1.
A história das cidades
é a história das epidemias. Ou será o contrário? As grandes epidemias de cólera,
varíola ou peste bubónica, foram momentos-chave, saltos epistemológicos, na
organização urbana das cidades ao longo do século XIX e XX. Cada epidemia
trouxe consigo um novo modelo social e espacial, porque associou e mobilizou,
em cada momento, todo um novo conjunto de saberes e técnicas de gestão da
população sobre o território.
Há um duplo movimento
na epidemia. Por um lado, ela revela sempre a inescapável continuidade do
espaço e do tempo (impossível de dominar, impossível de interromper) e, por
isso mesmo, ela expõe a condição irremediavelmente colectiva desse «milieu», desse meio-ambiente, que estamos
(ainda) na «obrigação» de partilhar. Esse foi, aliás, o grande trauma que
acompanhou a burguesia ao longo do século XIX. Cada epidemia tornava visível
não apenas a miséria extrema do espaço urbano produzido pelo capitalismo, mas
uma profunda, inevitável e «intolerável» continuidade corporal, física e
espacial entre a burguesia e o proletariado pobre e insalubre, empurrado para
dentro dos quarteirões ou para os fundos infestados das «ilhas». Não se tratava
apenas da súbita consciência do «outro» (miserável e invisível), mas a
consciência aterradora de um espaço comum, irremediavelmente comum, demasiado
próximo. Neste sentido, a epidemia é uma espécie de inversão fantasmagórica do
liberalismo (que foi aliás o grande opositor, durante os séculos XIX e XX, a qualquer
medida que visasse melhorar as condições de salubridade das populações). Se, em
parte, podemos ver na epidemia a realização absoluta do liberalismo, a sua
utopia plena enquanto construção de um espaço global, único, liso,
infinitamente rentável na exploração imunitária dos corpos pelo vírus, ela é
simultâneamente o seu maior pesadelo, porque expõe as consequências e as
contradições do princípio da concorrência que organiza o corpo social – «a
guerra de todos contra todos», como lhe chamava Engels –, ao mesmo tempo que
torna evidente um espaço-tempo que longe de ser individualizado e isolável é
comum e interdependente.
Por outro lado, é
certo que cada epidemia significou sempre a mobilização de um novo saber, de um
novo conjunto de técnicas que visavam, sob o pretexto da salubridade,
identificar, organizar, «purificar» essa massa populacional das cidades e
produzir um espaço tão higiénico como higienizado, tão controlado como
controlável, tão circulável como seguro. Não há melhor exemplo do que os programas
de habitação social que escondiam, sob o pretexto das «novas condições de habitabilidade»,
um desejo de controlo das populações, consideradas perigosas para a boa ordem
pública. «A higiene contra a luta de classes», dizia-se. Ora, isto
significava não apenas um determinado modelo arquitectónico-espacial, mas um
conjunto de protocolos de acesso e códigos de uso, de civilidade e cidadania,
aptos a corresponder à «moral» burguesa. Sob cada epidemia impende não apenas
uma «ameaça de morte», mas uma «ameaça de vida», de uma outra vida, de uma nova
tecnologia securitária da vida, de uma nova tecnologia de controlo e
administração da higiene social e urbana. E o novo coronavírus não é excepção.
É por isso que me
parece importante realçar esse duplo movimento que a epidemia parece trazer
consigo: por um lado, ela coloca o capitalismo em crise e, portanto, expõe
qualquer coisa do seu funcionamento, abre uma fissura na homogeneidade infinita
da sua normalidade; por outro lado, o capitalismo precisa da crise, alimenta-se
dela para operacionalizar os seus processos de produção, controlo e segurança.
Neste sentido, se as novas tecnologias de administração da vida estão já numa
nova fase, anunciando subtilmente o futuro (como essas aplicações digitais, obrigatórias
na China, que classificam o utilizador de acordo com um determinado «nível de
contágio», definindo graus de acesso e mobilidade), também é verdade que este é
o momento em que os actuais processos de organização biopolítica da vida se
tornam mais evidentes. Não sabemos, como refere Giorgio Agamben, se esta epidemia será por si só uma forma
de impor, de uma vez por todas, todo um modelo de «estado de excepção» e distanciamento
social através do digital, mas é, sem dúvida, um momento fundamental de
percepção de um conjunto generalizado de processos que há muito estão em curso (a
questão do e-learning, por exemplo,
apresenta-se como um laboratório de experimentação óptimo para todo um novo
modelo de universidade ansioso por reduzir custos e mobilizar um ensino cada
vez mais especializado).
2.
Há qualquer coisa de
irremediavelmente humano na epidemia: ela expõe-nos ao medo do outro, mas ao
mesmo tempo faz-nos descobrir a presença do outro. O pânico generalizado, por
sua vez, só é possível e compreensível porque os princípios da individualização
e da propriedade privada são o fundamento da estrutura urbana e social e estão altamente
incorporados no nosso modus vivendi. Pânico, porque se trata da percepção não-consciente que esse princípio
não serve para organizar uma resposta colectiva a este estado de coisas. Pânico,
porque a epidemia coloca em causa todos estes pressupostos, expondo uma
vez mais a derradeira fragilidade humana perante a natureza. Com a epidemia abre-se
sempre uma linha em direcção a um novo momento histórico: a novas formas de
imunização social, a novas tecnologias de administração da vida, a novas formas
de controlo biopolítico da população. Mas abre-se também uma possibilidade,
porque ao expor, mais uma vez, os limites e a irracionalidade do princípio da
concorrência e do mercado (a «guerra de todos contra todos»), bem como a
violência intrínseca dos processos de exploração do neoliberalismo, a epidemia
desvela um sentido de espaço social que escapa aos princípios totalizadores do
capital.
O paradoxo é que
estamos de tal modo implicados no modelo da higienização absoluta da vida e da
santidade inviolável do corpo que qualquer modelo que pareça colocar em causa o
princípio da imunização nos parece absurdo e delirante. E, no entanto, todos os
dias somos alimentados por pesticidas, químicos e substâncias que destroem e
matam lentamente o nosso corpo. Toda a questão se joga na visibilidade (mediática). A epidemia, na rapidez do
contágio e das consequências, impõe necessariamente
o modelo do «estado de excepção», mas expõe
também o facto de esse ser cada vez mais o modelo com o qual já só sabemos
viver. E isso é talvez o mais preocupante.
3.
O mote está menos em
elogiar a convivência ou em desvalorizar o impacto do vírus e mais em
compreender os princípios activos de uma política que tem vindo a destruir toda
a possibilidade de coexistência. O novo coronavírus é uma ameaça real que, além
disso, coloca em causa a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (já
de si fragilizado por uma década de políticas neoliberais que anseiam pela sua
privatização). Ora, vivemos num corpo social e biológico cada vez mais
inter-ligado e inter-dependente, mas ao mesmo tempo altamente desigual no
acesso à riqueza ou à saúde. É óbvio, em todo este processo, que os mais
afectados serão aqueles sem capacidade de aceder a cuidados básicos, tanto nas
novas zonas de miséria, como nos países atravessados pelo neoliberalismo.
Esta é, de facto, a
primeira epidemia de um mundo altamente urbanizado à escala global. A questão
está em ver através da crise e colocar em causa o princípio progressivo da
imunização absoluta da vida que não é mais do que a inversão fantasmagórica do princípio
do mercado: quanto mais este captura a totalidade da nossa vida, mais avança a
imunização dos corpos (a sua solidão, o seu medo, a sua distância). Epidemia e
finança reflectem-se mutuamente, são o espelho uma da outra. As linhas
algorítmicas das suas performances são equiparáveis. O crash é o seu destino. A finança sonha-se a si mesma na utopia
espoliadora da pandemia global, enquanto que esta última segue as suas rotas,
os seus fluxos previamente delineados, a sua espoliação já consumada: a
despossessão programada dos corpos, a privatização dos serviços públicos, a expropriação
da vida social. Não foi apenas o «navio
que inventou o naufrágio», como já avisava Paul Virilio, nós somos hoje os espectadores
atentos dessa nova invenção que é o grande acidente planetário. O mundo total
deu lugar ao acidente total, transmitido live,
em streaming. À sociedade como objecto
técnico e global, corresponde a epidemia total.
4.
O movimento duplo da
epidemia: crise e visibilidade. Por um lado, a crise do movimento imparável do
neoliberalismo financeiro em direcção à consumação do mundo, mesmo por entre os
seus escombros, ou, talvez, porque se trata mesmo de o reduzir a escombros. Por
outro lado, a exposição de todos esses processos (as novas zonas de miséria e
de desigualdade económica, as novas técnicas de imunização e os discursos que
os legitimam), mas, mais ainda, a possibilidade de um outro tempo, de um outro espaço.
Talvez haja algo que possamos aprender nesta suspensão da actividade e da
produção (e não apenas por razões ecológicas) que nos ameaça agora como «dano
colateral». Talvez haja algo que possamos aprender nesse súbito esvaziamento
dos espaços, nessa dilatação prolongada do tempo, nesse abandono da economia:
um outro uso, uma outra possibilidade, uma outra política. Na epidemia, o
pânico é tanto o corolário do capital, como a forma plena da sua
auto-consumação. Resistir ao pânico, resistir à epidemia, pelo contrário,
significa anular o dispositivo que legitima e generaliza a guerra social do
capital, significa reinventar as formas do comum, a possibilidade de um outro
modo de existência em comum.
•
Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto,
crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagem
1. Antony Gormley, Field
works.
Ficha Técnica
Data de publicação:
17.03.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •