A Imunidade do Sistema • Parte 1 • Do que ameaça • José Bártolo




1. A metáfora da guerra
No início do seu ensaio “A metáfora do coração”, Maria Zambrano sublinha que a metáfora desempenha, socialmente, uma função essencial, a de dar forma a uma realidade inalcançável pela razão objetiva mas susceptível de ser captada, através da linguagem, por uma certa operação do pensamento. As mais atuantes metáforas, que designa de fundamentais, possibilitam-nos uma relação mediada com algo difícil de identificar, ausente, desconhecido e, também por isso, particularmente ameaçador. São um modo de dar forma ao que ameaça. Talvez nenhuma metáfora seja tão fundamental como a que permite pensar e atuar sobre uma nova doença. Qualquer nova doença tem a sua força inscrita na forma como evidencia os limites da ciência e da medicina e impondo-se como nova e desconhecida torna-se uma ameaça disforme. No início da medicina ocidental, na Grécia antiga, as metáforas mais fundamentais usadas para definir o corpo saudável e o corpo patológico, eram encontradas, em primeira instância na mitologia e nas suas aplicações ao campo das artes. A Harmonia (hɑrmoʊniə) é recorrentemente a metáfora do corpo saudável e no seu pólo oposto estão as Erínias também conhecidas por Fúrias.

Só com a Medicina Moderna e a sua aparelhagem técnica que possibilita uma, crescentemente apurada, capacidade de observação microscópica dos elementos patológicos, as metáforas perdem a subtileza originária. Eclodem, então, as metáforas militares: a doença vista como uma invasão de organismos estranhos, à qual o organismo reage com as suas próprias operações militares, como a mobilização das “defesas” imunológicas, e a medicina se torna “agressiva” no “combate” à doença.

Esta militarização da saúde e da doença é organizadora do espaço social moderno, em diferentes planos de dupla face, a racional e a moral. É assim na segregação do espaço doente, que se isola do espaço saudável. Na sua origem, os leprosários, os sanatórios ou os manicómios, não são espaços de tratamento e cura, são espaços de isolamento e exclusão. Mais do que tratar o indivíduo leproso, o indivíduo tuberculoso ou o indivíduo louco, trata-se de extrair do seio da sociedade sã, a Lepra, a Tuberculose ou a Loucura. São espaços de reclusão e, frequentemente de punição, que cumprem uma função social, objetiva e imaginária, de expurga. É assim, igualmente, na segregação do espaço sujo, que se isola do espaço limpo, através da aliança entre a higienização e a moralidade social que se impõe na segunda metade do século XVIII e constrói espaços de confinamento para o desviante da normalidade social.

Na segunda metade do século XX muitos destes princípios continuam a vigorar. Em “A doença como metáfora”, Susan Sontag recorda-nos, a propósito do Cancro, a diferentes formas de privação a que é votado o doente. Sendo a última das privações pré-terapia, a privação de saber: a doença é comunicada em primeiro lugar aos familiares, não ao próprio doente.

A origem da metáfora militarista no campo da saúde é contemporânea do surgimento do capitalismo moderno. Na sua Medicinalium iuxta propria principia (1635) Tommaso Campanella enuncia a guerra contra a doença — bellum contra morbum — mas ela é, ainda, uma competência da ciência. De forma evidente, só no século XX, a metáfora da guerra contra a doença passa a ser um “combate” que envolve toda a sociedade. Como refere Sontag, a transformação de tal guerra numa ocasião de mobilização ideológica tornou a ideia de guerra útil como metáfora para toda a espécie de campanhas de reformas cujos objetivos se definem como a “derrota” de um inimigo. É assim na “guerra contra a pobreza”, na “guerra contra a droga” ou na “guerra contra o terrorismo”. É assim na guerra contra doenças específicas, como o Cancro ou, nos anos de 1980 a SIDA, ou no momento que estamos a viver contra o COVID-19.

