A
espera demorada na farmácia, a fila para entrar no supermercado, são algumas
das experiências que se normalizaram nos últimos dias, suficientes para termos
uma ideia de como a propagação do coronavírus está a transformar a nossa
sociedade. Na verdade, em muitos aspectos são tendências de longo curso,
exponenciadas pela epidemia e pelas medidas que o Governo [italiano] tem
tomado: décadas de política do medo deixaram a sua marca, evidenciada na fobia
do contacto e nos olhares desconfiados que salvaguardam a «distância de
segurança» entre as pessoas.
Indubitavelmente,
a ânsia do controlo reforça os poderes que dominam as nossas vidas, mas é
importante relembrar que, uma vez implementadas, medidas como as destas semanas
vão permanecer no repertório do politicamente possível. Por outro lado, há
imagens em sentido profundamente distinto: os sorrisos trocados na rua, a
música a partir das varandas, a solidariedade que abrange não apenas os médicos
e os enfermeiros, mas também os operários em greve na defesa da segurança das
próprias condições de trabalho.
A
discussão destes dias, no seio do diverso mundo dos movimentos sociais e da
esquerda, parece focar-se sobretudo no primeiro aspecto, ou seja, no
aperfeiçoamento dos dispositivos de controlo em tempos de emergência. Mesmo
para além das posições expressas por consagrados filósofos que se fingem
virologistas e epidemiologistas, em muitas intervenções parece prevalecer uma
espécie de cepticismo em relação ao COVID-19 e ao seu real perigo.
Decididamente,
parece-me uma atitude equivocada. Ao invés, para simplificar, a discussão
deveria começar pelo facto de que a propagação do coronavírus representa não
apenas uma ameaça à saúde e à vida de milhões de pessoas (em primeiro lugar
idosos e demais vulneráveis ao risco), mas também à manutenção dos sistemas de
saúde. Que não haja qualquer dúvida em relação a este ponto. Se assim for, o
coronavírus representa uma ameaça a algo de essencial daquilo que, no nosso
debate, definimos como o «comum». A epidemia em curso expõe toda a fragilidade
e precariedade do comum (bem como das nossas vidas), juntamente com a
necessidade da «cura» – um tema salientado particularmente pelos debates
feministas dos últimos anos. Portanto, sem esquecer o tema do controlo,
partirei deste ponto de vista essencial para reflectir sobre o que está a
acontecer em Itália, na Europa e no mundo.
Os
efeitos económicos do coronavírus são literalmente inauditos. Pela primeira vez
em décadas, uma crise que tem a sua origem na “economia real” atinge
violentamente os mercados financeiros globais, provocando perdas sem
precedentes. A metáfora mais adequada para ilustrar a situação actual do
capitalismo global é a da «obstrução». Como um espelho, a crise reflecte a
imagem invertida de um capitalismo cujos circuitos de valorização e acumulação
dependem inteiramente de um movimento contínuo de capitais, mercadorias e
pessoas. Actualmente, as supply chains,
as cadeias de abastecimento que constituem o esqueleto logístico e
infraestrutural da globalização capitalista, parecem estar amplamente
bloqueadas. As cotações das bolsas – que durante muito tempo orientaram a
extensão das supply chains e da
conexa rede de corredores, zonas especiais e hubs – são agora forçadas a
registar este bloqueio.
Não
é de todo descabido afirmar que a pandemia em curso sinaliza um ponto de não
retorno no desenvolvimento do capitalismo global. Com isto, não estou a ceder,
de modo algum, a cenários «colapsistas» e apocalíticos. Certamente existirá um
capitalismo depois do coronavírus, mas será um capitalismo profundamente
diferente daquele que conhecemos nos últimos anos (mesmo com as mudanças
radicais decorrentes da crise financeira de 2007/2008). Parece-me que será
necessário partir desta constatação, referente a um quadro global, para
reflectir também sobre o que está a acontecer em Itália — que neste momento
volta a apresentar inequivocamente características de «laboratório», embora de
uma forma muito distinta quando comparada com um passado não muito distante.
Correndo
o risco da simplificação, diria que, neste momento, desenham-se duas
alternativas muito precisas: por um lado, uma linha que poderíamos definir como
malthusiana (ou inspirada num darwinismo social), bem exemplificada no eixo
Johnson-Trump-Bolsonaro; por outro, uma linha que aponta para a requalificação
da saúde pública enquanto instrumento fundamental para enfrentar a emergência
(e aqui os exemplos, muito diferentes entre si, podem ser a China, a Coreia do
Sul e a Itália). No primeiro caso, contabilizam-se os milhares de mortos como
uma forma de selecção natural da população; no segundo, por razões maioritariamente
contingentes, visa-se «defender a sociedade», recorrendo a níveis variados de
autoritarismo e de controlo social.
