Epidemia Total • Pedro Levi Bismarck





1.
A história das cidades é a história das epidemias. Ou será o contrário? As grandes epidemias de cólera, varíola ou peste bubónica, foram momentos-chave, saltos epistemológicos, na organização urbana das cidades ao longo do século XIX e XX. Cada epidemia trouxe consigo um novo modelo social e espacial, porque associou e mobilizou, em cada momento, todo um novo conjunto de saberes e técnicas de gestão da população sobre o território.

Há um duplo movimento na epidemia. Por um lado, ela revela sempre a inescapável continuidade do espaço e do tempo (impossível de dominar, impossível de interromper) e, por isso mesmo, ela expõe a condição irremediavelmente colectiva desse «milieu», desse meio-ambiente, que estamos (ainda) na «obrigação» de partilhar. Esse foi, aliás, o grande trauma que acompanhou a burguesia ao longo do século XIX. Cada epidemia tornava visível não apenas a miséria extrema do espaço urbano produzido pelo capitalismo, mas uma profunda, inevitável e «intolerável» continuidade corporal, física e espacial entre a burguesia e o proletariado pobre e insalubre, empurrado para dentro dos quarteirões ou para os fundos infestados das «ilhas». Não se tratava apenas da súbita consciência do «outro» (miserável e invisível), mas a consciência aterradora de um espaço comum, irremediavelmente comum, demasiado próximo. Neste sentido, a epidemia é uma espécie de inversão fantasmagórica do liberalismo (que foi aliás o grande opositor, durante os séculos XIX e XX, a qualquer medida que visasse melhorar as condições de salubridade das populações). Se, em parte, podemos ver na epidemia a realização absoluta do liberalismo, a sua utopia plena enquanto construção de um espaço global, único, liso, infinitamente rentável na exploração imunitária dos corpos pelo vírus, ela é simultâneamente o seu maior pesadelo, porque expõe as consequências e as contradições do princípio da concorrência que organiza o corpo social – «a guerra de todos contra todos», como lhe chamava Engels –, ao mesmo tempo que torna evidente um espaço-tempo que longe de ser individualizado e isolável é comum e interdependente.

Por outro lado, é certo que cada epidemia significou sempre a mobilização de um novo saber, de um novo conjunto de técnicas que visavam, sob o pretexto da salubridade, identificar, organizar, «purificar» essa massa populacional das cidades e produzir um espaço tão higiénico como higienizado, tão controlado como controlável, tão circulável como seguro. Não há melhor exemplo do que os programas de habitação social que escondiam, sob o pretexto das «novas condições de habitabilidade», um desejo de controlo das populações, consideradas perigosas para a boa ordem pública. «A higiene contra a luta de classes», dizia-se. Ora, isto significava não apenas um determinado modelo arquitectónico-espacial, mas um conjunto de protocolos de acesso e códigos de uso, de civilidade e cidadania, aptos a corresponder à «moral» burguesa. Sob cada epidemia impende não apenas uma «ameaça de morte», mas uma «ameaça de vida», de uma outra vida, de uma nova tecnologia securitária da vida, de uma nova tecnologia de controlo e administração da higiene social e urbana. E o novo coronavírus não é excepção.

É por isso que me parece importante realçar esse duplo movimento que a epidemia parece trazer consigo: por um lado, ela coloca o capitalismo em crise e, portanto, expõe qualquer coisa do seu funcionamento, abre uma fissura na homogeneidade infinita da sua normalidade; por outro lado, o capitalismo precisa da crise, alimenta-se dela para operacionalizar os seus processos de produção, controlo e segurança. Neste sentido, se as novas tecnologias de administração da vida estão já numa nova fase, anunciando subtilmente o futuro (como essas aplicações digitais, obrigatórias na China, que classificam o utilizador de acordo com um determinado «nível de contágio», definindo graus de acesso e mobilidade), também é verdade que este é o momento em que os actuais processos de organização biopolítica da vida se tornam mais evidentes. Não sabemos, como refere Giorgio Agamben, se esta epidemia será por si só uma forma de impor, de uma vez por todas, todo um modelo de «estado de excepção» e distanciamento social através do digital, mas é, sem dúvida, um momento fundamental de percepção de um conjunto generalizado de processos que há muito estão em curso (a questão do e-learning, por exemplo, apresenta-se como um laboratório de experimentação óptimo para todo um novo modelo de universidade ansioso por reduzir custos e mobilizar um ensino cada vez mais especializado).

2.
Há qualquer coisa de irremediavelmente humano na epidemia: ela expõe-nos ao medo do outro, mas ao mesmo tempo faz-nos descobrir a presença do outro. O pânico generalizado, por sua vez, só é possível e compreensível porque os princípios da individualização e da propriedade privada são o fundamento da estrutura urbana e social e estão altamente incorporados no nosso modus vivendi. Pânico, porque se trata da percepção não-consciente que esse princípio não serve para organizar uma resposta colectiva a este estado de coisas. Pânico, porque a epidemia coloca em causa todos estes pressupostos, expondo uma vez mais a derradeira fragilidade humana perante a natureza. Com a epidemia abre-se sempre uma linha em direcção a um novo momento histórico: a novas formas de imunização social, a novas tecnologias de administração da vida, a novas formas de controlo biopolítico da população. Mas abre-se também uma possibilidade, porque ao expor, mais uma vez, os limites e a irracionalidade do princípio da concorrência e do mercado (a «guerra de todos contra todos»), bem como a violência intrínseca dos processos de exploração do neoliberalismo, a epidemia desvela um sentido de espaço social que escapa aos princípios totalizadores do capital.

O paradoxo é que estamos de tal modo implicados no modelo da higienização absoluta da vida e da santidade inviolável do corpo que qualquer modelo que pareça colocar em causa o princípio da imunização nos parece absurdo e delirante. E, no entanto, todos os dias somos alimentados por pesticidas, químicos e substâncias que destroem e matam lentamente o nosso corpo. Toda a questão se joga na visibilidade (mediática). A epidemia, na rapidez do contágio e das consequências, impõe necessariamente o modelo do «estado de excepção», mas expõe também o facto de esse ser cada vez mais o modelo com o qual já só sabemos viver. E isso é talvez o mais preocupante.

3.
O mote está menos em elogiar a convivência ou em desvalorizar o impacto do vírus e mais em compreender os princípios activos de uma política que tem vindo a destruir toda a possibilidade de coexistência. O novo coronavírus é uma ameaça real que, além disso, coloca em causa a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (já de si fragilizado por uma década de políticas neoliberais que anseiam pela sua privatização). Ora, vivemos num corpo social e biológico cada vez mais inter-ligado e inter-dependente, mas ao mesmo tempo altamente desigual no acesso à riqueza ou à saúde. É óbvio, em todo este processo, que os mais afectados serão aqueles sem capacidade de aceder a cuidados básicos, tanto nas novas zonas de miséria, como nos países atravessados pelo neoliberalismo.

Esta é, de facto, a primeira epidemia de um mundo altamente urbanizado à escala global. A questão está em ver através da crise e colocar em causa o princípio progressivo da imunização absoluta da vida que não é mais do que a inversão fantasmagórica do princípio do mercado: quanto mais este captura a totalidade da nossa vida, mais avança a imunização dos corpos (a sua solidão, o seu medo, a sua distância). Epidemia e finança reflectem-se mutuamente, são o espelho uma da outra. As linhas algorítmicas das suas performances são equiparáveis. O crash é o seu destino. A finança sonha-se a si mesma na utopia espoliadora da pandemia global, enquanto que esta última segue as suas rotas, os seus fluxos previamente delineados, a sua espoliação já consumada: a despossessão programada dos corpos, a privatização dos serviços públicos, a expropriação da vida social. Não foi apenas o «navio que inventou o naufrágio», como já avisava Paul Virilio, nós somos hoje os espectadores atentos dessa nova invenção que é o grande acidente planetário. O mundo total deu lugar ao acidente total, transmitido live, em streaming. À sociedade como objecto técnico e global, corresponde a epidemia total.

4.
O movimento duplo da epidemia: crise e visibilidade. Por um lado, a crise do movimento imparável do neoliberalismo financeiro em direcção à consumação do mundo, mesmo por entre os seus escombros, ou, talvez, porque se trata mesmo de o reduzir a escombros. Por outro lado, a exposição de todos esses processos (as novas zonas de miséria e de desigualdade económica, as novas técnicas de imunização e os discursos que os legitimam), mas, mais ainda, a possibilidade de um outro tempo, de um outro espaço. Talvez haja algo que possamos aprender nesta suspensão da actividade e da produção (e não apenas por razões ecológicas) que nos ameaça agora como «dano colateral». Talvez haja algo que possamos aprender nesse súbito esvaziamento dos espaços, nessa dilatação prolongada do tempo, nesse abandono da economia: um outro uso, uma outra possibilidade, uma outra política. Na epidemia, o pânico é tanto o corolário do capital, como a forma plena da sua auto-consumação. Resistir ao pânico, resistir à epidemia, pelo contrário, significa anular o dispositivo que legitima e generaliza a guerra social do capital, significa reinventar as formas do comum, a possibilidade de um outro modo de existência em comum.


Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

Imagem
1. Antony Gormley, Field works.

Ficha Técnica
Data de publicação: 17.03.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •