1. A metáfora da guerra
No início
do seu ensaio “A metáfora do coração”, Maria Zambrano sublinha que a metáfora
desempenha, socialmente, uma função essencial, a de dar forma a uma realidade
inalcançável pela razão objetiva mas susceptível de ser captada, através da
linguagem, por uma certa operação do pensamento. As mais atuantes metáforas,
que designa de fundamentais, possibilitam-nos uma relação mediada com algo
difícil de identificar, ausente, desconhecido e, também por isso,
particularmente ameaçador. São um modo de dar forma ao que ameaça. Talvez
nenhuma metáfora seja tão fundamental como a que permite pensar e atuar sobre
uma nova doença. Qualquer nova doença tem a sua força inscrita na forma como
evidencia os limites da ciência e da medicina e impondo-se como nova e desconhecida torna-se
uma ameaça disforme. No início da medicina ocidental, na Grécia antiga, as
metáforas mais fundamentais usadas para definir o corpo saudável e o corpo
patológico, eram encontradas, em primeira instância na mitologia e nas suas
aplicações ao campo das artes. A Harmonia (hɑrmoʊniə) é recorrentemente a metáfora do corpo saudável e no seu
pólo oposto estão as Erínias também conhecidas por Fúrias.
Só com a Medicina Moderna e a sua aparelhagem técnica que
possibilita uma, crescentemente apurada, capacidade de observação microscópica
dos elementos patológicos, as metáforas perdem a subtileza originária. Eclodem,
então, as metáforas militares: a doença vista como uma invasão de organismos
estranhos, à qual o organismo reage com as suas próprias operações militares,
como a mobilização das “defesas” imunológicas, e a medicina se torna
“agressiva” no “combate” à doença.
Esta militarização da saúde e da doença é organizadora do espaço
social moderno, em diferentes planos de dupla face, a racional e a moral. É
assim na segregação do espaço doente, que se isola do espaço saudável. Na sua
origem, os leprosários, os sanatórios ou os manicómios, não são espaços de
tratamento e cura, são espaços de isolamento e exclusão. Mais do que tratar o
indivíduo leproso, o indivíduo tuberculoso ou o indivíduo louco, trata-se de
extrair do seio da sociedade sã, a Lepra, a Tuberculose ou a Loucura. São
espaços de reclusão e, frequentemente de punição, que cumprem uma função
social, objetiva e imaginária, de expurga. É assim, igualmente, na segregação
do espaço sujo, que se isola do espaço limpo, através da aliança entre a
higienização e a moralidade social que se impõe na segunda metade do século
XVIII e constrói espaços de confinamento para o desviante da normalidade
social.
Na segunda metade do século XX muitos destes princípios continuam
a vigorar. Em “A doença como metáfora”, Susan Sontag recorda-nos, a propósito
do Cancro, a diferentes formas de privação a que é votado o doente. Sendo a
última das privações pré-terapia, a privação de saber: a doença é comunicada em primeiro lugar aos familiares, não ao
próprio doente.
A origem da metáfora militarista no campo da saúde é contemporânea
do surgimento do capitalismo moderno. Na sua Medicinalium iuxta propria principia (1635) Tommaso Campanella enuncia a guerra contra a
doença — bellum contra
morbum — mas ela é, ainda, uma
competência da ciência. De forma evidente, só no século XX, a metáfora da
guerra contra a doença passa a ser um “combate” que envolve toda a sociedade. Como
refere Sontag, a transformação de tal guerra numa ocasião de mobilização
ideológica tornou a ideia de guerra útil como
metáfora para toda a espécie de campanhas de reformas cujos objetivos se
definem como a “derrota” de um inimigo. É assim na “guerra contra a pobreza”,
na “guerra contra a droga” ou na “guerra contra o terrorismo”. É assim na
guerra contra doenças específicas, como o Cancro ou, nos anos de 1980 a SIDA,
ou no momento que estamos a viver contra o COVID-19.
