não anda fácil para o apocalíptico. Nos anos sessenta do século XX, havia ainda a opção de ficar à margem, de percorrer o mesmo território do integrado, evitando as vias alienantes da integração, privilegiando certas experiências, produtos ou estilos de vida em detrimento de outros. Hoje, as bolsas de ar que lhe permitiam respirar livremente estão em vias de extinção. Em contexto de quarentena, esta escassez — de ar, de movimento, de vida — torna-se quase literal. A remediação da experiência afigura-se, até ao mais íntegro e consequente dos apocalípticos, incontornável. Recusá-la equivale, nas presentes circunstâncias, à auto-condenação à solidão, à surdez, ao mutismo.

Apetece sugerir que a remediação constitui um upgrade — uma espécie de versão 2.0 — da integração. Hoje, o integrado é duplamente remediado: no sentido em que a sua experiência é transposta para os media digitais e no sentido em que, como se costuma dizer, o que não tem remédio remediado está. O emprego desta expressão é-nos útil por dois motivos: porque, devido ao seu tom resignado, sela o parentesco entre remediação e integração e porque sublinha a dimensão de inevitabilidade. Integrado não pode deixar de ser alguém cuja vida, cujas palavras, cujos gestos são remediados. Ele pode pugnar, como faz o apocalíptico, contra a integração. Pode denunciar a instrumentalização da remediação pela integração. Pode esquivar-se a ela. Não pode, contudo, puxar-se pelos cabelos e ignorar que o terreno em que exerce a sua arte da esquiva é um terreno minado. Ou, melhor dito, é um terreno ensopado: mergulha no éter da remediação. Não será, decerto, por isso que a sua voz discordante deixará de se ouvir. Simplesmente, é contra o diapasão da remediação que desafina; é da sua balança que descamba; é a sua coloração que tinge.

É crucial esclarecer em que medida nos pode ser útil a alusão às personagens conceptuais do «apocalíptico» e do «integrado». Não me interessa apenas — nem sequer fundamentalmente — o argumento, que acabo de desdobrar, segundo o qual o apocalíptico, não podendo escapar à remediação, não deixa de ser integrado. Esse foi um dos argumentos esgrimidos por Eco, para quem o intelectual apocalíptico, refugiando-se numa torre de marfim, de onde contempla, impávido e sereno, os esgares da populaça, é cúmplice da integração que critica. Não só porque se consola e ilude com a miragem do super-homem distanciado, mas também porque se contradiz, recorrendo aos meios de comunicação de massa para expressar o seu protesto, de tal modo que, graceja Eco, «a integração, expulsa pela porta, reentra pela janela» [Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados, trad. Helena Gubernatis, Lisboa, Relógio D’Água, 2015, p. 30.]. É escusado dizer que o mesmo se poderia dizer dos apocalípticos de hoje, em cujas páginas do Facebook e do Twitter os textos de Agamben, Han ou Latour são postados, comentados e partilhados.

Não é este o argumento — que é relativamente óbvio e não especialmente sagaz — que me interessa aqui elaborar. Se recorro ao texto de Eco, e aproveito o contraste entre as atitudes do apocalíptico e do integrado, é porque ele me serve de pedra-de-toque para duas operações que se iluminam e fortalecem mutuamente. Por um lado, esboçar uma genealogia da atitude apocalíptica atenta ao lugar ocupado pela crítica à tecnologia no seu contexto (o que me parece decisivo para compreender a ambivalência das actuais críticas às tecnologias digitais). Por outro lado, insistir na dupla negação das atitudes do apocalíptico e do integrado (que é hoje o entusiasta acrítico dos novos media) no contexto actual. Ora, esta dupla negação, na medida em que toma em consideração aquela genealogia, assenta na ideia de que a recusa da ingenuidade e da leniência do integrado não pode ceder ao conservadorismo e ao elitismo do apocalíptico no que toca à questão tecnológica.

 

3.

É um facto que as tecnologias digitais são um novo instrumento ao serviço da integração, da manipulação e da exploração. Não é, pois, de espantar que, na encruzilhada entre os perigos da alienação cultural e do autoritarismo político, a atenção do intelectual apocalíptico se tenha voltado da indústria cultural, no centro da cultura de massas, para a revolução digital.

Importa, todavia, notar que não é de hoje nem dos anos 1960 — os tempos áureos da crítica à «indústria cultural» — a desconfiança apocalíptica na tecnologia. Eco esboça uma genealogia da atitude apocalíptica. Esta mostra, remontando aos debates entre Marx e Bauer, que a desconfiança na tecnologia — nomeadamente em tecnologias de reprodução em massa — se mistura, não poucas vezes, com uma atitude elitista, com um apego à distinção entre massificação popular e criação erudita, se não mesmo com um maniqueísmo na distinção entre a lucidez do intelectual reflexivo e a estupidez do homem massificado. Curiosamente, Eco antecipa, nestas passagens, algumas das ideias que Rancière hoje desenvolve de forma exemplar — facto que a polémica pós-moderna, da qual Eco é tido como interveniente, torna hoje obscuro, mas que importa salientar. O que me interessa sublinhar na argumentação de Eco é muito simples: por mais que se exija a crítica à integração, não podemos subscrevê-la inteiramente. Não se trata de negar que a integração deva ser encarada com lucidez e espírito crítico. Eco chega a referir que o «a função dos apocalípticos tem uma validade própria, ou seja, denunciar que a ideologia dos integrados é profundamente falsa e de má-fé» [Ibid., p. 36.]. Trata-se, ao invés, de encontrar formas de esgrimir essa crítica sem erigir fronteiras entre alienação e autenticidade, entre a tecnologia que fomenta a primeira e a introspecção que garante a segunda ou, finalmente, entre a clareza e distinção da reflexão demorada e distanciada do intelectual e o formigamento caótico de estímulos, desejos e opiniões da populaça.Daí a importância da dupla negação das atitudes do integrado e do apocalíptico: o desafio de reconhecer os perigos da integração, sem nos deixarmos cegar por um certo reaccionarismo que se insinua, quase sempre paulatinamente, no discurso apocalíptico. Só assim poderemos abraçar as preocupações de carácter político e ecológico que a revolução digital suscita — tudo aquilo em que o apocalíptico tem razão contra o integrado — sem nos juntarmos a um coro de lamentos pela alienação da condição humana ou pelo esquecimento de um ligamento originário ao mundo que a tecnologia viria comprometer.

 

 

João Pedro Cachopo

Formado em musicologia e filosofia, João Pedro Cachopo é investigador do CESEM e professor convidado na NOVA-FCSH. É o autor de Verdade e Enigma: Ensaio sobre o pensamento estético de Adorno (Vendaval, 2013) e co-editou Estética e Política entre as Artes (Edições 70, 2017) e Rancière and Music (Edinburgh University Press, 2020).

 

Imagem

1. Sem título, Mariana Castro, 2020.

 

                                                                                          Nota de edição

Este excerto de A Torção dos Sentidos: Pandemia e Remediação Digital retoma e reelabora o célebre par conceptual introduzido por Umberto Eco há cerca de meio século entre “apocalípticos” e “integrados”. O embate entre estas duas personagens conceptuais, contudo, sofreu uma metamorfose. E examiná-la é crucial no debate sobre o papel da tecnologia na gestão da crise pandémica em curso. Esta pré-publicação oferece ao leitor o que por estes dias se tornou menos comum: folhear um livro numa livraria. O livro virá a lume pela Documenta no início de Dezembro de 2020.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 02.12.2020

Edição #29 • Outono 2020 •