A guerra impõe um estado de excepção. É uma das raras atividades que se considera não estar sujeita a debate e a consensos e a uma “análise realista” do controlo das despesas ou os seus efeitos práticos sobre a sociedade. Sendo a guerra definida como um estado de emergência, nenhum sacrifício deve ser considerado excessivo. É, ainda Sontag, quem nos clarifica para o facto de as guerras contra a doença não serem meros apelos a um mais efetivo estado social e a um maior investimento na investigação. A metáfora materializa a maneira como as doenças particularmente temidas são vistas como um “outro” estrangeiro, tal como os inimigos na guerra moderna ou o terrorista no pós-11 de setembro. A metáfora da guerra é também o operador que permite o deslizar da demonização da doença para a atribuição da culpa ao paciente. Ainda que se considere os pacientes como vítimas — vítimas de cancro no pulmão embora seja uma doença de fumadores; ou vitimas de SIDA embora seja uma doença de homossexuais; ou vitimas de COVID-19 embora seja uma doença evitável por isolamento social profilático. Mesmo quando a vítima não é abusivamente estereotipada, a vítima sugere inocência e a inocência, pela lógica que ordena os termos relacionais, sugere culpa.


2. A metáfora da coroa
COVID-19 pertence a um grupo de vírus RNA transmissível entre animais e pessoas. O seu comportamento zoonótico faz com que ele não se confine aos sistemas naturais de classificação ou às barreiras de espécie, flutua entre elas, transgredido fronteiras e esquivando-se a um dos poderes da ciência: o da classificação.

Em 1962 um novo vírus RNA, sem nenhuma relação com os mixovírus humanos conhecidos, foi identificado pela comunidade médica. No final da década de 1960, o virologista britânico David Tyrell liderou a investigação sobre os novos vírus zoológicos, identificados como B814 e 229E, propondo a designação deste novo grupo de vírus por Coronavirus. O termo latino corona, derivado do grego korōnē (κορώνη) tem um extensa aplicação nos domínios da botânica, da anatomia e da astronomia. A coroa está no centro do pensamento mitológico grego. Basta recordar Dionísios, desembarcado em Creta, que toma para si Ariadna seduzindo-a como uma coroa deslumbrante. O que, talvez, tenhamos esquecido dos gregos é que o que seduz é também o que destrói, razão pela qual a mesma palavra (phtheírein) significa, simultaneamente, seduzir e destruir.

A terminologia é adoptada, maioritariamente, por analogia formal com a coroa mas, inevitavelmente, ela inscreve o sentido político da soberania. Como bem fez notar Michael Marder no seu artigo de opinião no The New York Times (03 de março de 2020), este atributo de soberania por excelência, a coroa, é concedida a uma entidade microscópica que desafia as distinções entre várias classes de seres, bem como entre os domínios da vida e da morte e esta atribuição problematiza, com sentido de atualidade urgência, a própria ideia de poder e o seu exercício sobre a condição humana.

Dir-se-ia que no contexto atual o COVID-19 é assumido como ameaça soberana que põe em causa a imunidade do sistema. É face a ele que se reorganiza o poder político que passa a ser exercido, em regime excepcional, num contexto em que os estados de calamidade ou de emergência são declarados. Mas se falamos em ameaça ao sistema é fundamental que ultrapassemos o carácter indefinido e abstracto da expressão e que questionemos que sistema está ameaçado e como ele está ameaçado.

A 01 de fevereiro de 2016 a Organização Mundial de Saúde declarou a epidemia provocada pelo vírus Zika (ZKV) uma emergência de saúde pública global. Transmissível aos humanos pela picada de dois tipos de mosquitos (Redes aegypti e Redes albopictus) e transmissível entre humanos, o surto epidémico tinha tido a sua origem no Brasil, no início de 2015. Em fevereiro de 2016 o relatório da OMS reconhecia uma situação de pandemia que afectava 34 países. Só no Brasil, o país mais afectado, estimava-se que uma população de 1.5 milhões de pessoas tivessem sido infectadas. O vírus é particularmente grave para mulheres grávidas, sendo potencialmente responsável por malformações genéticas, como a microcefalia. Em janeiro de 2016 o Ministério da Saúde brasileiro reportava 4783 casos de recém nascidos com microcefalias ou outras malformações graves do sistema nervoso.