Que
fique bem claro: não estou, de modo algum, a «promover» as medidas adoptadas
pelo governo italiano. Limito-me a afirmar que, neste momento, a nível global,
está em curso um confronto duríssimo que terá consequências críticas não apenas
para o futuro do capitalismo, mas também para as nossas vidas (o que, na
verdade, é a mesma coisa). Este confronto atravessa países como a Grã-Bretanha,
os Estados Unidos e o Brasil, cujos governos promovem a solução do tipo
malthusiana e onde as resistências são tenazes e enraizadas a nível social e
político! Mas atravessa também a Itália, onde encontrou uma manifestação
exemplar na recusa dos operários em aceitar as escolhas da Confindustria
[Confederação Geral da Indústria Italiana] e de se sacrificarem ao primado da
produção. De um modo geral, a gestão do coronavírus afigura-se como um terreno
de conflito crucial; somente a intensificação das lutas sociais (agora e nos
próximos meses) poderá abrir espaços de democracia e de «cura» do comum. Isto
vale para Itália como para os Estados Unidos.
Vejamos
algumas das condições a partir das quais podemos delinear cenários para um
futuro próximo. O valor essencial do sistema de saúde público (ou seja, do
direito social à saúde) é hoje um dado difícil de questionar. Isto significa
que, pelo menos durante uns tempos, será difícil propor cortes adicionais e
poder-se-á abrir uma nova fase de investimentos – também sob a pressão dos
trabalhadores e trabalhadoras da área saúde. De igual modo, é desejável que o
mesmo aconteça no mundo da educação, porque claramente será necessário combater
as tentativas de tornar irreversíveis algumas das alterações que ocorreram nas
últimas semanas (a começar pelo ensino online). Na crise, o trabalho de
assistência continua a recair essencialmente sobre as mulheres, mas esta
circunstância também abre espaços para novas lutas e negociações. As já mencionadas
greves dos operários apontam para a possibilidade de novos horizontes de
sindicalismo social e para a reivindicação de um «rendimento de quarentena».
Mesmo pagando um preço muito alto, as revoltas nas prisões [italianas]
determinaram uma renovada visibilidade de um mundo que, nos últimos anos,
tornara-se fundamentalmente opaco (e também alcançaram alguns resultados
significativos, mesmo que parciais). Ainda que em momentos diferentes, o mesmo
está a acontecer nos CPR [Centri di
Permanenza per il Rimpatrio, vulgos centros de detenção], onde o
coronavírus provocou efectivamente uma suspensão dos repatriamentos, mas não
das detenções.
Repito:
estamos perante cenários que revelam terrenos de luta fundamentais e não,
seguramente, perante desenvolvimentos lineares governamentais. Do ponto de
vista metodológico, parece-me importante começar por aqui. Além disso, o vírus
tem exposto, de um modo cínico, o carácter totalmente ilusório da soberania e
do seu fetichismo pelas fronteiras. Esta é uma boa oportunidade para reabrir a
reflexão sobre a Europa. É certo que, até aqui, a União Europeia fez muito
pouco, movendo-se de forma contraditória e, por vezes, contraproducente. Mas,
como não reparar que o regime da austerity
e do dogma do equilíbrio orçamental está, finalmente, a desmoronar-se? Saliente-se,
também, as tensões «objectivas» que se vêm abatendo sobre o Banco Central
Europeu para que este assuma o papel de credor de última instância. São
tendências «objectivas», de facto, no sentido em que prescindem de uma
intencionalidade política, mas definem as condições para um reatamento das
lutas em solo europeu (ou melhor, para uma precipitação das lutas, a nível
europeu, que se desenvolverão em várias partes do continente).
Em
conclusão, julgo que o ponto de vista aqui proposto permite-nos olhar para a
pandemia em curso colocando o foco nos espaços que se abrem para os movimentos,
para as lutas sociais e para a própria esquerda. Como já referi, não subestimo
a questão do controlo, da expansão dos poderes do Estado e da subsequente promoção
de uma política do medo – aspectos claramente presentes no cenário actual. Mas
como combatê-los? Estou convicto que, para inverter o sentido actual do
«laboratório italiano», devemos começar pela «cura» do comum; e, na situação
actual, aproveitar as oportunidades existentes para uma mais ampla política das
lutas em tempos de pandemia.
•
Sandro
Mezzadra
Sandro Mezzadra é professor na
Universidade de Bolonha. Os seus estudos concentram-se na história das ideias
políticas e na teoria política. Nos últimos anos, tem trabalhado sobre a
relação entre globalização, migração e cidadania, teoria pós-colonial,
capitalismo contemporâneo, operaismo e autonomismo italiano. Esteve igualmente
envolvido na luta pelos direitos dos migrantes, nomeadamente no âmbito do
primeiro dia de acção contra a reunião do G-8 em Génova em 2001, dedicado às
questões da migração, bem como nos fóruns sociais italianos. Entre as suas
publicações, destacamos Direito de Fuga, Lisboa, Unipop 2012, com Brett Neilson,
Border as method, or, the multiplication of labor, Duke University Press, 2013;
La condizione postcoloniale. Storia e politica nel presente globale, Verona,
ombre corte, 2008; La costituzione del sociale. Il pensiero politico e
giuridico di Hugo Preuss Il Mulino, Bolonha, 1999.
Nota
da edição
Este artigo foi publicado no Euronomade em
italiano e traduzido por Franco Tomassoni para o Buala. A
relevância do artigo tornou pertinente a sua republicação no Punkto e no
Caderno #8 «Epidemos», com algumas alterações relativamente à versão anterior, numa
revisão realizada por Paulo AM Monteiro.
Ficha Técnica
Data de publicação: 23.03.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •
Caderno
#8 • Epidemos