A guerra impõe um estado de excepção. É uma das raras atividades
que se considera não estar sujeita a debate e a consensos e a uma “análise
realista” do controlo das despesas ou os seus efeitos práticos sobre a
sociedade. Sendo a guerra definida como um estado de emergência, nenhum
sacrifício deve ser considerado excessivo. É, ainda Sontag, quem nos clarifica
para o facto de as guerras contra a doença não serem meros apelos a um mais
efetivo estado social e a um maior investimento na investigação. A metáfora
materializa a maneira como as doenças particularmente temidas são vistas como
um “outro” estrangeiro, tal como os inimigos na guerra moderna ou o terrorista
no pós-11 de setembro. A metáfora da guerra é também o operador que permite o
deslizar da demonização da doença para a atribuição da culpa ao paciente. Ainda
que se considere os pacientes como vítimas — vítimas de cancro no pulmão embora
seja uma doença de fumadores; ou vitimas de SIDA embora seja uma doença de
homossexuais; ou vitimas de COVID-19 embora seja uma doença evitável por
isolamento social profilático. Mesmo quando a vítima não é abusivamente
estereotipada, a vítima sugere inocência e a inocência, pela lógica que ordena
os termos relacionais, sugere culpa.
2. A metáfora da coroa
COVID-19 pertence a um grupo de vírus RNA transmissível entre
animais e pessoas. O seu comportamento zoonótico faz com que ele não se confine
aos sistemas naturais de classificação ou às barreiras de espécie, flutua entre
elas, transgredido fronteiras e esquivando-se a um dos poderes da ciência: o da
classificação.
Em 1962 um novo vírus RNA, sem nenhuma relação com os mixovírus
humanos conhecidos, foi identificado pela comunidade médica. No final da década
de 1960, o virologista britânico David Tyrell liderou a investigação sobre os
novos vírus zoológicos, identificados como B814 e 229E, propondo a designação
deste novo grupo de vírus por Coronavirus. O
termo latino corona,
derivado do grego korōnē
(κορώνη) tem um extensa aplicação nos domínios da
botânica, da anatomia e da astronomia. A coroa está no centro do pensamento
mitológico grego. Basta recordar Dionísios, desembarcado em Creta, que toma
para si Ariadna seduzindo-a como uma coroa deslumbrante. O que, talvez,
tenhamos esquecido dos gregos é que o que seduz é também o que destrói, razão
pela qual a mesma palavra (phtheírein)
significa, simultaneamente, seduzir e destruir.
A terminologia é adoptada, maioritariamente, por analogia formal
com a coroa mas, inevitavelmente, ela inscreve o sentido político da soberania.
Como bem fez notar Michael Marder no seu artigo de opinião no The New York
Times (03 de março de 2020), este
atributo de soberania por excelência, a coroa, é concedida a uma entidade microscópica
que desafia as distinções entre várias classes de seres, bem como entre os
domínios da vida e da morte e esta atribuição problematiza, com sentido de
atualidade urgência, a própria ideia de poder e o seu exercício sobre a
condição humana.
Dir-se-ia que no contexto atual o COVID-19 é assumido
como ameaça soberana que põe em causa a imunidade do sistema. É face a ele que
se reorganiza o poder político que passa a ser exercido, em regime excepcional,
num contexto em que os estados de calamidade ou de emergência são declarados.
Mas se falamos em ameaça ao sistema é fundamental que ultrapassemos o carácter
indefinido e abstracto da expressão e que questionemos que sistema está
ameaçado e como ele está ameaçado.
A 01 de fevereiro de 2016 a Organização Mundial de Saúde
declarou a epidemia provocada pelo vírus Zika (ZKV) uma emergência de saúde
pública global. Transmissível aos humanos pela picada de dois tipos de
mosquitos (Redes aegypti e Redes albopictus) e transmissível entre
humanos, o surto epidémico tinha tido a sua origem no Brasil, no início de
2015. Em fevereiro de 2016 o relatório da OMS reconhecia uma situação de
pandemia que afectava 34 países. Só no Brasil, o país mais afectado, estimava-se
que uma população de 1.5 milhões de pessoas tivessem sido infectadas. O vírus é
particularmente grave para mulheres grávidas, sendo potencialmente responsável
por malformações genéticas, como a microcefalia. Em janeiro de 2016 o
Ministério da Saúde brasileiro reportava 4783 casos de recém nascidos com microcefalias
ou outras malformações graves do sistema nervoso.
Atualmente, estima-se que uma população de cerca de 2
milhões de pessoas esteja exposta à infecção por ZKV. Sendo tipificado como um
vírus tropical, que tem as mulheres grávidas de regiões sub-desenvolvidas como
o principal grupo de risco, a epidemia raramente mereceu atenta cobertura
mediática ocidental. A excepção deu-se por ocasião dos Jogos Olímpicos do Rio
de Janeiro - Rio 2016, sendo as datas da sinalização do ZKV como emergência de
saúde pública global pela OMS impostas para assegurar um “cordão sanitário” que
viabilizasse a realização do evento e permitisse um conjunto de medidas que
garantissem a seguranças das várias delegações participantes.
Perante a militarização dos estados ocidentais face à
pandemia de COVID-19, a antropóloga brasileira Debora Diniz dava expressão à
voz abafada das mulheres latino-americanas, dizendo: “Nossa estranheza não é ressentimento de mulheres latinas
que, ainda hoje, acompanham a peregrinação das sobreviventes de Zika com seus
filhos. Como qualquer outra pessoa, estamos expostas ao vírus corona, mas
diferentemente das mulheres pobres do Brasil, Colômbia, El Salvador ou
Venezuela, não estamos em risco ao adoecimento pelo vírus Zika, ou sob leis
criminais que proíbem o aborto ou sob regimes de pobreza que desamparam o
cuidado. É preciso especificar quais mulheres vivem o vírus Zika como uma
ameaça para o futuro —as mulheres mais vulneráveis, negras e indígenas, jovens
e pobres. Essa é a passagem da biopolítica para a necropolítica das epidemias:
o vírus corona aciona o pânico coletivo dos regimes autoritários que não querem
estrangeiros em terras próprias; o vírus Zika abandona as mulheres mais
vulneráveis ao abuso de governos patriarcais que perseguem a sexualidade e a
reprodução.” (El País, 09 de março de 2020).
As epidemias Ébola, ZKV e COVID-19 possibilitam reflexões atuais
sobre os mecanismos da biopolítica, sobre o exercício do poder que organiza as
políticas da vida, as táticas que regulam as formas como os corpos devem viver
e, no limite, que corpos devem viver e que corpos podem morrer. Montesquieu, o
último grande pensador preocupado com a questão das formas de governação,
percebeu que a principal característica da tirania era o facto de se basear no
isolamento: o isolamento do poder soberano em relação aos súbditos e dos
súbditos entre si através do medo e da suspeita generalizada. Como bem lia
Hannah Arendt em A Condição Humana,
de acordo com Montesquieu, a tirania é uma forma de governação que contraria a
condição humana essencial da pluralidade, a possibilidade das pessoas agirem e
falarem em conjunto. De acordo com Arendt, “a tirania impede o desenvolvimento
do poder, não só num segmento específico da esfera pública mas na sua
totalidade; por outras palavras, gera a impotência tão naturalmente como outros
organismos políticos geram poder (…) isto torna necessário atribuir-lhe um
lugar especial na teoria dos corpos políticos: só a tirania é incapaz de engendrar
poder suficiente para permanecer no espaço da aparência, que é a esfera
pública; pelo contrário, assim que surge, gera as sementes da sua própria
destruição.” (pp. 253-254).
Um dos aspetos mais perturbadores da atual gestão da situação da
pandemia COVID-19 é, precisamente, a súbita e profunda destruição da esfera
pública. Cordões sanitários isolam cidades ou regiões inteiras; o isolamento
social é aconselhado ou imposto através de quarentena; o recolher obrigatório é
assegurado pela vigilância policial e militar.
Assistimos a esta situação no isolamento de uns em relação aos outros e
na ilusão da participação, dada pela constante cobertura mediática e pela
multiplicação de formas de “ligação virtual” nas redes sociais. Seja imposta
por um vírus soberano, seja imposta por medidas, ditas excepcionais, dos
governos lidarem com ele, o que se configura é essa erupção da tirania e a
incapacidade radical da política assegurar o que, em Aristóteles, é definido
como o seu fundamento: a capacidade de assegurar às pessoas um viver bem (eu zén).