Atualmente, estima-se que uma população de cerca de 2 milhões de pessoas esteja exposta à infecção por ZKV. Sendo tipificado como um vírus tropical, que tem as mulheres grávidas de regiões sub-desenvolvidas como o principal grupo de risco, a epidemia raramente mereceu atenta cobertura mediática ocidental. A excepção deu-se por ocasião dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro - Rio 2016, sendo as datas da sinalização do ZKV como emergência de saúde pública global pela OMS impostas para assegurar um “cordão sanitário” que viabilizasse a realização do evento e permitisse um conjunto de medidas que garantissem a seguranças das várias delegações participantes.

Perante a militarização dos estados ocidentais face à pandemia de COVID-19, a antropóloga brasileira Debora Diniz dava expressão à voz abafada das mulheres latino-americanas, dizendo: “Nossa estranheza não é ressentimento de mulheres latinas que, ainda hoje, acompanham a peregrinação das sobreviventes de Zika com seus filhos. Como qualquer outra pessoa, estamos expostas ao vírus corona, mas diferentemente das mulheres pobres do Brasil, Colômbia, El Salvador ou Venezuela, não estamos em risco ao adoecimento pelo vírus Zika, ou sob leis criminais que proíbem o aborto ou sob regimes de pobreza que desamparam o cuidado. É preciso especificar quais mulheres vivem o vírus Zika como uma ameaça para o futuro —as mulheres mais vulneráveis, negras e indígenas, jovens e pobres. Essa é a passagem da biopolítica para a necropolítica das epidemias: o vírus corona aciona o pânico coletivo dos regimes autoritários que não querem estrangeiros em terras próprias; o vírus Zika abandona as mulheres mais vulneráveis ao abuso de governos patriarcais que perseguem a sexualidade e a reprodução.” (El País, 09 de março de 2020).

As epidemias Ébola, ZKV e COVID-19 possibilitam reflexões atuais sobre os mecanismos da biopolítica, sobre o exercício do poder que organiza as políticas da vida, as táticas que regulam as formas como os corpos devem viver e, no limite, que corpos devem viver e que corpos podem morrer. Montesquieu, o último grande pensador preocupado com a questão das formas de governação, percebeu que a principal característica da tirania era o facto de se basear no isolamento: o isolamento do poder soberano em relação aos súbditos e dos súbditos entre si através do medo e da suspeita generalizada. Como bem lia Hannah Arendt em A Condição Humana, de acordo com Montesquieu, a tirania é uma forma de governação que contraria a condição humana essencial da pluralidade, a possibilidade das pessoas agirem e falarem em conjunto. De acordo com Arendt, “a tirania impede o desenvolvimento do poder, não só num segmento específico da esfera pública mas na sua totalidade; por outras palavras, gera a impotência tão naturalmente como outros organismos políticos geram poder (…) isto torna necessário atribuir-lhe um lugar especial na teoria dos corpos políticos: só a tirania é incapaz de engendrar poder suficiente para permanecer no espaço da aparência, que é a esfera pública; pelo contrário, assim que surge, gera as sementes da sua própria destruição.” (pp. 253-254).

Um dos aspetos mais perturbadores da atual gestão da situação da pandemia COVID-19 é, precisamente, a súbita e profunda destruição da esfera pública. Cordões sanitários isolam cidades ou regiões inteiras; o isolamento social é aconselhado ou imposto através de quarentena; o recolher obrigatório é assegurado pela vigilância policial e militar.  Assistimos a esta situação no isolamento de uns em relação aos outros e na ilusão da participação, dada pela constante cobertura mediática e pela multiplicação de formas de “ligação virtual” nas redes sociais. Seja imposta por um vírus soberano, seja imposta por medidas, ditas excepcionais, dos governos lidarem com ele, o que se configura é essa erupção da tirania e a incapacidade radical da política assegurar o que, em Aristóteles, é definido como o seu fundamento: a capacidade de assegurar às pessoas um viver bem (eu zén).


3. A metáfora da Máscara
Nas filas do supermercado, nos transportes públicos, em casa, pessoas usando máscara tornou-se uma imagem perturbadamente vulgar. Usa-se a máscara para proteger do contágio e usa-se a máscara para proteger do medo, num e noutro caso, a máscara impõe um limiar, entre segurança e insegurança, entre saúde e doença, entre vida e morte. Os rostos semi-abertos pela máscara tornam-se uma imagem alterada do rosto, uma imagem alterada da vida, num confronto subitamente inusitado com a possibilidade da morte. Os romanos chamavam de imagem (imago) à máscara mortuária que fixava o rosto do imperador antes do seu último suspiro. Se o soberano tem dois corpos, um humano e outro divino, a imago materializa essa transição, que os gregos designam de apotheosis e os romanos de consecratio. Porém, com uma subtil diferença, a apotheosis marca a transformação do homem em deus, a consecratio a transferência do espaço profano para o espaço divino.

A imago, essa máscara de cera moldada na passagem do corpo-vivo para o corpo-cadáver do imperador passa a ser o elemento material que simboliza, a um tempo, a sua passagem para o plano divino e a sua permanência do plano profano. É um artefacto que evoca um limiar, entre formas de poder e formas de viver. De certo modo, a imago conserva o soberano do reino dos vivos enquanto uma espécie de fantasma. Bruce Benderson escreve que “o abandono do corpo apela ao isolamento, ao triunfo do fantasma puro” (p. 15) Talvez seja incorrecto falar em fantasmas “puros”, talvez a essência do fantasma seja o seu carácter “impuro”, transgressor, em todo o caso, parecem não haver dúvidas de que o abandono fantasmiza e que o isolamento do corpo pode ser induzido quer através de ausência, quer através de excesso.

Foucault defendia a necessidade de se constituir uma “filosofia do fantasma” que, em parte, encontrava na Lógica do sentido de Deleuze e Guattari. Advertia-nos, no entanto, para a inutilidade de ir procurar num fantasma uma verdade mais certa do que ele mesmo, como se o tomássemos como a um signo confuso (é inútil sintomatologizá-lo); seria igualmente inútil tentar fixá-lo segundo figuras estáveis, tentar constituir núcleos sólidos de convergência entre essas imagens do além e a nossa realidade objectiva (é inútil fenomenologizá-lo), para concluir que “é necessário deixá-los desenvolverem- se no limite dos corpos: contra eles, porque aí se agarram e se projectam, mas porque também os tocam, cortam, seccionam, particularizam e multiplicam as superfícies; fora deles também, já que jogam entre si, seguindo leis de vizinhança, de torção, de distância variável que não conhecem em absoluto.

O devir-fantasma é um experiência limite do corpo e uma experiência limite do político na medida que nos isola, nos esvazia, nos estranha. Alguém me referia que a experiência banal de ir ao supermercado por estes dias tinha sido vivida como se se tivesse entrado num episódio do Walking Dead. Esta fenda entre a normalidade e anormalidade é imposta significativamente pelo medo mas, aparentemente, a experiência que estamos a viver é a de sentirmos projetado em nós o medo do sistema. O que se evidencia é ainda e sobretudo a fragilidade das defesas imunitárias do sistema. Isso sabemo-lo, mesmo que não saibamos bem de que se sistema se trata, o que o infeta, como ele nos contamina e como nós próprios, individualmente, em comunidade e em sociedade, seremos capazes de reagir e criar defesas.


José Bártolo
Professor Universitário. Diretor Científico do esad-idea, investigação em design e arte.

Referências
Bruce Benderson, Sexe et solitude, Paris, Payot, 1999
Hannah Arendt, A Condição Humana, Lisboa, Relógio d’Água, 2001.
Maria Zambrano, A metáfora do coração e outros escritos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.
Susan Sontag, A Doença como Metáfora e A Sida e as suas Metáforas, Lisboa, Quetzal, 1998.

Imagem
Imagem microscópica do Covid-19.

Nota da edição
Este é um artigo publicado em três partes: 1) Do que Ameaça. 2) Da Imunidade. 3) Do Sistema.

Ficha Técnica
Data de publicação: 21.03.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •
Caderno #8 • Epidemos