3. A metáfora da Máscara
Nas filas do supermercado, nos transportes públicos, em
casa, pessoas usando máscara tornou-se uma imagem perturbadamente vulgar. Usa-se
a máscara para proteger do contágio e usa-se a máscara para proteger do medo,
num e noutro caso, a máscara impõe um limiar, entre segurança e insegurança,
entre saúde e doença, entre vida e morte. Os rostos semi-abertos pela máscara
tornam-se uma imagem alterada do rosto, uma imagem alterada da vida, num
confronto subitamente inusitado com a possibilidade da morte. Os romanos
chamavam de imagem (imago) à
máscara mortuária que fixava o rosto do imperador antes do seu último suspiro.
Se o soberano tem dois corpos, um humano e outro divino, a imago materializa essa transição, que os gregos
designam de apotheosis e os romanos
de consecratio. Porém, com uma subtil diferença, a apotheosis marca a transformação do
homem em deus, a consecratio a
transferência do espaço profano para o espaço divino.
A imago,
essa máscara de cera moldada na passagem do corpo-vivo para o corpo-cadáver do
imperador passa a ser o elemento material que simboliza, a um tempo, a sua
passagem para o plano divino e a sua permanência do plano profano. É um
artefacto que evoca um limiar, entre formas de poder e formas de viver. De
certo modo, a imago conserva
o soberano do reino dos vivos enquanto uma espécie de fantasma. Bruce Benderson escreve que “o abandono do corpo apela
ao isolamento, ao triunfo do fantasma puro” (p. 15) Talvez seja incorrecto
falar em fantasmas “puros”, talvez a essência do fantasma seja o seu carácter
“impuro”, transgressor, em todo o caso, parecem não haver dúvidas de que o
abandono fantasmiza e que o isolamento do corpo pode ser induzido quer através
de ausência, quer através de excesso.
Foucault defendia a necessidade de se constituir uma “filosofia do
fantasma” que, em parte, encontrava na Lógica do sentido de Deleuze e Guattari. Advertia-nos, no entanto, para a
inutilidade de ir procurar num fantasma uma verdade mais certa do que ele
mesmo, como se o tomássemos como a um signo confuso (é inútil sintomatologizá-lo); seria igualmente inútil tentar fixá-lo segundo
figuras estáveis, tentar constituir núcleos sólidos de convergência entre essas
imagens do além e a nossa realidade objectiva (é inútil fenomenologizá-lo), para concluir que “é necessário deixá-los
desenvolverem- se no limite dos corpos: contra eles, porque aí se agarram e se
projectam, mas porque também os tocam, cortam, seccionam, particularizam e
multiplicam as superfícies; fora deles também, já que jogam entre si, seguindo
leis de vizinhança, de torção, de distância variável que não conhecem em
absoluto.
O devir-fantasma é um experiência limite do corpo e uma
experiência limite do político na medida que nos isola, nos esvazia, nos
estranha. Alguém me referia que a experiência banal de ir ao supermercado por
estes dias tinha sido vivida como se se tivesse entrado num episódio do Walking Dead. Esta fenda entre a
normalidade e anormalidade é imposta significativamente pelo medo mas,
aparentemente, a experiência que estamos a viver é a de sentirmos projetado em
nós o medo do sistema. O que se evidencia é ainda e sobretudo a fragilidade das
defesas imunitárias do sistema. Isso sabemo-lo, mesmo que não saibamos bem de
que se sistema se trata, o que o infeta, como ele nos contamina e como nós
próprios, individualmente, em comunidade e em sociedade, seremos capazes de
reagir e criar defesas.
•
José
Bártolo
Professor Universitário. Diretor
Científico do esad-idea, investigação em design e arte.
Referências
Bruce Benderson, Sexe
et solitude, Paris, Payot, 1999
Hannah Arendt, A Condição
Humana, Lisboa, Relógio d’Água, 2001.
Maria Zambrano, A metáfora
do coração e outros escritos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.
Susan Sontag, A Doença como
Metáfora e A Sida e as suas Metáforas, Lisboa, Quetzal, 1998.
Imagem
Imagem microscópica do Covid-19.
Nota
da edição
Este
é um artigo publicado em três partes: 1) Do que Ameaça. 2) Da Imunidade. 3) Do
Sistema.
Ficha Técnica
Data de publicação: 21.03.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •